por Caio Cesar Esteves de Souza
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Quando estudamos literatura na escola ou na universidade, somos sempre ou quase sempre expostos a uma narrativa antes de tudo histórica. No caso da literatura brasileira, partimos da literatura de informação dos cronistas do descobrimento, seguimos para o dito “barroco” baiano de Gregório de Matos e Guerra e os sermões de Padre Antônio Vieira, passamos rapidamente pelos árcades associados à inconfidência mineira e, finalmente, chegamos ao romantismo, com José de Alencar, ao realismo com Machado de Assis e aí por diante. Os textos do passado — e na escola normalmente são os únicos que lemos — são sempre muito coesos e cabem perfeitamente no esquema histórico que nos é apresentado — quando não cabem, editores, professores e escritores de livros didáticos ou historiografias literárias os fazem caber.
Na universidade, a leitura das coisas contemporâneas é muito mais frequente, a ponto de haver de fato uma hipervalorização do presente em alguns currículos de Letras não apenas no Brasil. E isso é fácil de se compreender. Em relação ao passado coeso e bem comportado, o presente parece muito mais complexo, indefinido e frutífero para novas pesquisas. No presente, ouvimos uma infinidade de vozes dissonantes, escritores expõem suas opiniões em jornais, lives do Facebook, em tweets etc., leitores gravam vídeos para o YouTube, escrevem para blogs, postam textos em suas redes sociais etc. e tudo isso de fato produz uma realidade que não nos permite colocá-los em um rótulo único, com um “estilo de época” que encerre as discussões sobre este tempo, nos preparando para o que virá a seguir. O presente é — e creio que sempre será — mais complexo que o passado — qualquer que ele seja.
E isso me traz ao principal motivo deste texto. Há tempos, tento explicar para amigos o porquê de me dedicar a trabalhos arquivísticos buscando textos inéditos do passado escritos por autores que, em geral, pouco nos importam. Muitas vezes, publicados anonimamente em códices miscelânicos, que são livros manuscritos em que alguém (ou vários alguéns) juntaram textos das mais variadas naturezas por algum motivo que dificilmente entenderemos. Há códices com anotações sobre a produção de grãos de um determinado ano, seguido por uma carta pessoal que alguém escreveu para seu irmão, uma oração para algum santo de devoção de quem fez (ou encomendou) o códice e, às vezes, se eu der sorte, um poema qualquer. Se eu for ainda mais sortudo, esse poema calha de ser interessante. E se, por um acaso enorme, ninguém tiver tido a sorte de se interessar por aquele poema antes de mim, eu estou diante de um texto inédito e posso trazê-lo a público séculos depois que algum anônimo o copiou em um caderno e o deixou esquecido em algum arquivo. Isso raramente ocorre.
Mas, como eu estava dizendo, eu tento há anos explicar a amigos e a colegas da academia o motivo de eu fazer esse tipo de trabalho — sobretudo quando sou leitor constante de literatura brasileira contemporânea. O que eles raramente entendem é que o que eles e eu fazemos é essencialmente a mesma coisa: nós estudamos o presente. Mas calham de ser presentes diferentes. O presente é a única coisa que sempre existiu, existe e existirá. E tudo o que eu disse sobre o nosso presente nesse segundo semestre de 2020 pode ser aplicado (com suas devidas adaptações) a qualquer presente de qualquer outra época.
O presente constantemente produz o seu passado e o seu futuro. Como produtos do presente, eles são necessariamente mais simples e coesos do que seu produtor. Quando lemos uma história literária escrita no século XX, estamos lendo o século XX produzindo outros séculos como passados distintos. E isso que eu disse é também uma produção de passado, porque a ideia de “o século XX” só pode existir se eu estiver me posicionando fora dele — e não há a possibilidade de estarmos fora do presente. O presente simultaneamente nos produz e é produzido por nós. O passado e o futuro são nossas abstrações, frutos do nosso tempo.
