Ao leitor do Estado da Arte, apresentamos o primeiro capítulo da obra ‘A Verdade é Insuportável: Ensaios sobre a Hipocrisia’, de Andrei Venturini Martins. Nossos agradecimentos ao autor e à Editora Filocalia.
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A Verdade é Insuportável
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“O homem não é, portanto, senão disfarce, mentira e hipocrisia.”[1]
– Blaise Pascal
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E se houvesse um surto de verdade? Imagine se todos resolvessem dizer a verdade em seus trabalhos? O que o empregador diria de seus funcionários? O que os funcionários diriam de seu chefe? Como reagiríamos à pergunta mais comum do cotidiano: – Tudo bem com você? Correríamos o risco de escutar: – Não! Tudo vai mal! Diante de um surto de verdade, falaríamos aquilo que causaria danos a nós e escutaríamos o que não gostaríamos de escutar.
Não há dúvida de que não falamos tudo aquilo que pensamos, nem revelamos todas as nossas imperfeições. Mesmo quando estamos cientes de nossas mazelas desejamos ser estimados pelos outros e, mais do que isso, nos consideramos dignos de estima. A verdade sobre nossas imperfeições – os desejos mais sangrentos, as vinganças cruéis, as traições sutis, as fofocas devastadoras, a inveja, a cobiça, a preguiça, o desejo de poder, o orgulho – é cuidadosamente escondida dos outros homens. Empreendemos um grande esforço a fim de encobrir os nossos defeitos tanto dos outros quanto de nós mesmos. Todas as misérias que não toleramos escondemos daqueles que nos rodeiam e, obcecados pela repetição hipócrita das mentiras que divulgamos, começamos a acreditar nestas distorções que criamos quando falamos de nós mesmos. É desta maneira que produzimos “uma ilusão voluntária”,[2] como bem destacou Blaise Pascal.
A ilusão que criamos sobre nós é um obstáculo que não nos permite reconhecer nossos defeitos, a verdade sobre nosso caráter, impelindo-nos a odiar aqueles que nos revelam a realidade que não suportamos. Não nos agrada que os outros mintam para nós, mas se alguém nos diz a verdade, desnudando a precariedade que não enxergamos, o odiamos abertamente. Queremos que os outros reafirmem a imagem ou a máscara que forjamos para viver socialmente. E como inventamos tal máscara? Repetimos no cotidiano aquilo que gostaríamos de ser, a tal ponto que, com o tempo, acreditamos que somos aquilo que fantasiamos. Tal máscara esconde inúmeras características que repugnamos e que são inaceitáveis socialmente. Porém, quando alguém quebra esta mentira de caráter, a fim de nos livrar da ignorância de nossas imperfeições, o acusamos de injusto. No entanto, este indivíduo que revela abertamente o que não queremos ver e ouvir é aquele que deveríamos chamar de amigo.
O amigo é aquele que diz a verdade sobre nós e não repete o movimento de autoengano que promove uma sociabilidade relativamente pacífica e medíocre. Na realidade, contudo, cultivamos uma aversão à verdade: dizê-la é desvantajoso para aqueles que a dizem. É certo que não queremos que ninguém minta para nós, mas mentimos para os outros escamoteando os nossos defeitos. Portanto, se nos mentem, repudiamos o mentiroso, e se nos dizem a verdade, odiamos quem no-la diz. Ora, o ser humano é muito contraditório, e tão instável que não sabe nem mesmo o que quer.
Um surto de verdade traria a qualquer cidade uma epidemia de confusão. A verdade não é deste mundo e, até onde sabemos, de nenhum outro. Onde reina a verdade não há civilização. Ser civilizado é, em certa medida, fazer um pacto com a mentira que funda as relações sociais e, por consequência, as mantêm. Se, por algum milagre, alguém conseguisse impedir que a mentira fosse o fundamento da vida em sociedade, será que conseguiria fundar a civilização em algum outro critério que pudesse gerar um mínimo de convivência pacífica e ordenada? Por exemplo: todos devem revelar seus vãos pensamentos indiscriminadamente. Se assim o fosse, não tenho dúvida de que a vida em sociedade seria um caos! Sublinho, porém, ao leitor apressado, que não se trata de sustentar uma apologia à mentira, mas indagar o quanto de verdade suportamos para viver em sociedade, como indagou Nietzsche. Por hora, não podemos esquecer que o engodo é parte das relações sociais e, negar isso, é confessar a nossa própria hipocrisia.
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É claro que uma mulher independente não irá dizer tudo que pensa de seu chefe, pois a satisfação da sua independência financeira depende do seu silêncio cotidiano: uma histérica falando a verdade é uma trabalhadora no olho da rua. Quantos “sapos” um pai de família tem que engolir para continuar ganhando a vida? Mas levar desaforo para casa para manter o ganha-pão não diz respeito somente à classe operária: o quanto de propina teria que pagar um empresário para continuar no mercado? Quanto devo para aquele que me “arrumou” este emprego público do qual desfruto tranquilamente? Qual será o preço a pagar àquele que elaborou o edital de um concurso público para que minha aprovação fosse certa? Quanto os inúmeros “companheiros” pagam para continuar no poder? O Brasil é o resultado de uma péssima geração de políticos e eleitores.
