por Augusto de Carvalho
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Historiadores, hoje, ressaltam a origem particularmente eurocêntrica da nossa forma específica de elaborar o passado, à maneira da historiografia moderna. Não se deve menosprezar, contudo, que o interesse pelo tempo passado nunca foi restrito à Europa. A despeito das inúmeras individualidades culturais, toda comunidade humana mantém uma relação lógica com seu passado. A observação e o trabalho de elaboração sobre a fonte de sua própria existência é um traço distintivo do humano—reflexão sempre menos ou mais metódica, individual ou coletivamente motivada, e que porventura pode servir a mera curiosidade, à diversão, assim como ao ímpeto de dominação de si e do outro. Esse vínculo antropológico com o passado é ratificado na obra notável de Alain Schnapp, que, a propósito, torna menos excessiva essa consideração aparentemente imoderada: há historicidade desde que há ancestralidade.
Embora seja tarefa de antropólogos e historiadores a exposição sistemática das evidências dessa paixão humana pela precedência, dada a amplitude desse fato e os limites epistemológicos de seu reconhecimento, é impossível comprová-lo suficientemente por meio da antropologia ou da historiografia. A sugerida universalidade dos fenômenos temporais passados, então, exige daquilo que excede a humanidade as devidas explicações. Por isso, a razão não arbitrária para a relação existencial do humano com o tempo passado não é desvendada pelo acúmulo ou pela soma de alguma característica metapsicológica, e sim seria apropriadamente constatada apenas com a vocação Metafísica.
Existem variadas respostas igualmente metafísicas a essa pergunta. Há uma série de teorias sobre o tempo que se agrupam numa perspectiva naturalista mais ampla, segundo a qual o universo—e tudo que ele contém—existe num espaço-tempo isotrópico, isto é, indiferente à direção. A humanidade seria apenas mais um dos blocos que amparam e organizam esse desenho radicalmente determinado pelas leis físicas que encerram o humano e sua presumida intenção. Não obstante, ao igualar as características materiais do espaço às do tempo—ao tornar o tempo e o espaço isomórficos—, contesta Tim Maudlin, a Física e a Metafísica que sucedem esse procedimento, cativadas pelas muitas demonstrações da relação íntima entre as duas dimensões naturais, cometem o grave equívoco de não reconhecer uma diferença fundamental entre os dois aspectos da realidade: ao passo que o espaço é de fato isotrópico, o tempo, ao contrário, é anisotrópico, dado que se vincula essencialmente a uma direção ou sentido. A suspensão da natureza anisotrópica do tempo é um método eficaz para sua medição, mas não para explicá-lo. Porque a geometria é a ferramenta para representar fisicamente o tempo, e geometricamente nunca há direção intrínseca, e sim extrínseca, Maudlin, sobretudo em seu projeto Novas Fundações para a Geometria Física, argumenta que uma ilustre fração de físicos concluíram que também não há direção intrínseca para o tempo—conclusão apropriada por metafísicos. Como consequência, ainda que a ideia de espaço-tempo seja um recurso útil para precisar a extensão do tempo em qualquer quadro fixo da Física, relativística ou não, as informações técnicas sobre a causalidade material consolidadas pela estabilização daquilo que é naturalmente instável não concernem à Metafísica, que, desse ponto de vista, tem sérias dificuldades em justificar os porquês dessas mesmas causas e implicações do tempo sobre a realidade. Essa reavaliação demonstra que há, sim, uma diferença essencial entre tempo e espaço, apesar da relação igualmente elementar entre as duas dimensões naturais. Até mesmo de acordo com a relatividade física do espaço-tempo há uma dinâmica de sucessão e ordem temporal. Temporaliza-se o espaço, e não o contrário. E se o tempo passa, logo, há passado.
Outro meio usual para explicar as razões escusas do tempo limita-o a um resultado imediato da percepção individual humana—opinião compartilhada por um número significativo de estudiosos da matéria. Depreende-se, portanto, o significado do passado no momento em que simplesmente nos lembramos intuitivamente de algo, tal qual Ludwig Wittgenstein afirma nas Investigações Filosóficas. Por se tratar de um conjunto abstrato, instável e inconsistente, de classe negativa em relação à existência, uma parcela considerável de físicos e metafísicos alega que o tempo passado se circunscreve em uma dimensão transcendental, inata à consciência—esquivando-se discretamente do problema. Por conseguinte, categorias de ordem temporal não possuiriam relevância natural; somente psicológica. Ao kantismo peculiar dessas proposições, opõe-se o realismo de Quentin Meillassoux: pois não haveria tempo, mudança ou movimento antes da presença humana e sua hábil capacidade criativa? Dentre os vários efeitos dessa pergunta, ela nos guia a avaliar com ceticismo a noção de que o tempo é um dado antropológico exclusivo da consciência. Afinal, se não houvesse tempo antes da humanidade, como explicar a natureza transitiva e mesmo evolutiva da biologia, da geologia ou da cosmologia, sem se associar a uma frágil posição negacionista e anticientífica?
O tempo e a história da alma do mundo se contam em éons, não em anos. Além do mais, como adverte a crítica de Maudlin, ao tempo é sempre conferida uma direção, um sentido, que, aliás, não é privado à subjetividade—em termos abstratos, vem sempre teleologicamente do passado à sua própria incerteza, o projeto, o futuro. Isto posto, o tempo não é uma categoria isotrópica, tampouco uma realização tão somente subjetiva de nossas capacidades mentais; ao contrário, tempo é o nome dos sentidos naturais e existenciais, cujo princípio, não por acaso, encontra-se nisto que cingi a relação do humano com a mencionada fascinação pela incerteza singular de seu destino: o passado.
Aprende-se com o passado, e importa a sua constatação entre humanos e não-humanos. Para Rupert Sheldrake e Lee Smolin, é precisamente do tempo passado que irrompem os hábitos da natureza e do universo, sempre em adaptação—as leis físicas aprendem com a recursividade do seu próprio passado. Igualmente do passado e da sua eventual repetição vem a nossa herança biológica, os ritmos circadianos, a consistência dos padrões orgânicos da função temporal do cérebro. Similarmente, dos passados que compõem nossa memória emergem os sentidos intrínsecos e extrínsecos que orientam a realidade subjetiva—algo agostiniano que, segundo Dean Buonomano, a neurociência reafirma empiricamente e a seu modo. Enfim, do passado deriva aquilo que, tal qual a Ciência Nova de Giambattista Vico, paradoxalmente nos domina à medida que nos indetermina: a história, já que o humano é agente e paciente de seu próprio tornar-se, sujeito e objeto do tempo.
Conquanto e apesar de a historiografia estar sempre enredada ao feixe das interpretações humanas sobre sua autocompreensão particular, diferentemente da escrita da história que, desse modo, varia tematicamente conforme a cultura, os valores da intenção de certa operação e situação historiográfica e espelha certa demanda ética da ordem social, a história, de sua parte, não reclama a presença e a agência do humano para existir. Havia tempo e havia história antes da humanidade. Não fosse assim, tudo quanto ultrapassa a breve vida humana seria de todo infamiliar, reservado ao silêncio.
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