Quando me enfio em arquivos por alguns meses folheando livros manuscritos cheios de poesia — algumas vezes, além das miscelâneas vejo também as coletâneas poéticas, que são cheias de poemas de autores diversos (e de anônimos) e encontro algumas curiosidades por ali — o meu objetivo é estudar um presente diferente do meu. Estudo textos que, para mim, têm a sensação de passado, mas que estão ausentes do meu passado tal qual é produzido pelo meu próprio tempo. Até mesmo as categorias de análise que normalmente aplicamos aos textos de outras épocas parecem não fazer muito sentido com alguns desses textos que encontro esquecidos por ali. Trago hoje aqui um exemplo de presente que não se encontrará nas narrativas sobre o passado literário do Brasil ou de Portugal.
Em 21 de janeiro de 1793, Luís XVI, o ex-monarca francês, foi decapitado na Praça da Revolução — dois anos depois renomeada para Praça da Concórdia — em um dos principais episódios da Primeira República. Quando estudamos a Revolução Francesa, sempre temos esse episódio narrado em aulas de História. Já nas aulas de literatura, a Revolução Francesa costuma ser mencionada como parte de uma época, o Arcadismo, quase na transição com o Romantismo (sempre com iniciais maiúsculas, essencializados). Dizemos que os textos produzidos nessa época reproduzem os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade. E em geral citamos no Brasil as Cartas Chilenas como um dos exemplos que provam o que foi dito.
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Nada disso é falso. Só que é apenas uma faceta das muitas que podemos apontar dessa época. O que trago aqui é a faceta oposta: dois sonetos monarquistas escritos em português (não sei se no Brasil ou em Portugal) sobre a morte de Luís XVI. Um deles é uma invectiva contra os revolucionários que o decapitaram — e contra o povo francês de modo geral. O outro, é um epitáfio para a sepultura de Luís XVI. Os dois textos são anônimos e foram produzidos provavelmente com poucos meses de distância da morte do ex-rei. Modernizei a ortografia do texto, mas mantive a pontuação como se encontra no manuscrito.
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……………………………….I.
À Nação Francesa, na tirana Catástrofe de Luís XVI.
…………………Soneto.
Raça espúria de Gente adulterada,
………….Que assassinando a Lei Divina, e Humana,
………….Manchaste a Mão Rebelde e desumana,
…………. No sangue puro, em Prole Consagrada:
A sinistra de infame ferro armada,
………….Sobre a Nobre Cerviz: sorte inumana!
………….Do Bom, do Vosso Rei, Cruel…, tirana!
………….Mandaste, horrenda enorme, atraiçoada.
Este os efeitos são do Vosso intento,
………….Parricida Nação. É Vossa a empresa,
…………. Que o opróbio há de ser do pensamento:
Sem Fé, sem Coração, e sem Nobreza,
………….Serão aborrecida à Terra, ao Vento,
………….Em Ódio consagrado à Natureza.
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………………………………II.
Para servir de Epitáfio no Túmulo de Luís XVI. Rei, que foi da França.
………………… Soneto.
Aqui jaz de Luís a Cinza fria,
………….Infeliz Rei, dos insolentes Galos,
………….Que ultrajando os deveres de Vassalos,
………….Eles mesmos lhe deram Morte ímpia:
Erigiu-se em Juiz a Rebeldia,
………….A Plebe em Tribunal, para Excitá-los;
………….E crescendo o furor, por intervalos,
………….Expirou, com o Rei, a Monarquia.
Pune a Religião, geme a Nobreza,
………….Desterrada do Estado; Mas persiste,
………….O Povo insano, na fatal fereza:
Tu, Passageiro, se em teu peito existe
………….Resto das sensações da Natureza,
………….Geme também, e vai-te absorto, e triste.
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Até onde pude apurar, esses dois sonetos nunca foram editados em outro veículo, nem mesmo em artigos científicos. Dizer que são totalmente inéditos é sempre um problema por dois motivos: em primeiro lugar, há o risco de que tenham sido publicados em algum livro que desconheço, ou algum artigo que por algum motivo não encontrei em plataformas de busca; em segundo lugar, porque efetivamente eles foram publicados anteriormente no manuscrito em que os encontrei. Mas nós nos acostumamos a não reconhecer os manuscritos como um meio de publicação historicamente válido; costumamos lê-los como “documentos” do passado, que nós temos que reeditar, alterar etc. para tornar presente em nossa edição.
