por Guilherme Bianchi
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No início dos anos 1980, em uma de várias visitas do filósofo grego Cornelius Castoriadis ao México, o ensaísta mexicano Julián Meza, anfitrião que convidara o filósofo para uma série de seminários numa grande universidade do país, lembra de ter advertido o convidado europeu sobre a proeminência do marxismo como teoria filosófica e prática política no México, ao contrário da Europa, onde o marxismo soava já como uma ideia do passado. “Ele não acreditou em mim e sua surpresa foi muito grande quando enfrentou a crítica visceral de comunistas, trotskistas, maoístas”, recordou Meza.[1] O sucesso de Castoriadis no México, no final do século XX, devia-se em grande parte à forte afinidade pessoal e intelectual que cultivava com Octavio Paz. Paz publicou no México um grande número de ensaios de Castoriadis, a maior parte dentro de sua famosa revista literária Vuelta. Mas a fama internacional do pensador, principalmente nas décadas de 1970 a 1990, muito se deveu também ao papel de crítico mordaz das filosofias deterministas da história que Castoriadis encarnou a partir de 1950.
Quando Castoriadis morreu, em dezembro de 1997, Paz relembrou das qualidades de seu amigo, que para ele evocavam a imagem de um relâmpago, “que a todos sus amigos nos deslumbraba por su lógica implacable, la certeza de sus intuiciones y la audacia de sus deducciones”. Mas a afinidade ia além da amigável cortesia e alcançava ainda níveis elevados de parentesco interpretativo, poético e político, e mesmo de biografia intelectual. Se Paz, no comentário sugestivo de Adolfo Castañon, matou figurativamente seu pai duas vezes (o pai revolucionário e o avô liberal), para desenvolver uma aproximação crítica mais heterodoxa da vida social, Castoriadis viu, de dentro do marxismo e dos movimentos revolucionários europeus do século XX, os limites de uma tradição a qual por muitos anos esteve filiado.
Saltou daí para transformar-se, de maneira irreversível a partir do final da década de 1940, num duro crítico da experiência soviética e da teoria marxista, recusando a confortável separação desses como dois momentos independentes entre si (sem nunca, com isso, ter se adaptado ao confortável apelo fukuyamista sobre o capitalismo como “fim da história”). Em 1964 escreveria, por exemplo, que a tentativa de reduzir o sentido do marxismo apenas aos textos escritos por Marx, ignorando assim “aquilo que se tornou a doutrina na história”, seria o mesmo que pretender, de maneira contraditória ao que dizia o próprio Marx, que “a história real não importa, que a verdade de uma teoria esteja sempre e exclusivamente ‘no além’, e, finalmente, substituir a revolução pela revelação e a reflexão sobre os fatos pela exegese dos textos.”[2]
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Nascido em Constantinopla (Istambul), na Turquia, em 1922, filho de mãe grega e de pai turco, Castoriadis mudou-se muito cedo para Atenas, cidade natal de sua mãe. Esta mudança esteve relacionada com um dos períodos mais turbulentos da história moderna da Grécia. Em suas próprias recordações, Castoriadis lembrava a intuição de seu pai sobre uma iminente derrota do exército grego como a razão da ida da família para Atenas, apenas um mês antes da vitória turca em Anatólia, no mesmo ano do nascimento de Castoriadis. A intuição de seu pai era digna de nota, já que os eventos de 1922 e 1923 ficariam conhecidos historicamente como a Catástrofe da Ásia Menor, catástrofe que, por inúmeras razões, passou a constituir uma memória traumática inescapável para a sociedade grega do século XX.
Leitor de filosofia desde os 12 anos, fortemente influenciado pela veia artística da mãe, pianista, e do pai, que Castoriadis descrevia como um sujeito politizado, “democrata voltaireano, ferozmente anticlerical e antimonarquista”, o jovem Cornelius passaria toda sua juventude na Atenas dos anos 30. Em contato com publicações comunistas clandestinas na Grécia e, pouco depois, com a obra de Karl Marx, Castoriadis se aproximou de uma célula de jovens ligados ao Partido Comunista Grego (Kommounistikó Kómma Elládas – KKE) em 1937. No ano seguinte, então com 16 anos, passou a frequentar esporadicamente alguns cursos na Universidade de Atenas, algo pouco usual durante o período para alguém tão jovem.
