Cícero e a terceira via

Entre farsas e tragédias, um homem só não faz a república. Por Flavio Quintale.

por Flavio Quintale

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Até quando os presidentes abusarão de nossa paciência? Parodiando a célebre abertura da primeira Catilinária de Cícero, perguntamos-nos inquietos todos os dias até onde chegará a desgraça brasileira. A vida pública de Cícero, um dos personagens da história mais estudados de todos os tempos, ora exaltado, ora duramente criticado, ensina-os a olhar com atenção para a realidade histórica com a maior objetividade possível, ainda que ela possa adiar por um bom tempo a concretização dos princípios mais justos e elevados. Isso levou Cícero a redigir sua República, inspirado em Platão, mas atualizando o mestre ateniense com uma boa dose de Realpolitik.

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‘Cicerone denuncia Catilina’, Cesare Maccari, 1889

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Mesmos os historiadores mais ferozes, detratores de Cícero, como Theodor Mommsen em sua Römische Geschichte (História de Roma) não conseguem destruir a reputação do talento de Cícero, orador inigualável, talvez o maior que já existiu. A obra monumental de Mommsen, nacionalista prussiano, permanece de toda forma como uma importante referência sobre o tema, inclusive pelo primor de seu estilo que lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1902. Mas quem não se admira com a verve ciceriana ao ler atentamente as Catilinárias? A quem não ferve o sangue contra Catilina, ao se permitir enfeitiçar pelo discurso ciceriano? A menos que Cícero fosse enquadrado como um sofista, mágico das palavras, capaz de despertar alguma contestação socrática. Mas quem não constata que Catilina, celebrado por muitos como libertador do povo, agia por interesse pessoal e que teria feito com o povo a mesma coisa que criticava em seus adversários? Algo que se verificou também nos países africanos após a independência. Quem chegou ao poder explorou o povo da mesma forma que os colonizadores. O extraordinário nigeriano Chinua Achebe com A man of the people e o talentoso costa-marfinense Ahmadou Kourouma em Les soleils des indépendances (Os sóis das independências) são exemplares ao denunciarem essa situação em seus romances.  Mesmo dramaturgos do quilate de Henrik Ibsen em sua peça de juventude Catilina, procura elevá-lo a revolucionário libertador. Mas Ibsen reviu essa posição na maturidade, compreendendo que revolucionária não era a política, ao menos como Realpolitik, mas a cultura, ao transmitir ideais nos palcos, transformando aos poucos o habitus dos espectadores, para usar um termo caro a Pierre Bourdieu. Cícero salvou a República Romana por algum tempo ao protelar por alguns anos sua queda definitiva nas mãos da tirania populista. Adiou, não solucionou.

Marco Túlio Cícero (106–43 a.C.) viveu num dos períodos mais fascinantes da história. Inúmeros historiadores e intelectuais de inestimável valor se debruçaram no estudo do período entre os dois séculos em meio à vinda de Cristo. Obras fascinantes, clássicos da historiografia e da literatura universal, como Grandeur et décadence des Romains (Grandeza e decadência dos romanos) de Monstequieu, Decline and Fall of the Roman Empire (Declínio e queda do Império Romano) de Edward Gibbon, a já citada de Mommsen, e ainda estudos valiosos como Cicéron et ses amis de Gaston Boissier da Académie Française  e The Roman Revolution do oxfordiano Ronald Syme, são apenas algumas pérolas desse vasto mar de preciosidades. Não se trata apenas de curiosidade histórica, mas de questões fundamentais para problemas iguais ou semelhantes que continuam a assolar a humanidade. “A história se repete primeiro como tragédia e, depois, como farsa”, já conhecemos. Mas numa sucessão ininterrupta de tragédias e farsas. Farsas costumam preceder tragédias. Tragédias não acontecem necessariamente por acaso.