Os textos não têm atribuição de autor. Não é sequer possível dizer se eles foram escritos pelo mesmo autor ou não. O que sei é que eles existem no terceiro volume da coletânea poética Flores do Parnaso, atualmente no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. Eles são antecedidos por sonetos lírico-amorosos escritos por diversos autores. A sua pontuação, como vocês notam, não segue as normas da pontuação gramatical que usamos hoje — ela é também um elemento do presente que eu busco nos arquivos. A pontuação era uma forma de marcar a performance do poema; é uma pontuação retórica, não gramatical. No Brasil, diversos professores têm discutido isso há tempos — particularmente, tive acesso a essa forma de entender a pontuação de manuscritos anteriores ao século XIX através dos estudos e aulas de Marcello Moreira (UESB), João Adolfo Hansen (USP) e Adma Fadul Muhana (USP).
Esses dois poemas me permitem chegar um pouco mais perto do presente que me interessava quando fui à BBM-USP fazer essa pesquisa arquivística. Queria entender melhor a “literatura contemporânea” de fins do século XVIII no Brasil e em Portugal (reconhecendo todo o anacronismo dessas expressões). Esses poemas são contemporâneos à revolução francesa e demonstram algo óbvio que insistimos em esquecer: no presente do passado, pessoas discordavam, poetas atacavam seus adversários, defendiam seus aliados e faziam tudo isso publicamente com os meios que lhes eram disponíveis.
Os autores, quem quer que tenham sido, desses dois sonetos, defendem o sistema de regime de seu próprio império: a monarquia absolutista. Para eles, a república é uma aberração e um crime contra a organização natural do mundo. Os vassalos de um rei absolutista têm uma obrigação com a res publica e com Deus de se submeterem a seu rei. O rei é um homem, mas o seu poder emana, nesse sistema, de Deus. Por isso o segundo soneto diz que “Pune a Religião, geme a Nobreza/ Desterrada do Estado” pela “insolência dos Galos,/ Que ultrajando os deveres de Vassalos” mataram seu rei. Em certa medida, a morte do rei é, para um monarquista absolutista do século XVIII, a morte de Deus — ou ao menos um grande ultraje à religião. Contra isso, ele usa os meios que tem à sua disposição e esbraveja contra o povo francês ao mesmo tempo em que chora a morte do rei.
Isso acontece ao mesmo tempo em que, em outros círculos letrados, os escritos de Voltaire estão sendo discutidos por portugueses e brasileiros que partilham dos ideais iluministas. Também ocorre ao mesmo tempo em que outros luso-brasileiros estão escrevendo epopeias sobre matérias coloniais, e que muitos outros mal saberiam dizer quem é Luís XVI. Isso é muito evidente pelo próprio meio de publicação desses dois poemas: uma coletânea com poemas sobre todos os assuntos, escritos por diversos autores, em gêneros bastante variados. A coletânea nos mostra o presente. Na verdade, os arquivos presentificam os presentes passados. Quando olhamos para a confusão de textos manuscritos, percebemos que quando aquele tempo era presente, ele apresentava o mesmo nível de complexidade para os seus homens e mulheres que o nosso apresenta para nós. Com os séculos, parte desse presente foi transformada em passado, e muitas outras partes foram esquecidas — às vezes por desinteresse na lembrança, outras por interesse no esquecimento. E o que nos sobra apresenta uma narrativa coerente, coesa e simples de se entender. Mas o pó dos arquivos ainda guarda parte do que esquecemos; quando conseguimos escavar algo desse tipo, percebemos que esses presentes são muito mais complexos do que parecem olhando a distância.
Espero que os amigos entendam um pouco melhor agora. Nunca estive — e duvido que um dia estarei — interessado no passado. Meu interesse é, sempre foi, e (creio que) sempre será no presente — em todos os presentes, inclusive (e principalmente) os que ocorreram antes do nosso.
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