por Cicero Romão Resende de Araújo
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A morte retirou Ruy Fausto de nosso convívio como se uma mão furtiva e lépida tivesse entrado e saído pelo céu deste mundo, levando junto o nosso amigo. Fica não só a dor, a sensação de algo que foi arrancado de nós com violência, mas também o sentimento do absurdo.
É verdade: “entramos na vida pouco a pouco”. O que não significa entrada suave. Pelo contrário, é sempre mais ou menos áspera, como o mergulho de uma cápsula espacial na atmosfera da Terra. Mas assim como a cápsula é dotada de uma couraça protetora para viabilizar o ingresso e amortecer a aterrissagem, a vida nos dota da proteção e do amor materno.
Muito antes do que costuma acontecer com todos nós, Ruy Fausto perdeu esse manto protetor. Que choque e que angústia deve ter sido se ver despido dele tão cedo. Muito cedo, portanto, Ruy Fausto sentiu na própria pele o vento frio do absurdo. Em compensação, também cedo, antes do que costuma acontecer com todos nós, Ruy começou a aprender a lidar com o vazio que isso produz. De alguma forma, a lição dolorosa lhe foi indicando um caminho, um estilo de viver. Em vez de dar as costas para o absurdo, em vez de fingir que não estava ali, aprendeu a encará-lo de frente, a desafiá-lo, a se rebelar contra ele.
Na luta, um bom aprendiz aprende a extrair força da força de seu adversário. Mas o que dizer de um adversário que a gente sabe que vai vencer, mais cedo ou mais tarde? Não seria mais simples entregar os pontos logo de partida, resignar-se – portanto, esquecer o assunto? Mas aqui encontramos um dos traços marcantes do estilo Ruy Fausto: viver, –– não simplesmente viver, mas buscar uma vida plena – é uma forma de teimosia. E digo para vocês de experiência própria: como era delicioso terminar mais um dia de teimosia num bate-papo com Ruy, dando largas risadas, rindo de nós mesmos! Mas o cúmulo da teimosia residia exatamente nisto: aplicar a inteligência – em particular a precisão analítica de sua inteligência – para tentar compreender. Daí, talvez, o fascínio dele pela contradição.
Por outro lado, que bálsamo também era terminar mais um dia de teimosia vendo Ruy desenhar o plano dos próximos dias, mesmo constatando quão pouco poderia ser feito, quão pequena a contribuição! Mas vejam bem: rir, só no final do dia, porque, enquanto houvesse um raio de sol, lá estava ele, compenetradíssimo, em geral dentro de uma biblioteca, encarando seus desafios e executando suas tarefas com a maior seriedade e o maior profissionalismo. Mas quais eram essas tarefas? Estudar o marxismo? Claro, desde que se entendeu por gente e até o fim. Criticar o marxismo? Idem. Defender os ideais mais caros da esquerda? Sim. Criticar essa mesma esquerda? Sem dúvida. Discutir, esmiuçar, esquadrinhar um texto que considerasse importante, logo, pegar no pé de quem discordava? Sim, aliás mil vezes sim. Porém, por mais distintas que fossem essas tarefas, pequenas ou grandes, havia algo comum, algo que atravessava igualmente todas elas: a luta contra a indiferença. Essa era a tarefa mais importante, a tarefa das tarefas.
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Ruy Fausto podia enfrentar com paixão, e às vezes até com raiva, um oponente de direita, um oponente reacionário e mesmo um oponente de esquerda. Mas o adversário mais formidável era mesmo a indiferença. Porque os não-indiferentes pelo menos se arriscam a dizer algo. A indiferença não: a indiferença é silenciosa. A indiferença é o default, é o peso imenso da inércia. E é principalmente aproveitando-se dela que todos os candidatos a ditador, inclusive os mais medíocres, encontram a chance de se impor e emplacar seu ataque à liberdade.
