Os sentidos da justiça em Aristóteles

Para o Prof. Denis Coitinho, talvez seja possível apontar na teoria da justiça em Aristóteles uma certa complementaridade entre uma ética das virtudes e uma ética dos princípios. Ao invés da batalha final entre os partidários das virtudes e os partidários dos princípios, teríamos um armistício, vislumbrando um possível foedus pacificum.

por Denis Coitinho

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O Problema do Eliminacionismo

Uma das características da retomada da teoria das virtudes contemporaneamente é o eliminacionismo, isto é, o abandono da ética baseada em princípios, como a ética kantiana ou a utilitarista, que usam um princípio para fundamentar o comportamento moral, propondo um critério de correção a partir das virtudes morais da comunidade, que compartilham uma certa tradição moral, ou seja, que estabelece quais comportamentos são apreciáveis e quais são censuráveis. Nesta abordagem, parecem poder prescindir de toda referência aos princípios e de toda reflexão sobre os direitos que se desenvolveu a partir da modernidade. Os princípios de liberdade, igualdade, autonomia, por exemplo, são substituídos por critérios de perfeição comportamental como o que é nobre, o que é bom, honorável, apropriado, justo etc. Demonstra requerer uma retomada de um ideal perfeccionista para a conduta humana e social, que estabelece um modelo de vida boa para a totalidade da sociedade.

Parece que esse confronto contemporâneo entre os partidários de uma ética das virtudes e os defensores de uma ética de princípios tem por base o estabelecimento de uma pretensa dicotomia. A ética das virtudes, que utiliza como critério de correção as ações (excelências) desejáveis socialmente, teria, assim, um modelo social, isto é, uma matriz comunitária, em que há uma comunidade com uma tradição moral, na qual o cidadão está vinculado (particularismo), sendo virtuoso quando assume os valores dessa comunidade moral e vicioso quando não os realiza. A ética dos princípios, que utiliza como critério de correção ou um dever universal ou a maximização do bem-estar, o qual obriga a todos os indivíduos que querem fazer parte da comunidade moral (hipotética), enquanto seres racionais e morais, teriam um modelo individual, isto é, uma matriz liberal, em que o indivíduo é considerado como responsável por sua escolha e ação, sendo autônomo quando se autoimpõe a norma moral que é universal. Essas duas matrizes da ética seriam antagônicas ou complementares? Há algum motivo fundamental para serem vistas como tradições irreconciliáveis? Não seria desejável, em primeiro lugar, ver a possibilidade de um modelo ético que congregasse tanto a importância do comprometimento com as virtudes comunitárias quanto com a relevância dos princípios universais e autonomia do sujeito? Respondendo afirmativamente à questão, creio que o segundo passo se constitui em determinar se é possível encontrar algum modelo ético que se valha desta complementaridade.

Creio ser possível apontar na teoria da justiça em Aristóteles uma certa complementaridade entre uma ética das virtudes e uma ética dos princípios. Como Aristóteles é o autor par excellence recuperado contemporaneamente pelas atuais éticas das virtudes, que procuram contrapor-se às éticas principialistas, se for possível encontrar no interior de sua teoria das virtudes algum ponto de aproximação com o critério dado pelo princípio, então penso que se mostraria um local em que o diálogo se faz possível. Ao invés da batalha final entre os partidários das virtudes e os partidários dos princípios, teríamos um armistício, vislumbrando um possível foedus pacificum. O requisito essencial dessa hipótese seria encontrar no interior da análise de uma virtude moral um ponto de inflexão para o estabelecimento de princípios generalizantes ou universais, que estariam ligados ao caráter de correção moral perfeito, é claro, mas, entretanto, manteriam um certo distanciamento normativo da disposição do agente. Ao que tudo indica, uma boa candidata para este teste seria a virtude da justiça (dikaiosynê) que é investigada na Ethica Nicomachea – EN, Livro V, por apresentar uma distinção entre a justiça que é identificada com a virtude integralmente e a justiça que é parte da justiça como virtude, que é elaborada na forma de princípios matemáticos de igualdade.

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Aristóteles por Jusepe de Ribera, 1637

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Homonímia do termo Justiça

Aristóteles inicia sua investigação a respeito da dikaiosynê indagando que tipos de ações se relacionam com a justiça e a injustiça e que tipo de mediania é a justiça, isto é, quer saber entre quais ações extremas se encontra o ato justo enquanto mesótês. A justiça está sendo considerada enquanto uma virtude ética, pois diz que a investigação proposta seguirá o mesmo método percorrido anteriormente a respeito das outras virtudes morais (EN V,1,1129 a 1-5). Assim, define a justiça como a disposição (héxis) para fazer o que é justo, agir de forma justa e, também, desejar o justo.