Às vésperas da Segunda Guerra, a Grécia se encontrava sob o terrorismo de Estado da ditadura de Ioánnis Metaxás, general que, sob inspiração direta do fascismo de Mussolini, declarara, ainda em 1936, a instauração de uma “Terceira Civilização Helênica” no país, radicalmente anti-liberal e anti-comunista. Quando a Itália invade a Grécia, em 1940, logo seguida pela chegada dos alemães no ano seguinte, Castoriadis escolhe se filiar formalmente ao KKE, mas a decisão dura pouco e logo em seguida ele abandona o partido por conta de políticas que ele considerava excessivamente chauvinistas. Após sua saída do KKE e, por extensão, sua ruptura com a orientação comunista oficial do período (o stalinismo), Castoriadis adere a um pequeno grupo de dissidentes trotskistas em Atenas.
Nesse contexto, a escolha em se afirmar como um trotskista certamente não era das mais seguras. Inimigo natural dos nazifascistas, que não distinguiam comunistas entre adequados e degenerados, nem se importavam com a natureza específica de suas orientações teóricas, um trotskista era ao mesmo tempo um dos principais alvos do comunismo oficial. Enquanto os nazistas perseguiriam violentamente os comunistas gregos durante seu período no poder, os comunistas do KKE, no momento da “liberação” da Grécia, em 1944, passariam a perseguir e assassinar os “degenerados” trotskistas. Em meio a uma guerra civil entre o exército do governo monárquico grego (apoiado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido) e o braço armado do KKE (apoiado pela URSS e seus satélites do Leste), os comunistas empreenderam uma feroz perseguição aos trotskistas.
Durante o violento dezembro de 1944 (Dekemvriana), quando tropas gregas apoiadas pelo governo britânico avançam contra milhares de protestantes nas ruas de Atenas, em um conflito aberto contra os comunistas do KKE, deixando dezenas de civis mortos, os próprios comunistas tratariam de eliminar qualquer um identificado como inimigo do partido. Estima-se que, além dos milhares de civis vitimados no conflito, cerca de 600 militantes, trabalhadores e intelectuais trotskistas também foram assassinados na Grécia, muitos deles após terem sido torturados pela OPLA, a polícia secreta do KKE. Castoriadis conseguiu escapar, mas a proximidade da morte, da violência e da tortura de muitos de seus companheiros de atividade política certamente nos auxiliam, hoje, a entender certos sentidos de suas formulações políticas e teóricas dos anos seguintes.[3]
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Enquanto os pogroms stalinistas e a violência de Estado arrasavam qualquer possibilidade de liberdade política na Grécia, Castoriadis, então com 22 anos, publica um de seus primeiros textos acadêmicos, uma tradução longamente comentada das primeiras páginas de “Economia e Sociedade” de Max Weber. Aluno da Faculdade de Direito da Universidade de Atenas desde os 17 anos, em 1942 obtém um diploma em Ciência Política e dois anos depois um diploma de Direito. Na universidade, a presença de alguns professores neo-kantianos de esquerda como Constantinos Despotopoulos e Panayiotis Kanelopoulos (que havia sido aluno de Heinrich Rickert em Heidelberg, e foi autor da primeira publicação sobre a obra de Weber e Rickert na Grécia[4]) impactou de maneira determinante os interesses filosóficos do jovem Castoriadis. O contato com círculos neo-kantianos na Grécia significou um primeiro aprofundamento com essas e outras teorias sociais. Para além de Weber e Rickert (além de Marx), Castoriadis também entrou em contato, nesse período, com textos de Georg Lukács, Hans Fryer, Karl Manheim e Alfred Weber. Pese tais desenvolvimentos no campo intelectual, no campo político Castoriadis, o trotskista, corria perigo.
