por Desidério Murcho
No livro The Intelligence Trap (Hodder & Stoughton, 2019), David Robson divulga vários estudos recentes de psicologia cognitiva que exploram aspectos do bom desempenho cognitivo humano que vão além das métricas do quociente de inteligência (QI). O ponto de partida é a constatação de que ser meramente inteligente no sentido analítico do termo, que é precisamente o que os testes de QI medem apropriadamente, não é suficiente para ter um bom desempenho cognitivo. Na verdade, vários estudos mostram que em alguns casos as pessoas com um elevado QI caem mais facilmente em várias armadilhas cognitivas, de entre as quais se destaca a racionalização (no sentido negativo do termo), que apresentei brevemente no oitavo capítulo de Lógica Elementar (Edições 70, 2019): a invenção de razões de fantasia para dar uma aparência de fundamentação a ideias que não se está realmente disposto a examinar honestamente. A lição mais importante que se colhe dos estudos recentes de psicologia cognitiva é talvez a inacreditável inépcia e estupidez humanas, que se manifesta sempre que se baixa as defesas, e por mais espertalhona que a pessoa julga que é, e até mesmo que o seja.
A boa notícia, porém, é que as pessoas conseguem melhorar muitíssimo o seu desempenho cognitivo caso sejam apropriadamente orientadas, em harmonia com os resultados experimentais que se têm vindo a acumular nas últimas décadas. E não apenas as pessoas, individualmente, mas também as instituições e o ensino. Com respeito a este último caso, um exemplo inspirador mencionado por Robson é a Academia das Virtudes Intelectuais, uma escola norte-americana fundada recentemente pelos filósofos Jason Baehr e Steve Porter, na qual se articulam aspectos importantes da epistemologia das virtudes e da mais recente investigação científica acerca do desenvolvimento cognitivo.
A expressão portuguesa “epistemologia das virtudes” traduz algo inadequadamente o inglês virtue epistemology, que não diz respeito ao estudo do conhecimento das virtudes morais, como a expressão portuguesa parece indicar, mas antes ao estudo das virtudes epistémicas: as atitudes e disposições de carácter que promovem a descoberta da verdade. Como expliquei brevemente em Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (Edições 70, 2016), quando se começa a considerar cuidadosamente o conceito de prova ou justificação — ou seja, o tema central da epistemologia, que é afinal de contas, na lapidar expressão de Jonathan Dancy, o estudo do nosso direito às crenças que temos — rapidamente se chega à ideia de que o mais relevante é a integridade epistémica do próprio agente, pois nunca há justificações ou provas que sejam tão robustas que sejam insusceptíveis de distorção, erro ou má-fé. Em última análise, é da disposição inequívoca do agente para encontrar a verdade que tudo depende, e sem ela a racionalização e outros truques de caserna têm sempre uma alta probabilidade de se tornar dominantes: não há provas à prova de vício epistémico. Além disso, por melhores provas que se tenha, é a realidade e só a realidade que tem a última palavra, e nem sempre coincide com o que temos boas razões para pensar que é verdadeiro — este é um dos aspectos cruciais da nossa fragilidade epistémica.
A epistemologia das virtudes é assim uma abordagem muitíssimo promissora. Porém, não será afinal mais uma investigação filosófica muitíssimo teórica e sem qualquer conexão relevante com o mundo chão? A Academia das Virtudes Intelectuais é uma resposta firmemente negativa a esta pergunta, pois consiste em orientar o ensino por aqueles aspectos da epistemologia das virtudes que foram experimentalmente vindicados pela psicologia cognitiva mais recente. Naquela escola, os alunos não se limitam a aprender os conteúdos e competências tradicionais da matemática, por exemplo; aprendem também a cultivar e a reflectir sobre algumas das virtudes epistémicas capitais, e são estas que vale a pena apresentar brevemente.
A curiosidade intelectual é a virtude primeira, que nos faz tentar compreender melhor as coisas e estudá-las com paixão. Quine mencionou algures que quem faz filosofia não por ter curiosidade intelectual mas por outros motivos está na profissão errada, mas o mesmo seria razoável dizer de muitas outras profissões. O gosto de descobrir e explorar ideias e teorias, factos e explicações, fenómenos e problemas em aberto, é o que alimenta a vida de muitos seres humanos que estão fascinados com a compreensão profunda das coisas — seja nos seus aspectos mais teóricos, seja mais práticos. À curiosidade intelectual não se opõe sobretudo a apatia da falta de curiosidade, como se poderia pensar, mas a curiosidade por tolices sem valor genuíno, e que nada contribuem para o florescimento da própria pessoa — e é precisamente essa curiosidade doentia pela tolice vazia de mais um escândalo entre políticos, futebolistas e outros colunáveis que alimenta grande parte da imprensa e das redes sociais, o que nada de bom augura para o futuro da humanidade.