O que é identificado por Aristóteles é que os termos justiça e injustiça parecem ser utilizados em dois sentidos. O indivíduo injusto é aquele que transgride a lei, que é ambicioso (por querer mais do que é seu direito), sendo não-equitativo; dessa forma, tem-se a definição do indivíduo justo como aquele que cumpre a lei correta (nómimon) e é equitativo, respeitando a igualdade (íson). Através dessa determinação do justo e do injusto, chega-se, aqui, a uma primeira definição de justiça: “O justo, portanto, significa aquilo que é conforme à lei correta (nómimos) e aquilo que é igual ou equitativo (ísos) e o injusto significa aquilo que é o ilegal (paránomon) e aquilo que é desigual ou não-equitativo (anison)” (EN V, 1, 1129 a 33-34). Parece que Aristóteles já está estabelecendo uma sutil distinção entre a esfera do que é moralidade e o que é justo no sentido político e jurídico. Outra forma de interpretar seria identificar uma distinção entre o que é moral e o que direito (em conjunto com o domínio político). Aristóteles esclarece a respeito da confusão linguística com que o termo justo era utilizado, apresentando uma homonímia: uns o utilizam para determinar uma potencialidade para a realização de ações justas, sendo este o campo da moral, e outros o utilizam para designar aquilo que é o igual na distribuição dos bens da comunidade política. Essa homonímia revela que a palavra justiça é utilizada como sinônimo de moral, do que é correto, do que é bom moralmente, isto é, como o legal que teria um fundo moral, por ser uma síntese entre todas as virtudes morais. Mas a palavra justiça também é utilizada no sentido de igual, no sentido em que o justo é cada um ter a sua parte correspondente, de forma igual e, por isso, o vício correspondente é a ambição (pleonexía), que é querer tomar mais do que a sua parte.

A justiça nessa primeira compreensão representa uma virtude que propicia uma espécie de resumo das outras virtudes morais, ao ponto que possuir a justiça é possuir a virtude inteira. A partir dessa homonímia o caminho tomado por Aristóteles parece ser o da realização de uma distinção entre a esfera da moralidade, em que a justiça é uma virtude que deve ser encontrada mediante o exercício individual para a determinação da mediania (mesótês) através da deliberação e escolha (proaíresis) e a esfera do direito e da política, em que a justiça passa a significar proporção, a justa distribuição e correção, que será formulada na maneira de princípios.

Os indivíduos que são ambiciosos são também não-equitativos, significando que querem simultaneamente muito as coisas boas e pouco as ruins, sem qualquer referência ao bem-estar da comunidade. A ação justa não pode ser movida pela ambição nem pela não-equidade, pois ela deve ser pautada pelo bem comum. Para Aristóteles, todos os atos que são praticados conforme à lei são justos em certo sentido, em função de o ato injusto ser caracterizado como aquele que infringe a lei e de os atos estipulados pela legislação serem conforme a lei (EN V, 1, 1129 b 11-14). Assim, realiza uma identificação entre a justiça universal e o ordenamento legal, pois o que é determinado pela lei visa a atender ao interesse comum da comunidade política, tanto em relação aos interesses de todos os indivíduos quanto aos interesses de grupos específicos. Surge, dessa forma, a definição da justiça como a mais perfeita virtude ética em função dela estar identificada com a relação pública de todos os indivíduos, isto é, em função da especificação da forma de relação de uns com os outros, no momento em que ela tem sua relação com o próximo (pròs héteron). Aqui, a justiça é entendida como a virtude ética que resume todas as outras virtudes, sendo a mais elevada e perfeita (teleía málista) virtude moral (EN V, 1, 1129 b 29-31).

Aristóteles destaca que a justiça possui uma relação específica com o que é considerado um bem para as demais pessoas na comunidade política. Em comparação com as outras virtudes éticas, a justiça é a única que se identifica com o “bem alheio” (allótrion agathón), pois ela é a virtude ética que se relaciona com o outro, fazendo o que constitui uma vantagem para o próximo, tratando todas as pessoas como iguais, por serem todos membros da mesma comunidade política (EN V, 1, 1130 a 3-4). Indica que a justiça não pode ser compreendida enquanto uma parte da virtude ética, mas deve ser entendida como a virtude ética total, e a injustiça, como seu contrário, deve ser entendida como a deficiência ética absoluta. No entanto, a justiça será uma virtude ética específica que tem relação entre o eu e o outro na prática ético-política específica, e não somente em uma relação subjetiva. O que se conclui desta importante distinção é que, se a justiça tem relação com o “bem do outro”, ela não pode ser entendida enquanto uma pura subjetividade, na qual individualmente eu decido sobre esse bem, em razão de o outro ter uma pretensão sobre esse bem, instituindo, assim, um caráter objetivo em que a ação moral já não estará entendida enquanto um meio individual, mas, sim, como um meio em relação à coisa de que o outro tem alguma pretensão.

