A volta do “Homem-massa” de José Ortega y Gasset?

Incomodado com a vulgarização da cultura, preocupado com as ameaças intrínsecas ao intervencionismo de estado e com a emergência do estado policial, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset escreveu a partir de 1926 uma série de artigos instigantes, reunidos em 1930 no livro A Rebelião das Massas, um ensaio de grande repercussão na primeira metade do século XX, sendo aproveitado por um arco capaz de englobar setores da esquerda, da direita e dos liberais. Imerso num mundo mal saído de uma Grande Guerra e prestes a se precipitar em outra, Gasset abraça muito do pessimismo de Nietzsche. À polaridade nietzscheana entre profundidade e superfície, Gasset associa a ideia de civilização e barbárie, tomada de empréstimo a François Guizot. Ambíguo, Gasset parece ora flertar com a filosofia moral de Immanuel Kant, ora esgrimir apelos ao restabelecimento das tradições, ou invoca a quixotesca restauração da erudição. 

Sua face mais progressista, expressa em textos como Meditaciones del Quijote, de 1914, aceita uma racionalidade não linear, admitindo que o mundo pode também ser captado de maneira sensorial; advoga a tese de que os europeus são mestiços e promove uma defesa pioneira do interculturalismo. Sua face mais erudita indica ter a Grécia Antiga inventado os grandes temas da cultura europeia, reconhecendo que até a lei romana bebeu na fonte grega, em familiaridade pertinente com as ideias da notável tese de doutorado do antropólogo Louis Gernet (1955), defendida em 1917. Sua face mais visionária percebe que a mundialização é o horizonte inescapável, antecipa o projeto de uma Europa unida e diagnostica a aceleração da História. Sua face mais moderna encampa argumentos similares aos do filósofo italiano Benedetto Crocce, quando sustenta que a História é uma ciência do presente, que no mundo moderno adquire mais importância do que a Filosofia, tornando-se, aliás, a própria Filosofia, pois presidirá mentalmente o devir. Incorporando o argumento de Nietzsche, que matou Deus e relativizou a razão, Ortega y Gasset proclama que o homem não tem outra coisa a não ser seu próprio passado, e, pela primeira vez na história, encontra-se consigo mesmo como realidade, sendo instável e mutável por excelência, donde nasce o aforismo célebre segundo o qual o Homem é o Homem e suas circunstâncias. 

Mas então emerge o conservador. 

A Europa poderia se unir por se constituir numa unidade cultural, e essa união seria condição de sobrevivência identitária num mundo açodado pela cultura de massas, engolido num hausto pelos Estados Unidos e, finalmente, cercado por tradições estranhas à experiência europeia. Ou seja, a aceitação da mestiçagem e do interculturalismo encontrava limites muito claros. Nada de África, de América, de Ásia. Só Europa estribada na velha Roma. 

Já o destaque que confere à História não lhe permite ir além, como Crocce foi, a ponto de afirmar que todas as perguntas formuladas ao passado nascem de impasses percebidos no presente, e que, portanto, a percepção do passado muda a todo instante. Gasset não opera a mesma distinção entre a História Viva (crítica) da Filológica (infinita e inútil compilação de dados), da Retórica (ideológica) e da Poética (laudatória) que vemos em Benedettto Croce, precipitando-se numa indistinção entre memória, história e tradição, de maneira a concluir que o passado é uma força viva e atuante a constranger e a determinar o presente, como que se alinhando a Auguste Comte: os mortos cada vez mais governam os vivos. Donde se retém que toda ruptura com a tradição é potencialmente desestabilizadora e carrega o germe da decadência. 

Uma plêiade de autores mostrou que memória, história e tradição são coisas diferentes. Maurice Halbwachs, em obra clássica dos anos 1950, avalia a complexidade dos mecanismos da memória coletiva, registrando que o indivíduo lembra em grupo, enquanto Eric Hobsbawm e Terence Ranger  provam que as tradições são inventadas por forças sociais com objetivos específicos. E Jacques Le Goff nos revelou que a cada lembrança corresponde um esquecimento, pois é impossível se lembrar de tudo e a memória é sempre seletiva. Nos anos 1970, Paul Veyne, Hayden White e Michel de Certeau, ainda, obrigaram os historiadores a abrir mão da certeza de que era possível uma coincidência exata entre o passado tal como foi e suas explicações sobre o passado, forçando-os a admitir que a História pertencia a uma classe de narrativa. 