Uma segunda virtude epistémica de importância capital é a humildade intelectual: estar sempre disposto a assumir os nossos erros e limitações. Qualquer compreensão preliminar dos modos humanos mais robustos de justificar ou provar crenças põe a nu a nossa imensa fragilidade epistémica: nenhum método é à prova de bala, e não há porta de saída, como se imagina por vezes nas áreas mais anémicas da vida intelectual, que nos permita abandonar o trabalho inevitável e sempre inacabado de concluir umas coisas com base noutras. Só nos resta tentar fazê-lo o melhor que conseguirmos, sempre dispostos a rever conclusões e métodos, pressupostos e teorias. Esta humildade é uma das defesas contra a armadilha em que se cai amiúde quando se é muito inteligente e se domina uma dada área: várias experiências científicas mostram que nestas condições as pessoas mais inteligentes e competentes cometem erros crassos precisamente devido à sua arrogância, erros que outros mais humildes e até menos inteligentes não cometem. A humildade epistémica é uma virtude tanto mais difícil de cultivar quanto mais a pessoa se entrega à actividade doentia mas comum de usar o conhecimento para ganhar prestígio.
Uma terceira virtude, que tem uma ressonância filosófica óbvia, é a autonomia intelectual: a capacidade para pensar por si próprio e para procurar activamente informação relevante e compreensão genuína. A virtude da autonomia intelectual não é de modo algum o vício da atitude solipsista de pretender saber física por si mesmo, desprezando o estudo atento do trabalho dos físicos, mas antes a aceitação da responsabilidade pela sua própria educação e crescimento cognitivo, e a rejeição de um conhecimento postiço, que serve exclusivamente para alimentar algo que não a compreensão profunda e autêntica das coisas. A falta de autonomia intelectual mostra o seu desagradável rosto sempre que se copia sem pensar os termos técnicos da língua inglesa, a sua estrutura sintáctica e qualquer tolice indefensável que proclama um intelectual de renome, só porque tem nome.
Em quarto lugar nesta lista de virtudes epistémicas fundamentais encontra-se a atenção intensa, e este é um dos aspectos em que a pessoa epistemicamente virtuosa mais se encontra em guerra aberta contra o mundo mediático moderno. Os seres humanos conseguem feitos impressionantes — mas não sem as condições apropriadas. Ninguém ganha jogos olímpicos se não disciplinar a sua vida, orientando-a completamente pela dedicação que os treinos lhe exigem, e isto é óbvio talvez para qualquer pessoa. Menos óbvio é que o exercício apropriado da racionalidade — condição importante para o florescimento humano — exige também dedicação e colide com a atenção fugaz que salta de irrelevância para irrelevância, num desfilar sem fim de notícias e entretenimentos concebidos para chamar irresistível e instantaneamente a atenção, apesar de serem em absoluto irrelevantes para a própria pessoa. O exercício apropriado das nossas capacidades cognitivas exige dedicação porque da mesma maneira que somos incapazes de fazer uma simples conta de dividir ao mesmo tempo que conversamos frivolamente sobre a mais recente tolice do político do momento, somos também incapazes de crescer como seres humanos sem limitar cuidadosamente a nossa atenção ao que a merece. A dificuldade é que uma parte substancial da economia actual vive de nos chamar a atenção para coisas que, a bem da verdade, não são relevantes para o nosso florescimento — mas são doentiamente atraentes.
Ser cuidadoso e tentar ser rigoroso, dando sempre atenção aos erros e armadilhas cognitivas sabidamente inevitáveis, é uma quinta virtude de grande importância. Nenhuma compreensão da epistemologia é adequada, e nenhuma proposta promissora, se não incluir processos contínuos de correcção de erros. Quem gosta de exibir-se com opiniões muito chocantes e rápidas porque pensa que isso mostra a sua grande sagacidade mais não faz que provar a sua tolice. Os feitos cognitivos humanos conseguem-se aos ombros do cuidado e do rigor, que não são senão as armas usadas para combater os erros inevitáveis em seres profundamente falíveis como nós.
Uma sexta virtude é ser exaustivo: procurar explicações completas e uma compreensão integral, opondo-se às meras aparências das respostas fáceis e simplistas que se vê todos os dias na televisão e no YouTube, e se lê nos jornais e no Facebook. Todos nós formamos crenças estatísticas, por exemplo, sobre se há mais ou menos crime nesta cidade que estamos visitando em comparação com outra. Porém, estas crenças são sempre falácias estatísticas porque se baseiam exclusivamente na observação casual — anecdotal evidence, em inglês. Claro que é mais fácil insistir nessas impressões superficiais, e é talvez algo irritante assumir que sem estudar cientificamente as coisas as impressões quotidianas são amiúde de valor cognitivo nulo, ou perto disso. E é também claro que ser exaustivo é uma virtude que, a ser praticada, eliminaria da vida contemporânea os intermináveis talk-shows televisivos em que se fala de tudo sem estudar seja o que for. Porém, uma vez mais, é preciso optar entre o exibicionismo mediático que nada contribui para o florescimento humano, e uma vida que leva a sério a tarefa de viver bem a vida.
