por Isabella Passos
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Alguns podem pensar que esta não seja uma discussão realmente importante ao debate público, por entender como exagero ou conversa de maluco. Quem, em sã consciência, poderia cogitar a ideia de abster-se de proteger a si e a todos que ama? Ainda mais por se tratar de uma doença com riscos significativos à saúde e à vida de seus infectados? Esse é um tipo de negativa que só pode alcançar aqueles que não entenderam as implicações de um vírus amplamente disseminado para o qual ainda não há anticorpos disponíveis.
Embora o debate pelo “direito de não tomar vacina” seja motivado, principalmente, pelos deseducados para o autocuidado, para o respeito pelas regras sanitárias e para a prática distanciamento social que visam controlar o avanço do coronavírus, ainda assim, há um espaço legítimo de discussão, tendo em vista uma razoável desconfiança contra laboratórios e instituições de saúde. Quem lida com bioética conhece bem algumas das atrocidades ocorridas na silenciosa relação entre médicos, pesquisadores, pacientes e sujeitos de pesquisa. Contudo, diferentemente das versões conspiratórias dos cavaleiros do apocalipse, é conhecido também os vários mecanismos introduzidos nas investigações médico-científicas, a fim de conferir maior segurança e confiabilidade aos seus resultados e produtos. Porém, tal realidade não significa que toda vacina seja 100% segura. De fato, não é. A medicina é uma ciência probabilística e a vacina uma estimulação artificial passível de limites, considerando que cada organismo humano reserva a si seus termos de equilíbrio. Há uma complexidade incômoda no encontro da episteme médica com o alvo do benefício da sua arte e ter tal compreensão nos livra da tirania ingênua de exigir que a ciência nos entregue o que ela ainda não pode nos entregar. Por outro lado, também nos motiva a celebrar cada uma de suas conquistas, enquanto avanços de inventividade, proteção e promoção da ecologia humana.
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Outro ponto que pode ter engrossado essa querela contra as vacinas é o fato de que, nossa geração não teve que lidar seriamente com incertezas associadas a doenças infecciosas. Somos uma geração imune a muitas moléstias, em decorrência de um longo histórico de campanhas vacinais, inclusive, com erradicação de algumas enfermidades bastante nocivas ao nosso organismo. No entanto, por incrível que pareça, esse fato pode ter feito surgir uma atitude desleixada por parte de muitos que vivem como se infecções não existissem ou que não trouxessem consequências graves aos infectados. Aquele que nega a necessidade de imunização por meio da vacina parece viver num mundo fantástico, onde doenças indesejáveis desaparecem num passe de mágica. Contudo, o atual coronavírus não é um elemento fictício ou de fácil superação. Estudos indicam que até 40% das pessoas que contraíram a Covid-19 apresentam sequelas neurais, denotando tratar-se de vírus intrusivo neuronal. Em apenas dez meses, o Brasil já registra quase 180.000 mortes, e, além deste número alarmante, teremos que lidar futuramente com os desdobramentos associados às sequelas de quem sobreviveu à Covid-19.
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Com este panorama em vista, podemos perguntar: por que cada um de nós deveria então vacinar-se contra a Covid-19? Esclareço que não me interessa aqui discutir a obrigatoriedade do autocuidado e a existência do paternalismo justificado. Quanto ao cuidado, cada um deveria ser o mais radical protetor de seus melhores interesses e dos interesses de bem-estar daqueles que ama. Cuidar de si e do outro expressa integridade moral e, portanto, deveria ser uma premissa moralmente desejável por cada um de nós. No caso da vacina contra a Covid-19, em resumo, quero ressaltar a moralidade de não causar prejuízo aos outros, uma vez que existem pessoas que não poderão se proteger de um risco relacionado à comunidade não imune da qual fazem parte. Liberais como Stuart Mill (1806-1873) e Joel Feinberg (1926-2004) não teriam qualquer dificuldade em persuadi-lo a respeito de sua responsabilidade em não gerar danos a pessoas iguais a você.
Nesse sentido, é preciso lembrar que há pessoas que por inúmeros motivos não podem vacinar-se. Estariam enquadrados nesta categoria, os neonatais, aqueles com imunidade comprometida por razões médicas intransponíveis ou as pessoas vulneráveis a algum componente da vacina. Indivíduos nessas situações estão inocentemente vulneráveis ao vírus, independente de desejarem vacinar-se ou não. Já que não podem ser submetidos à vacinação, dois caminhos deverão ser tomados por eles: retirar-se da comunidade humana evitando o malefício potencial pelo contato com pessoas potencialmente infectadas (principalmente, os assintomáticos) ou pertencer a uma comunidade onde exista a imunidade coletiva, a famigerada “imunidade de rebanho”.
É por considerar as pessoas impedidas de serem vacinadas que a obrigatoriedade moral da vacinação deve ser assimilada como responsabilidade individual, tendo como base o dever de não prejudicar cada um dos indivíduos formadores de uma comunidade ou sociedade. E este é um imperativo contra o qual não há um argumento moralmente defensável, ainda mais, no que concerne à exposição de pessoas vulneráveis e, desta forma, os mais suscetíveis aos riscos. Se nossas escolhas autônomas e livres prejudicam outras pessoas — colocando em risco à saúde pública ou exigindo recursos escassos para tratamentos desnecessários, por exemplo — outras pessoas devem restringir nosso exercício de autonomia e liberdade. E na condição de você ainda sentir-se no direito de não se vacinar, direito legítimo, também há dois caminhos que você pode tomar: retirar-se da comunidade humana já que constituiria um risco potencial aos grupos não imunes — pessoas tão dotadas de direitos quanto você —, ou arranjar um dispositivo que lhe eximisse de ser um potencial transmissor de patógeno aos outros. Quem sabe um moderno escafandro?
Com efeito, podemos colocar nosso problema relacionado à vacinação da seguinte maneira:
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1. As doenças contagiosas podem resultar em danos (não triviais) e podem ser transmitidas a outras pessoas por meio de ações mesmo não intencionais (pelos assintomáticos).
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2. Isso pode ser evitado com antecedência através da vacinação de indivíduos potencialmente transmissores da carga viral (onde exista vacina disponível).
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3. Temos a obrigação moral de não causar danos aos outros por meio de nossas ações ou omissões.
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4. Considerando os tópicos 1 e 2, um indivíduo pode reduzir o risco de causar prejuízos (não triviais) a outras pessoas por meio da vacinação para doenças imunopreveníveis.
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Logo: tendo em vista as premissas 3 e 4, somos moralmente obrigados a receber vacinas contra doenças contagiosas (graves), quando disponíveis. E a vacina contra Sars-CoV-2 virá em breve.
É claro que há muitas questões a serem exploradas diante de uma problemática como a vacinação em massa. No entanto, o apoio à obrigatoriedade da vacinação vem do fato de que, ao negar a vacina, o indivíduo não coloca em risco apenas a sua saúde. Deixar de vacinar-se não é como deixar de consentir com uma transfusão de sangue. Neste último caso, em tese, é apenas o próprio indivíduo que é prejudicado, mas opondo-se à vacinação, outros podem ser prejudicados como resultado da escolha desse indivíduo. Aguardemos, então, a chegada da vacina contra o Sars-CoV-2 não deixando também de receber aquelas que já estão disponíveis no programa de imunização de nosso país.
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