O fim da guerra em 1945 esteve longe de significar qualquer pacificação na Grécia. Em fevereiro, um tratado assinado entre o KKE e o governo de direita grego prometera uma transição pacífica para a democracia. Mas os eventos que se seguiram à assinatura do tratado deram origem, na verdade, a um novo ciclo de intensificação da violência. Entre 1946 e 1949, cerca de 158 mil pessoas morreram na Guerra Civil da Grécia, em um conflito no qual o governo grego, apoiado pela Inglaterra e Estados Unidos, conseguiu derrotar os comunistas do KKE e seus braços armados apoiados pela URSS. O conflito deu lugar a atrocidades generalizadas não apenas contra os comunistas, então com menor força, como também contra boa parte da sociedade civil grega. As universidades também foram perseguidas, e especialmente os departamentos com maior número de opositores ao governo. No total, entre 1946 e 1949, cerca de 158 mil pessoas morreram, em um conflito no qual o governo grego saiu vitorioso.[5]
Em meio ao horror que novamente se anunciava, ainda em 1945, Castoriadis e mais de uma centena de intelectuais e artigos gregos encontraram uma saída. Abandonar a Grécia se tornara uma opção viável este grupo, graças a uma série de bolsas de estudo financiadas pelo governo francês. Em dezembro, a bordo do RMS Mataroa, partem para Paris não apenas Castoriadis como tantos outros personagens que viriam a se transformar em figuras notáveis da vida intelectual, política e artística da França do pós-guerra, entre os quais vale a pena citar de passagem alguns nomes que podem ser mais familiares ao leitor: além de Castoriadis, a escritora Mimica Cranaki, os filósofos Kostas Axelos e Kostas Papaioannou, o pintor e escultor Constantine Andreou, o filólogo Emmanuel Kriaras, o historiador Nikolaos Svoronos., o arquiteto Georges Candilis. A jornada do Mataroa é uma história a parte.[6] O mesmo navio que havia transportado judeus sobreviventes dos campos de concentração da França para a Palestina, em agosto de 1945, transportou, no final do mesmo ano, mais de 150 de artistas e intelectuais gregos para longe do conflito armado na Grécia.
Uma vez em Paris, que até então só conhecia pelas rememorações do pai, participará por breves dois anos da seção francesa da 4ª Internacional, o Partido Comunista Internacionalista (PCI). É nesse breve período e no interior desse ambiente que Castoriadis conhecerá e se aproximará de Claude Lefort, então um jovem filósofo de 22 anos que chegara ao trotskismo por outros caminhos, muito influenciado pela presença intelectual e política de seu mestre, Maurice Merleau-Ponty. Castoriadis e Lefort lideram a criação de uma tendência crítica no PCI, fazendo oposição à estratégia majoritária do partido. O PCI acreditava ser possível constituir uma aliança estratégica com o Partido Comunista Francês (PCF), que os jovens trotskistas já haviam aprendido a detestar. Nessa mesma época (dezembro de 1945), porém, o fato é que os partidos de direita haviam sido quase completamente eclipsados pela vitória do PCF nas eleições legislativas de outubro, quando este conquista a incrível marca de 5 milhões de votos, além de somar no momento mais de meio milhão de filiados (o maior número de filiados da história do PCF). Para eles, o PCF era uma organização contrarrevolucionária, representantes na França de todo o atraso autocrático e burocratizado da URSS.
Minoritários dentro de um partido também minoritário, a aventura de Lefort e Castoriadis no interior do trotskismo duraria pouco, e a insuficiência da crítica de Trotsky ao socialismo soviético levaria ambos ao abandono do PCI em 1948, quando decidem então fundar, junto a outros colaboradores, um grupo independente chamado Socialisme ou Barbarie. Em março do ano seguinte, o primeiro número de uma revista homônima seria publicado, e por 19 anos, entre 1948 e 1967, o grupo publicaria cerca de 40 edições. O significado das ideias veiculadas pela revista para a história dos movimentos autonomistas na França dos anos 1960, porém, já foi exaustivamente discutido em outros lugares.[7]
Uma vez excluídos da vida política do comunismo oficial, os trotskistas aproveitaram o momento de crise nos países no Leste europeu para colaborar com a perspectiva de uma oposição de esquerda à URSS. Assim, quando, em 1948, o líder iugoslavo Josip Broz Tito decide abandonar a Kominform — ?órgão de comunicação entre os partidos comunistas internacionais e a liderança soviética criada um ano antes — a reação hegemônica dentro das organizações trotskistas foi a de saudar a Iugoslávia como representação inequívoca da possibilidade de um socialismo autônomo em relação a URSS. Castoriadis, no entanto, achava essa identificação um tanto quanto superficial e forçada. A mesma Iugoslávia que antes os trotskistas denominavam de “satélite soviético essencialmente capitalista” se tornara, da noite para o dia (com o divórcio político entre Tito e Stálin) uma potência socialista e revolucionária? As contradições do pensamento trotskista estavam postas. Como recordou Castoriadis em uma entrevista em 1974:
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[os trotskistas] só conseguiam ver os países do Leste em função deste dilema: é socialismo (identificado com a nacionalização etc.) ou é capitalismo (identificado com a propriedade privada tradicional)? Mas a questão não podia ser colocada nesses termos. Tratava-se de perceber que a assimilação estrutural daqueles países ao regime russo avançava a cada dia, os partidos comunistas […] criavam um novo aparelho de gestão da produção e da sociedade em torno do qual se cristalizava rapidamente uma nova camada dominante e exploradora, e que esse processo não só não era incompatível com a “nacionalização” e a planificação, como encontrava nelas sua forma perfeitamente adequada.[8]
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Logo após afastar-se do trotskismo, Castoriadis publica um texto em que afirma que a burocracia soviética estava organizada sob a natureza totalitária do regime e que, portanto, qualquer operação crítica que admitisse segregar uma forma política autêntica (a revolução) de um conteúdo negativo temporário (Stálin), como lhe parecia ser o caso dos trotskistas, falharia em captar a essência da burocracia como classe dominante. Em 1949 ele escreve que o processo de fusão entre o Estado soviético e o Partido Comunista acabara por criar, na Rússia, um aparato burocrático centralizado, de modo que a classe política se transformara, acima de tudo, em uma classe de funcionários a serviço do partido, recusando assim a definição de Trotsky que via na URSS ainda um “Estado operário”, por mais que adicionasse a essa definição o adjetivo “degenerado”. Longe de significar uma radical oposição ao capitalismo ocidental, o socialismo soviético se apresentaria, sob a forma do stalinismo, não como “Estado operário degenerado”, mas como estruturalmente contínuo à divisão social entre aqueles que detinham o comando do processo de produção e aqueles que o executavam na prática. Sobretudo, Castoriadis estava convencido que o trotskismo permanecia refém da lógica estadocêntrica dos bolcheviques, politicamente refratária às ideias de gestão operária e coletiva da plataforma industrial — ideais que terão lugar central nas discussões do grupo Socialisme ou Barbarie.
Ao longo dos anos 50, a posição de Castoriadis vai se transferindo de uma crítica ao regime soviético, ainda atrelada ao marxismo como paradigma filosófico-político, para um gesto cada vez mais crítico ao núcleo intelectual do materialismo histórico; de um marxismo crítico a uma crítica do marxismo em si. Sua perspectiva, que antes podia soar como mais um posicionamento antiautoritário contra as correntes hegemônicas do marxismo, como faziam os anarquistas, os comunistas de conselho, os socialdemocratas e, em certo sentido, o próprio trotskismo, passa a se transformar em exercício de avaliação do projeto filosófico do próprio materialismo histórico e, em sua extensão, de todas as filosofias da história que compartilhavam uma crença em comum: a capacidade de antecipar o futuro prático pela operação teórica. Essa crítica está presente em seu A Instituição Imaginária da Sociedade, publicado na França em 1975, e traduzido e publicado no Brasil em 1985.
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De maneira sintética, Castoriadis acreditava que, naturalizando a relação entre técnica e trabalho humano, o marxismo acabaria esquecendo da historicidade de si mesmo. Para ele, toda analítica marxista, por mais heterodoxa que pudesse ser ou parecer, ainda estaria sustentada pela afirmação de uma unidade essencial do processo histórico, cuja origem intelectual remontaria a filosofia da história de Hegel. Pelo contrário, o paradoxo das sociedades humanas residiria na tentativa de cada época, de cada civilização, de produzir modos particulares e não universais de existência através da evocação e da revelação de novas significações que a precedem e a cercam. Dentro do marxismo, para ele, as tentativas de superar tais questões acabavam ainda concebendo a sociedade sob uma ordem unitária, totalizante e racionalista. E essa não era, obviamente, uma exclusividade do marxismo, de Althusser, Lukács ou Godelier; mas também das leituras e releituras de Platão, de Saussure, de Hobbes, de Freud (da “tradição herdada”) etc.