Caro leitor, se nas negociatas materiais a verdade se esconde, imagine então nas espirituais, coordenadas por ratos de sacristia que usam da fé popular para vender seu peixe. Um rato de sacristia é formado a partir de três pilares fundamentais: adular quem tem mais poder, administrar os mercados espirituais e esconder suas taras. Adula os poderosos para se manter no poder. Um padre corrupto, por exemplo, é o senhor espiritual tanto do prefeito quanto do presidente – quem fala mal da Igreja perde a eleição –, mas também dos pobres e miseráveis. Ele tem o poder efetivo quando se alia aos grandes, mas também o tem quando coordena a massa em tempos de democracia da maioria. Em inúmeros acontecimentos a Igreja esteve ao lado dos reis e dos poderosos e, quando não esteve, vivia da crença e do labor dos miseráveis. Não tenham dúvida de que, quando houver fome no mundo, os últimos a morrer serão os mercadores espirituais. Você conhece um religioso que morreu de fome? O dinheiro, este deus a quem tantos se dobram, é tão poderoso que os futuros líderes de comunidade cursam durante seu curso de Teologia uma disciplina chamada “Administração Paroquial”. Por exemplo, o ônus do fracasso administrativo de uma paróquia é sempre do padre, mas este o transfere aos paroquianos, assim como o ônus de uma diocese é sempre transferido ao povo. Pergunte a um bispo, por exemplo, o quanto ele paga aos seus funcionários e aos professores que ministram aulas de Filosofia em sua diocese. O leitor verá como a hipocrisia perdura no alto escalão da Santa Madre: é uma marca de alguns herdeiros de Pedro e Paulo.
Outra característica comum dos ratos de sacristia é a tarefa árdua de escamotear os crimes, os mesmos pelos quais o papa Francisco pediu perdão em 2014, publicamente e sem papas na língua, pois, quando a verdade não se pode mais esconder, o mínimo que um cristão poderia fazer é pedir perdão. Não é difícil constatar que, no decorrer da história, não foram poucos aqueles que denunciaram corajosamente este tipo de cristianismo corrompido: no contemporâneo, os pais de inúmeros ex-coroinhas abusados nos templos norte-americanos só verbalizaram aquilo que, no século XVIII, Marquês de Sade já sabia, ou seja, as sacristias dos templos estão impregnadas de ratos. Todavia, a grande maioria não conhece suas máscaras: são lobos vestidos de cordeiros. Há “lobos” que quando estão de férias viajam para lugares longínquos a fim de abrir o fosso de taras que os habitam sem trazer nenhum problema para a imagem hipócrita de seu apostolado: trata-se de fazer sujeira no quintal dos outros, onde ninguém os conhece. Busque verificar o que está por detrás de um “rato de sacristia” que é transferido bruscamente de seu local de trabalho, de sua igreja: em muitos casos, há miséria moral na história. Portanto, é praxe do alto clero o ato de jogar o lixo para debaixo do tapete, isentando-se de encarar a sujeira dos esgotos que correm sobre os pés de seus “santos” homens.
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Mas não posso ser injusto, e nem quero. Generalizações são sempre baratas, devastadoras e descomprometidas com a verdade, pois não zelam pela ponderação, valor importante para quem avalia seu próprio tempo. Por isso é justo lembrar que aqueles que entram nos seminários com firme intenção, perseverando quando se tornam sacerdotes, assim como aqueles que assumem o bispado ciente do valor de sua vocação, muitas vezes têm seu “chamado de Deus” retaliado, vingado, desprezado, violentado e, por fim, aniquilado. Os ambientes religiosos estão criando um habitat para covardes, mas milagrosamente ainda aparecem heróis. Vale mencionar e fazer justiça à lembrança daqueles religiosos que ainda lutam para perpetuar valores que enobrecem a vida, que ainda estão dispostos a tirar os seus mantos e cobrir os “desconfigurados” jogados nas sarjetas, que abrem mão de sua vida em nome dos mais necessitados, que não fazem da classe social um critério determinante daqueles que devem ser acolhidos ou não, que disponibilizam seu tempo em função do desvalido e que vivem o âmago heroico da sua vocação inicial, ou seja, aquela disposição de dar a vida em nome de uma causa que consideram sobrenatural. Tais religiosos sabem que com a fé e o dinheiro suado do fiel não se brinca!
Leitor, eu não quero dar moleza aos medíocres, e enfatizo que detectar a decadência já é um bom sinal. O homem, não importa seu status social, deseja ansiosamente ser estimado e bajulado; por este motivo, adula aqueles que estão ao seu redor a fim de ser adulado, ama para ser amado, esconde os verdadeiros defeitos dos outros desde que o seu não seja revelado, bajula para ser bajulado, odeia a verdade e gosta de ser enganado quando o engodo lhe convém. Uma bomba de verdade poderia dissolver parte da ordem social, todavia, verdade em demasia traria problemas, já que o fundamento da vida social é também a mentira.
Termino lembrando saudosamente Blaise Pascal: “Assim a vida humana não passa de uma ilusão perpétua; não se faz mais do que se entre-enganar e se entreadular”.[3] A verdade é insuportável.
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Indicação de leitura: MARTINS, Andrei Venturini. A Verdade é Insuportável: ensaios sobre a hipocrisia. São Paulo: Editora Filocalia, 2019.
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Notas:
[1] Blaise PASCAL, Pensamentos. Laf. 978; Bru. 100.
[2] Blaise PASCAL, Pensamentos. Laf. 978; Bru. 100.
[3] Blaise PASCAL, Pensamentos. Laf. 978; Bru. 100.
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