Esta distinção entre o dever, que tem relação com o bem alheio (em que o outro pretende algo), e o dever que somente tem uma relação subjetiva, conduz ao estabelecimento de uma diferenciação entre justiça e virtude ética. Para Aristóteles, justiça e virtude ética são a mesma coisa, porém a essência de ambas não é a mesma (EN V, 1, 1130 a 10-13). A justiça é uma virtude ética que se pratica sempre em relação aos outros, sendo uma forma restrita de virtude ética, enquanto a virtude ética se compreende enquanto uma disposição irrestrita que pode ser realizada individualmente, tal como a coragem, a moderação e liberalidade. Aristóteles abandona a antiga identificação de essência entre justiça e virtude ética utilizada por Platão, diferenciando entre a ação moral individual e a ação moral coletiva para o ordenamento público da comunidade política. Esse abandono de uma visão interiorizada de justiça, através da distinção entre virtude e justiça, possibilita pensar que na ética aristotélica encontra-se, também, uma fundamentação da ação correta que vai além da autofinalidade da virtude, pois a justiça possui uma definição própria objetiva, independentemente do fato de constituir-se como uma virtude. Como Aristóteles está preocupado com a constituição da justiça para as questões de distribuição e restituição, não é razoável considerar que sua concepção seja teleológica no sentido de maximização de um bem particularizado, identificando o bem de forma independente do justo, pois, para a delimitação em relação ao bem alheio, o conceito de bem passa a ser considerado como abarcado pelo conceito de justo. É exatamente a partir dessa distinção que analiso a teoria da justiça aristotélica, não como estritamente vinculada a uma teoria teleológica das virtudes, mas que tem uma certa independência procedimental no estabelecimento de seus princípios públicos.

A distinção entre a teoria da justiça e a teoria das virtudes fica mais clara a partir do início do capítulo 2 do Livro V da EN, em que há o destaque de que o objeto específico de investigação será a justiça particular ou equitativa (méros — que é parte da justiça como virtude), isto é, no seu sentido político-jurídico, e não a justiça compreendida enquanto totalidade das virtudes (EN V, 2, 1130 a 14-16). Percebe-se claramente que a injustiça particular não está diretamente relacionada com todos os vícios como “covardia, cólera, mesquinhez”, mas, sim, com os vícios que possuem relação com tomar mais do que a parte que cabe a cada um. Com isso, Aristóteles identifica que a injustiça em questão tem relação com o tomar demais do que é a parte correspondente de um bem público e essa ação não possui uma relação direta com os outros vícios privados, apontando para a circunscrição da esfera da justiça ao âmbito político-jurídico, de forma a identificar o injusto como tendo relação com o desigual, isto é, ao não-equitativo, indo além do injusto no sentido de ilegal-imoral (que não cumpre a lei correta).

Para ressaltar seu posicionamento, Aristóteles exemplifica a questão com o caso do adultério: um comete o adultério em razão de um lucro e outro o comete em função do desejo. O indivíduo que comete o adultério por desejo não é injusto, mas apenas concupiscente (desregrado), enquanto o que comete por intenção do lucro é injusto, não sendo vicioso moralmente, em que o ato injusto significa alguém lucrar em uma situação em que lesa o outro. A conclusão que penso ser possível inferir do exemplo citado é que a justiça teria relação com as regras públicas de relacionamento e não com as regras privadas de convivência, abrindo um espaço para a afirmação da necessidade do direito, não identificando diretamente o bem que é público com o bem que é particularizado (EN V, 2, 1130 b 1).

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Aristóteles por Johann Jakob Dorner, o Velho, 1813

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Este texto faz parte do livro Os Sentidos da Justiça de Aristóteles, que está sendo lançado pela Editora EDIPUCRS, 2020. Trata-se da 2ª edição da obra, que passou por um processo de Revisão e Ampliação, com a introdução de um quarto capítulo. Obra originalmente publicada em 2001 pela mesma editora.

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