por Gabriel Rostey
Na última semana, os lamentáveis confrontos raciais ocorridos em Charlottesville, nos Estados Unidos, tiveram como pano de fundo uma discussão muito específica: monumentos a ícones da antiga Confederação (nome dado à derrotada formação dos estados escravagistas do sul na Guerra Civil Americana 1861-1865) devem ou não ser retirados do espaço público por supostamente cultuarem personagens que representam a escravidão? Estima-se que há cerca de 1.500 símbolos dos confederados no espaço público em todo o país.
O epicentro da polêmica é a estátua do General Robert E. Lee – militar americano que foi o general das forças confederadas – na cidade. Instalada em 1924 no parque originalmente chamado Lee Park, ambos foram alvo, em fevereiro deste ano, de uma impactante decisão da Prefeitura: com o argumento de que representam algo que desrespeita parte da comunidade, a estátua seria removida do espaço público e o parque seria renomeado. Em maio, uma decisão judicial bloqueou por seis meses a remoção da obra até que a corte se manifeste. E em junho o parque teve seu nome alterado para Emancipation Park. Desde que o assunto foi colocado, ocorrem protestos contra a retirada da obra, que passou, além disso, a sofrer frequentemente com o vandalismo por parte de pessoas que se opõem à sua permanência.
É importante destacar que nenhum novo fato histórico foi revelado sobre o General Lee ou sobre os Confederados para que surgisse essa demanda. A questão ganhou força a partir de 2015, após um massacre racial na cidade de Charleston, no qual um supremacista branco assassinou nove negros em uma igreja. Ou seja, o conhecimento histórico não mudou, o que mudou foi a forma com que parte da sociedade enxerga e se relaciona com essa memória.
Essa mudança é muito recente. Para ilustrar, em 1997 o monumento foi chancelado com a inclusão no National Register of Historic Places. Em 1983 – portanto, já consideravelmente após movimentos como o dos Direitos Civis e o Black Power -, a série de sucesso The Dukes of Hazzard (Os Gatões, no Brasil), produzida pela Warner Bros. e transmitida pela CBS, passou a ter como destaque o carro dirigido pelos protagonistas – um modelo Dodge Charger 1969 – que era chamado General Lee. Inclusive, com direito a música General Lee, composta e cantada pelo popularíssimo Johnny Cash, com o refrão “If trouble comes your way just ask for me / My friends all know me as the General Lee” (“se um problema aparecer em seu caminho, é só me chamar / Todos meus amigos me conhecem como o General Lee”).
Mas quando se pensa que símbolos instalados há um século têm influência na tensão racial, fica difícil explicar como isso não foi um problema para que nesse mesmo período os negros conquistassem a equiparação dos Direitos Civis e Obama chegasse à presidência.
Tal fenômeno não é exclusivo dos Estados Unidos e encontra um paralelo muito parecido no Brasil: os bandeirantes. Em setembro de 2016, teve grande repercussão o vandalismo realizado contra o Monumento às Bandeiras e a estátua do Borba Gato, monumentos à memória bandeirista. Há uma crescente grita em setores da academia que reputam essas figuras como “bandidos caçadores de escravos” e responsáveis por um “genocídio indígena”, e por isso entendem que é absurdo que se homenageie esses personagens determinantes da história do país. Como costumamos emular o que se passa no exterior, é muito provável que essa pauta ganhe força nos próximos tempos.
Os bandeirantes não são os heróis pintados no passado por uma construção simbólica ufanista com vistas a um mitológico paulista – reforçada para a Revolução Constitucionalista de 1932, da qual o estado saiu derrotado -, tampouco os demônios pintados hoje em dia pelo revisionismo histórico. São produto de seu tempo e lugar. E os paulistas (bem como os brasileiros, em geral) são descendentes tanto deles quanto dos índios, e o célebre casamento de João Ramalho com a índia Bartira, logo no começo da colonização portuguesa, ilustrava muito bem a mestiçagem étnica e cultural que sempre foi motivo de orgulho tupiniquim.
Voltando ao caso americano, da maneira como foi colocada, a situação em Charlottesville é plebiscitária: com a divisão na sociedade, há muita gente querendo a manutenção da estátua e muita gente querendo a retirada. Logo, não haverá solução pacificadora. Seja qual for o resultado, um grande grupo se sentirá subjugado. Se existem pessoas que se opõem à retirada dos monumentos (é uma deturpação reduzi-las todas a supremacistas brancas), é democrático tirá-los? Não provocará mais ressentimentos? Não haveria um caminho conciliador, como retirar apenas as bandeiras confederadas (símbolo de um projeto felizmente fracassado) e manter os monumentos aos cidadãos sulistas que lutaram por sua terra e que, a seu modo, ajudaram a construir os Estados Unidos?
A memória urbana também é golpeada com essas medidas que apagam parte da história da cidade e sua trajetória. Afinal, o parque foi concebido conjuntamente com a escultura e doado a Charlottesville pelo filantropo Paul Goodloe McIntire com a intenção de homenagear o General Lee. Na época, e até muito recentemente, não havia a criminalização da admiração pelo militar sulista que, de acordo com a História Oficial, após a guerra foi importante para a reunificação do país e chegou a definir a escravidão como “um mal político e moral”.
Reconhecer e valorizar a importância do lado derrotado em uma guerra interna é fundamental para promover uma real concertação. Nada pode ser mais tirânico do que negar inclusive a memória e o orgulho aos subjugados. Quase um quarto dos homens brancos sulistas ao redor dos vinte anos de idade perderam suas vidas em função da Guerra de Secessão. Não se pode negar que essa tragédia que tanto definiu a região e teve impacto na vida das pessoas seja reconhecida em monumentos a algumas de suas figuras.
É fundamental se reconciliar com a História. Se hoje é julgada como errada a interpretação que se fazia dela, com a construção de mitos e simbologia de heróis e identidade local, quem pode garantir que no futuro não entenderão que a presente interpretação é equivocada? Passaremos o tempo todo problematizando, discutindo e reescrevendo a História, ou teremos a maturidade de saber assimilá-la, preencher lacunas, jogar luz sobre pontos cegos e entender o espírito de cada tempo? Não é estabelecendo vencedores e perdedores que se conseguirá aplacar ânimos. Um monumento é o enaltecimento de algo ou alguém, por um motivo, e não um não-reconhecimento dos demais. Que sejam feitos, então, outros monumentos a fim de incluir outros grupos e todos se sintam representados, como a soma de uma construção coletiva, e não uma contraposição alternativa.