A crítica de Ortega y Gasset à fé na razão e sua ode a uma razão intuitiva, por seu turno, como vazadas em seu ensaio Del Império Romano, esbarram na aceitação quase ingênua de que o conhecimento é cumulativo. Sim, porque quem escancara a necessidade do restabelecimento das tradições e invoca a restauração da erudição, sem distinguir claramente memória, história e tradições, acredita que a construção do conhecimento é linear e cumulativa. 

Essa tese se tornou de precária sustentação depois do trabalho, de princípios dos anos 1960, do físico Thomas Kuhn, para quem o conhecimento avança aos saltos, promovidos por pensadores ou artistas que estão de alguma forma fora ou à margem do establishment intelectual, e que, justamente por não serem aceitos, são capazes de escapar aos dogmas constrangedores que o corporativismo da intelligentsia sempre promove e preserva. 

Para Gasset, há, contudo, uma instância de não linearidade. Toda vez que, comportadamente imerso no processo de acumulação de conhecimento, o Homem se defronta com uma nova realidade, se dá uma revelação. A revelação seria uma espécie de despertar do Espírito. Cada grande ciclo da história teria o seu espírito. A razão, em seu momento, foi uma revelação. Gasset acredita que, com o século XIX, chegamos a um ponto no qual a realidade tornou-se maior que a transcendência. E com o século XX, por seu lado, a fé na razão também foi posta em cheque. Portanto, laicização, liberdade e relativismo instauraram a instabilidade do humano. Diante de uma nova realidade, diante de si mesmo como realidade, o Homem necessitaria de uma nova revelação. 

Ele deixa nas entrelinhas a fórmula para se alcançar esta revelação. Convicto de que a sociedade é um inferno na terra, que nada tem de terno, certamente não é da cultura, no sentido antropológico do termo, que esta revelação pode brotar. Este esteta das tradições e anunciador da decadência iminente dos homens na modernidade preserva, num gesto um tanto paradoxal, certa fé na ideia de progresso. Sim, pois quem acredita que o conhecimento é cumulativo, encampa implicitamente a tese de que o progresso é inexorável. De qualquer forma, para Gasset, fora do que denomina de razão histórica, fora do respeito às tradições e do cultivo da erudição, terreno no qual a História poderia efetivamente presidir mentalmente o devir, a confiança no progresso se dilui. E a chance de uma nova revelação se perde. 

É aqui que se instala o seu pessimismo. Reside aqui a ameaça deletéria que seu “Homem-massa” drapeja. 

O Homem-massa de Ortega y Gasset nada tem a ver com classe social, ou com grau de instrução. O Homem-massa não é só o Zé Mané, mas é também o doutor, o professor universitário, o empresário. Pode existir a classe-média-massa, o pobre-massa, o rico-massa, o intelectual-massa, a mulher-massa. 

Gasset se filia à corrente de pensamento de Burke e Taine, encampa os conceitos de Le Bon e os argumentos de Freud, abraça as teses de Guizot. A massa de Gasset é mais ampla do que os amotinados de Burke e Taine, mas é igualmente subversiva, agressiva, violenta, antiliberal. Assim como para Le Bon e Freud, a massa de Gasset é estética, é afetiva, é, sobretudo, vulgar. É uma categoria cultural, diretamente associada à barbárie de Guizot. Dominada por uma cultura imagética, descolada da prática reflexiva, essa massa é a-histórica, isto é, rompe com a transcendência e com a razão, como faz o sujeito nietzscheano, mas também com o passado, a memória, a tradição e a erudição. A massa, portanto, não respeita hierarquias. Não respeita as instituições, porque não conhece a técnica e não entende o próprio aparato estatal. 