Ademais, numa época em que a maior parte da esquerda francesa preferiu fechar os olhos, ou, como prefere Tony Judt, se recusou a ouvir[9] e levar a sério as notícias que chegavam sobre o avanço do terror na União Soviética, Castoriadis foi uma rara exceção. Tendo experimentado pessoalmente a ameaça dos stalinistas, sabia do que falava quando dizia que o comportamento político dos comunistas podia ser explicado também em remissão ao aparato teórico que lhe fornecia terreno para sua autolegitimação na história:
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Várias vezes perguntou-se como os marxistas puderam ser stalinistas. Mas se os patrões são progressistas, contanto que construam fábricas, como não o seriam comissários construindo tanto e até mais? […] Pouco importa que esta situação [a burocratização e a racionalização da produção — movimento simétrico entre a Rússia soviética e o mundo ocidental] deixe subsistir alguns problemas filosóficos, já que não vemos como tais condições ‘infra-estruturais’ idênticas possam sustentar edifícios sociais opostos; que ela também não resolva alguns problemas reais, enquanto os operários insuficientemente maduros não compreendam a diferença que separa o taylorismo dos patrões e o do Estado socialista, também pouco importa. Passaremos por cima dos primeiros com a ajuda da ‘dialética’, calaremos os segundos a tiros de fuzil. A história universal não é o lugar da sutileza.[10]
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O estatuto filosófico do marxismo, fundamentado num materialismo que fornece à história uma explicação teleológica, ele argumentava, submeteria todo desenvolvimento social e histórico ao desenvolvimento técnico, de tal modo que, sob a ideologia do progresso inevitável rumo a “realização da história”, todo “excesso” — o expurgo, o terror, o genocídio — se explicaria por si só, ou se justificaria em termos de sua “eficácia revolucionária” em relação ao futuro imaginado. Da mesma forma, eliminando o conteúdo real da ação humana, substituindo-a pela pretensão teórica de uma verdade sempre a ser realizada, o marxismo como ideologia só poderia fechar seu sistema “pré-escravizando os homens a seus esquemas”[11]. Submetendo os indivíduos a posição de objetos passivos da verdade teórica, os intelectuais comunistas ocidentais não veriam dificuldades em justificar o totalitarismo soviético como a antecipação necessária da finalidade política estabelecida teoricamente.
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O leitor provavelmente já terá notado o desafio instaurado em revisitar a obra de Castoriadis hoje, pensando na pertinência de sua filosofia como crítica política do passado político ocidental, mas também como crítica possível do nosso presente. Como (e com) Hannah Arendt, Castoriadis entendeu que o mecanismo totalitário dependia da redução do domínio social-histórico (lugar da autonomia) ao domínio burocratizado da ordem unitária e totalizante (lugar da heteronomia). A história, assim, passa a ser entendida não como aquilo que “possui significado”, mas como o lugar no qual o significado é criado pelo anthropos. A capacidade de criação significativa pressupõe, no entanto, a existência de seu contrário: a possibilidade do sem-significado. A capacidade de criação significativa pressupõe, no entanto, a existência de seu contrário: a possibilidade de criação do sem-significado: o terror. “[P]odemos entender o Panteon ou Macbeth; mas não pode haver qualquer tipo de ‘entendimento’ de Auschwitz ou dos Gulágs”[12].
Depois de 1968, por razões que comentaremos melhor em outro momento, ficará cada vez mais marcante a presença em sua obra de temas aparentemente ligados mais às teorias psicanalíticas e da linguagem do que a política propriamente dita. Tendo de fato começado a estudar e praticar psicanálise durante essa década, é certo que Castoriadis protestaria: como seria possível segregar, ainda que de maneira formal, a realidade psíquica dos indivíduos do conteúdo social-histórico no qual as sociedades se desenvolvem no tempo? Como poderíamos fazer isso se a “questão social-histórica” só pode existir no interior dos domínios do imaginário individual e coletivo, e longe, portanto, de qualquer apreensão da sociedade e de seu funcionamento como um organismo? Para ele, o objeto próprio da questão filosófica sobre a sociedade e a história teria sido, durante boa parte da história da filosofia ocidental, “deportado para outra coisa que não ele mesmo, e absorvido por este”.[13]
Quando vemos hoje o apelo nostálgico de jovens (e de nem-tão-jovens-assim) pela imagem e pela presença dos totalitarismos do passado, de esquerda ou de direita (totalitarismos “igualitaristas ou anti-igualitários”[14], diria Ruy Fausto), nossa tarefa deve ser também a de recordar as palavras dos que já evidenciaram suficientemente as relações de filiação entre totalizações teóricas e totalitarismos práticos. Toda tentativa de constituição uma história unitária e total, de uma exaustiva e reducionista explicação sobre o funcionamento das sociedades, em múltiplos lugares e tempos, é expressão de modelos teóricos e explicativos dentro dos quais indivíduos não existem como tais, mas se apresentam essencialmente como expressões de estruturas que lhes são sempre anteriores e mais fundamentais (a economia, o poder, o discurso, as “leis da história” etc.).
