por Augusto de Carvalho
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O mundo não é uma propriedade privada dos vivos, ele é também dos mortos. Há quem se oponha a esse diagnóstico e julgue que os mortos não possuem nenhuma parte do mundo, uma vez que não têm papel algum na constituição da realidade, domínio supostamente exclusivo dos vivos. Esse hábito de não reconhecer os poderes do inexistente sobre a existência, espécie de provincialismo temporal, nas palavras de T. S. Eliot, nega aquilo que a história como ciência da existência demonstra, a saber, o tempo passado é uma substância essencial da vida.
Embora haja múltiplas formas historiográficas para observar o mundo, há uma ideia de história — a ideia de que há coisas passadas que, precisamente porque se passaram, não podem ser revogadas, isto é, são existenciais. Para Sh?z? Kuki, em contraste com as ciências naturais, a investigação histórica é também um exame da historicidade, quer dizer, do caráter histórico da realidade, que se relaciona imediatamente com a passagem do tempo, uma vez que qualquer historiografia trabalha incansavelmente para analisar, de forma o mais precisa possível, o teor contingente de toda conjuntura. Ou seja, procurar acessar a individualidade de um fenômeno ou fato é um modo de transformar o eventual em causal, o arbítrio em razão, operação que assume a existência da passagem do tempo. E dado que não temos um órgão próprio para perceber o tempo, como nos lembra Thomas Mann, em sua Montanha Mágica, carecemos de uma ferramenta, uma técnica produtora de um artefato que nos permita decifrar, mesmo que provisoriamente, a ubiquidade metafísica da passagem, a imparável força física da temporalidade.
A investigação histórica, quando menosprezada como técnica, então, deixa-nos à mercê da contínua opressão do sucessivo. O conhecimento histórico como ciência da existência não somente se ocupa em tecer os nexos e as cadeias causais entre eventos que nos afligem e afetam, outrossim, feito o Zaratustra nietzscheano, identifica a razão não arbitrária de por que não podermos desejar para trás, pois que o tempo passado é inevitável. É verdade que a história é a prova de que tudo o que foi não é irremediável, pois é aberto à observação, à elaboração, que explica e compreende. Mas somos impotentes diante da existência do eterno castigo da transitoriedade — assim como uma nostálgica cadeia de montanhas, aparentemente eterna, o rigoroso fundamento de toda contingência.
Adoecidos pelo tempo, condição escondida da liberdade, portanto, nós, os vivos, não temos outra escolha senão cuidar do fardo que guiará o destino do que já morreu e passou.
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