O estado, para Gasset, também explicado no ensaio El hombre y la gente, de 1957, diferentemente do que é para Max Weber, é aqui um produto do costume. Para ele, o estado não é relação jurídica, não é mantido por um estamento burocrático descolado do social, mas é sim um mero instrumento do que denomina de opinião pública. Ortega y Gasset não ignora o componente civilizador do estado, que para ele cumpre o papel histórico de amansamento da besta humana. Neste sentido, mesmo sendo produto do costume, o estado figura em antítese à sociedade, que para Gasset é o inferno, o território natural da besta humana. Por outro lado, Gasset identifica no estado a ameaça potencial do intervencionismo em massa, que, segundo ele, no limite, pode instituir um sistema policialesco, no qual o indivíduo seria aniquilado. O estado, portanto, pode ser um perigo, quando acessível às massas. E o Homem-massa espera do estado justamente o intervencionismo. E quanto mais o estado intervém, mais ele pode se tornar presa da demagogia (1993, 120; 126-28). 

Por esta lógica, quem mandaria na sociedade não é o estado, nem a autoridade, mas sim a opinião pública, cuja composição pode mudar conforme a época. Naquilo que qualifica como hiper-democracia moderna, opinião pública e massa se confundem, o que se revelaria perigosíssimo. Gasset está dizendo que, nas democracias contemporâneas, quem for suficientemente hábil para cativar as massas, exercerá, em nome delas, a autoridade. 

Assim, o Homem-massa de Gasset não tem opinião, mas poderá vir a ter, de modo que o poder será exercido por quem conseguir se comunicar eficazmente com ele. Não é, pois, pela força que se conquista o poder, mas pela opinião pública, um fenômeno tipicamente moderno, que não existiu, por exemplo, na Idade Média. 

Há um lado visionário nisso, pois Gasset antecipa o papel estratégico que a propaganda e o marketing virão a desempenhar nas eleições, ou na sustentação de um regime. E deblatera um alerta contra a manipulação das consciências, sem mencionar a crítica que faz aos fenômenos populistas, tão conhecidos na América Latina, os fascistas, na Europa dos anos 1930 e 1940, e o neopopulismo de direita, que cresce na Europa contemporânea, especialmente em países como a Hungria, Polônia, Áustria e Holanda. Parece que ele escreve enxergando Mussolini, Chávez ou Orbán (1993: 122). 

Até aqui, falando da relação entre as massas e a liderança, Ortega y Gasset foi Freud remasterizado. Mas então afirma no capítulo XIV de A rebelião das massas que o verdadeiro líder é aquele que contraria o Homem-massa e que não se deixa levar pelo alarido da multidão. Que, enfim, a orienta e a dirige. Para Gasset, o Homem-massa, seja ele o militante fanatizado, seja o anômico, é contrário ao debate. E, sem debate público, a opinião pública não poderia se elevar. Gasset não explica, entretanto, como conciliar a preservação do debate público com a necessidade de um líder ilustrado… 

E de novo retorna a Comte, citando-o textualmente: “sem uma nova influência espiritual, nossa era, que é uma era revolucionária, produzirá uma catástrofe”. E a catástrofe veio sob a forma de duas grandes guerras mundiais. Comte fundou a Religião da Humanidade. Gasset investiu contra a vulgaridade, a demagogia, o hedonismo e o consumismo, propondo a emergência de uma idílica razão histórica, por meio do reencontro com a erudição e da preservação das tradições. 

É o tipo de argumento que poderia seduzir ultramontanos, liberais conservadores e até moralistas de esquerda. Não é à toa que Gasset usufruiu enorme prestígio, tendo conquistado uma massa de leitores pelo mundo afora. E quem disse que algo de seu conceito não pode ser aplicado ao populismo digital dos nossos dias?

Referências

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GERNET, Louis. Droit e société dans la Grèce Ancienne. Paris : Université de Paris, 1955

GUIZOT, François. Historia de la civilización en Europa. (Prólogo de José Ortega y Gasset). Madrid : Alianza Editorial, 1990.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo : Centauro, 2004. 

HOBSBAWM, Eric J. & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2002. 

LE GOFF, Jacques. Memória e História. Campinas : Ed. Unicamp, 2003.

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