A abertura de espírito é a sétima virtude epistémica que se cultiva na mencionada Academia, e é talvez uma daquelas em que a atitude do agente mais faz a diferença. Uma maneira de compreender bem de que se trata, para lá do lugar-comum meramente verbal (afinal, ninguém diz de si próprio que não tem um espírito aberto), é considerar a maneira apropriada de reagir quando se recebe críticas às ideias que consideramos mais importantes. A tentação aqui é cair na rejeição de quaisquer críticas, inventando refutações de fantasia — ou, no extremo oposto, aceitar acriticamente todas as críticas como se fossem relevantes. A abertura de espírito dita que as críticas sejam acolhidas, e que se procure sempre encontrar nelas qualquer coisa de construtivo que nos permita crescer em compreensão — mesmo que a intenção original do crítico seja malévola. A abertura de espírito envolve a rejeição de quaisquer filiações, ideológicas, filosóficas ou outras, que não nos permitam levar a sério ideias, factos e provas favoráveis a “eles” — esse pronome mágico que encerra em si o oposto da abertura de espírito.
A oitava virtude epistémica é a coragem intelectual. Não se trata aqui de defender irresponsavelmente ideias extravagantes para se dar ares de original, mas de enfrentar o medo de fracassar e o embaraço público, ou até o opróbrio. A coragem intelectual decorre directamente da visão tão objectiva quanto possível de nós próprios, da situação em que nos encontramos e do que contribui ou não para a descoberta da verdade. Quem acredita que tem provas fortes a favor de uma ideia ou prática amplamente rejeitada, tem o dever epistémico de divulgar candidamente essas provas e para isso precisa de coragem. É quase sempre mais fácil ir na onda do que é comum dizer, fazer e aceitar, e isso não exige qualquer coragem — mas em contrapartida em nada contribui para o nosso crescimento cognitivo.
A última das virtudes epistémicas cultivadas na referida Academia é a tenacidade intelectual: enfrentar activamente os desafios e não deixar de tentar ser bem-sucedido. Alguns dos resultados experimentais mais reveladores mostram que estudantes com menos QI conseguem por vezes melhores resultados que os outros simplesmente porque têm mais tenacidade. Daí que uma das mais estafadas ilusões educativas contemporâneas seja a ideia de que o melhor é aprender a brincar, sem esforço e com muitos recursos multimédia; na verdade, o ensino que mais contribui para o florescimento dos estudantes é o que os obriga a darem o seu melhor, ou seja, o que os obriga a cultivar a tenacidade. Quem diz defender o ensino de excelência e rejeita o esforço dos estudantes, ou é ignorante ou malévolo.
A esta interessante e bem pensada lista de virtudes epistémicas fundamentais acrescentaria eu a integridade intelectual: procurar activamente distinguir o que é relevante para a descoberta da verdade e nunca pôr a actividade intelectual ao serviço do prestígio. Uma das doenças mais marcantes da humanidade é a tendência para pôr o que tem mais valor ao serviço do que tem menos, e é isso que faz um músico preferir impressionar os colegas ou o público, em vez de se entregar à criação do que ele considera musicalmente de valor. Na vida intelectual em geral a falta de integridade instrumentaliza as actividades que deveriam estar ao serviço da procura da verdade, e põe-nas ao invés ao serviço do prestígio. Assim, um intelectual preocupa-se mais com a opinião dos seus colegas do que com a qualidade da sua contribuição para uma compreensão mais integral das coisas, e dá mais atenção aos tiques académicos que assinalam a pertença à tribo do que à relevância da sua contribuição para o progresso cognitivo.
Esta breve exposição de dez importantes virtudes epistémicas deveria mostrar que não se trata de modo algum de cumprir deveres penosos, mas de cultivar hábitos, atitudes e traços de carácter que promovem o nosso próprio florescimento, e também o dos nossos semelhantes. Subjacente à ética das virtudes está uma concepção aristotélica da vida moral, que não a encara simplesmente como o cumprimento de deveres mais ou menos inflexíveis, como nas éticas de inspiração kantiana, nem como a promoção imparcial da felicidade de todos, como nas éticas de inspiração milliana. Do ponto de vista da ética das virtudes, a vida moral é sobretudo uma questão de descobrir e nessa base cultivar o que promove o florescimento humano, na acepção mais plena da expressão.