O progresso, por si só, como (não) aprendemos no século XX, guarda consigo sempre a possibilidade de gestar seu avesso: a destruição fenomenológica ou física dos indivíduos, sua redução aos dogmas do dirigismo econômico, dos arbítrios do poder instituído, ou mesmo da “utopia liberal-conservadora”, para falar com Merquior. Ameaças tentaculares, sem coloração ideológica determinante, contra a afirmação da sociedade como espaço de autonomia individual e coletiva. Não à toa, o exercício do poder totalitário guardou historicamente tanta relação com as figuras individuais que ocuparam esses lugares de poder, o “Ególatra”, na definição de Alexander Solzhenitsyn, ou, em Arendt, “o Líder”. Nos dias de hoje, autocratas de esquerda e de direita parecem ter encontrado novas formas de afirmar e de gerir, na prática, o desejo de abolição do contraditório e de redução da sociedade ao princípio do poder heterônomo. Com Castoriadis, reconsideramos o perigo instaurado quando a hubris do progresso encontra a doutrina teórica do controle social.
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Notas:
[1] Meza, Julián. Cornelius Castoriadis, un revolucionario heterodoxo (Apresentação ao texto de Edgar Morin “Castoriadis, un titán del espíritu”, publicado na revista Vuelta, em fevereiro de 1998, logo após a morte de Castoriadis).
[2] Castoriadis, Cornelius. “Marxisme et et théorie révolutionnaire”. In: Socialisme ou Barbarie, n. 36, 1964, p. 3. Reproduzido em: Castoriadis, C. A Instituição Imaginária da Sociedade [IIS]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 [1975], p. 20.
[3] Sobre a história dos conflitos entre stalinistas e trotskistas na Grécia ver: Stinas, Agis. “Memoirs: A Revolutionary in 20th Century Greece”. Revolutionary History Online, 2005. Disponível em <https://www.marxists.org/subject/greek-civil-war/revolutionary-history/stinas/memoirs.htm>. Newsinger, John. “Churchill, Stalin, and the Greek revolution.” Monthly Review, vol. 50, n. 11 1999); “Trotskyism and Stalinism in Greece”. Revolutionary History, vol. 3, n. 3, 1991. Disponível em: <https://www.marxists.org/history/etol/revhist/backissu.htm#v3n3;>.
[4] Kanellopoulos, Panayiotis. “Max Weber and Heinrich Rickert”, Archive of Philosophy and Theory of Sciences, vol. 4, Athens, 1933, p. 365–370.
[5] Gerolymatos, André. Red Acropolis, Black Terror: The Greek Civil War and the Origins of Soviet?American Rivalry, 1943–1949. New York: Basic Books, 2004.
[6] Jollivet, Servanne Jollivet & Manitakis, Nicolas Manitakis (ed.) Mataroa 1945: du mythe à l’histoire. Atenas: École française d’Athènes, 2020.
[7] Ver: Raflin, Marie-France. Socialisme ou Barbarie, du vrai communisme à la radicalité. Tese de Doutorado pelo Instiut d’études politiques de Paris, 2005; Gottraux, Phillipe. Socialisme ou Barbarie. Un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre, Payot, 1997; Bianchi, Guilherme. Marxismo e crise: Socialismo ou Barbárie na crítica de esquerda do pós-guerra francês (1946-1967). Dissertação de mestrado em História – Departamento de História – Universidade Federal do Paraná, 2015.
[8] Castoriadis, C. Uma sociedade à deriva. Aparecida: Ed. Ideias e Letras, 2006, p. 29.
[9] Judt, Tony. Passado Imperfeito: um olhar crítico sobre a intelectualidade francesa do pós-guerra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 430.
[10] Castoriadis, C. IIS. 1982 [1975], p. 74.
[12] Castoriadis, C. Os destinos do totalitarismo & outros ensaios. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 9.
[13] Castoriadis, C. IIS. 1982 [1975], p. 2012.
[14] Fausto, Ruy. “Em torno da pré-história intelectual do totalitarismo igualitarista”. Lua Nova, São Paulo, n. 75, 2008.
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