Entre as indiferenças, vale destacar aquela que Ruy considerava peculiarmente brasileira: a indiferença em relação à palavra. O que mais o incomodava não era que essa ou aquela palavra fosse dita, por mais que dela discordasse, mas que essa mesma palavra não fosse devidamente discutida, como se dizê-la não tivesse qualquer relevância ou qualquer consequência, para o bem ou para o mal. Mas só quem um dia se deu ao trabalho de escrever e se arriscou a publicar um texto sabe que, pior do que receber uma crítica, mesmo a mais contundente, é não receber crítica alguma, ou melhor, receber, em troca de tanto trabalho, o silêncio ou mesmo a aceitação passiva – para não falar do aplauso adulatório. Por isso, sabem os que já receberam alguma crítica de sua parte, inclusive as mais ácidas, sabem que estavam recebendo dele não o desprezo, mas exatamente o oposto: o cuidado. Em seu implacável rigor crítico, Ruy Fausto era na verdade um grande cuidador. Porque se tratava de reiterar essa luta contra a indiferença daquilo que, a seu ver, devia merecer a maior atenção possível: o raciocínio, o argumento, ou, se vocês quiserem, a força das ideias. E, convenhamos: o que é o desprezo (voluntário ou involuntário) pelo pensamento senão o bilhete de entrada da força bruta, a violência pura e simples?
E aqui, de certa forma, retornamos à questão do absurdo e da revolta contra o absurdo. Eu mencionei no início, aludindo à biografia pessoal de Ruy, a perda prematura do manto protetor materno. Talvez eu a tenha dramatizado demais? Alguém mais pessimista com o futuro da humanidade ou do próprio planeta – e não são poucos hoje em dia – até poderia dizer: que se dê por satisfeito quem tenha conseguido garantir aqueles nove meses a que tem direito dentro da barriga da mãe – porque um dia haverá de reconhecer que terão sido os dias mais felizes de sua vida! O resto, como se diz, é som e fúria. Um darwiniano improvisado e amador como eu tentaria responder assim: Ok, a rigor não são apenas nove meses, porque o que o feto humano faz nesse período o replay condensado de toda a evolução da espécie – sei lá, um milhão, dois milhões de anos. De modo que, na verdade, o bebê sai da mãe não com nove meses de idade, mas com um milhão, dois milhões de anos! Não me perguntem onde vão parar os 999 mil 999 anos e 3 meses que não constam na contabilidade oficial: no universo paralelo dos cosmólogos? Naquele depósito subterrâneo que Freud chamou de “inconsciente”? Seja o que for, nessa contabilidade paralela o que seriam 70, 80 ou 90 anos a mais, depois do nascimento? Uma ninharia, uma minúscula fração… E, no entanto, o darwiniano improvisado ainda diria que essa pequeníssima diferença faz toda a diferença. Porque nessa minúscula joia reside a contribuição que cada um de nós, em nossa infinita variedade individual, oferece para que a espécie prossiga ou, pelo menos, tenha alguma chance de prosseguir…
Mas vejam que essa resposta ainda parece simplificar demais as coisas e, assim, ceder de novo à tentação de jogar o absurdo debaixo do tapete. E aí imagino Ruy Fausto voltando à cena para pôr uma mosca nesta sopa, mais uma vez invertendo (ou “intervertendo”, como ele gostava de dizer) as coisas, para me advertir: “Cicero, eu acho que você ainda não compreendeu direito o sentido da teimosia…”. Pois é: a graça da coisa está exatamente em lutar, em se rebelar contra o absurdo mas, ao mesmo tempo, segurá-lo no ringue até o fim.
Tanto quanto sua obra teórica, tanto quanto sua obra prática em defesa da democracia e da liberdade, nosso amigo nos deixa também o exemplo de um estilo de vida:
Viva a teimoisia, viva a contradição, viva o cuidado, viva a alegria. Viva Ruy Fausto!
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