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Busto de Cícero, séc. I a.C., Musei Capitolini (Wikimedia Commons)

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Farsas e tragédias se sucederam em Roma. A aristocracia decadente levou os cidadãos romanos ao extremo do aceitável, através de tremenda exploração e desmandos, até que não podiam mais suportar o caos contínuo com tantos assassinatos políticos, corrupção desenfreada, disputas internas e uma guerra civil que, como uma pandemia, dilacerou todas as suas instituições e suas estruturas. Mas Júlio César era realmente o salvador do povo? Personagem singular, conquistador incontestável e exímio marqueteiro tanto quanto escritor, era querido por boa parte da massa, que não se perturbou em saudar Brutus pelo assassinato de César, para pouco depois, hipnotizada pelo discurso de Marco Antônio com o cadáver ensanguentado de César nos braços, revoltar-se e exigir a punição dos assassinos. A cena foi magistralmente reproduzida por Shakespeare em seu Julius Caesar. Bertolt Brecht também se interessou pelo tema em seu Die Geschäfte des Herrn Julius Caesar, (Os negócios do senhor Júlio César) publicado postumamente.  César agia mais por ambição do que por altruísmo e se Cícero o combatia ao lado da aristocracia não era para defender os privilégios daquela corja malfadada, mas para proteger o princípio republicano de liberdade. Valia a pena? Não era inevitável sua queda em questão de tempo? Como poderiam sair cidadãos virtuosos de uma sociedade corrompida até a medula, depravada de cima para baixo, pervertida de baixo para cima? Ornitorrinco, com teu ovo compatível com tuas mamas, és tu, um objeto de desejo?

Cícero já não tinha mais apoio suficiente para fazer triunfar sua hipotética terceira via.   Sentiu na pele. Chegou por um momento a receber alguma sustentação durante seu consulado, mas não resistiu aos ataques ferozes e as conspirações orquestradas pelas outras duas vias. Seu descontentamento com os abusos e injustiças da aristocracia romana lhe custou inimigos desse campo, ainda que tenha estrategicamente compactuado com ela por um tempo, em uma espécie de apoio crítico. Comportamento que ela respondeu na mesma moeda. Também não aceitava a tirania e estava disposto a oferecer a própria vida para impedir o poder absoluto dos ambiciosos personagens candidatos a Imperador. Foi liquidado por eles.

Não sendo oriundo da aristocracia republicana conservadora, os optimates, — embora casado por trinta e dois anos com Terência, de família aristocrata, até se divorciar e se unir a Pubilia em 40 a.C, jovem rica e órfã de pai — nem do povo, os populares, mas um homo novus, Cícero visava fazer emergir uma terceira via que desse conta da boa política — direitos, deveres e bem comum —  e resolvesse os conflitos, ao menos na medida em que permitissem certa paz e mais justiça na República. Essa foi, como afirma Yves Roman, l’œuvre de toute sa vie[*] (a obra de toda a sua vida). Na força da terceira via está sua fraqueza. Ela recusa populismos e utopias, denunciando suas farsas e suas tragédias em defesa de um realismo que assusta esses mesmos populismos e utopias a ponto de ser raivosamente repelida por eles. De um lado, por não aceitar o discurso avassalador dos populismos, de outro, por não sonhar no limite utópico dos sonhos mais lindos. Ela respeita a autoridade do estado, mas se recusa a compactuar com autoritarismos. A terceira via conforma-se em fazer o que é possível, não por conivência com a injustiça, mas por senso de realidade e pela compreensão da inevitável condição humana; do sentimento trágico da vida. Ela não nega a verdade, que a incomoda, mas não a ponto de repeli-la como fazem os populismos e as utopias. Ela procura amenizar o efeito amargo do remédio que se administra ao doente. Ela não romantiza a doença, muito menos sua cura, que sabe não existir. Ela busca diminuir a dor, para que o sofrimento se mantenha no limite do suportável. Não por princípio, mas por realismo. Ela não faz o que ela desejaria fazer, não porque não queira, mas apenas porque não há possibilidade. Entre as trevas absolutas e a sombra escassa, ela opta pela segunda apenas por esperar alguma luz por trás dessa sombra. O reino da terceira via não é deste mundo mesmo estando nele e as outras vias a repelem justamente por isso.

Essa é talvez a lição que Cícero compreendeu tardiamente, não sem oscilação, muito menos sem hesitação: a impossibilidade da perenidade da justa Realpolitik. Dura lição que lhe ficava clara quando se afastava das intempéries do cotidiano e debruçava no estudo da filosofia. As reflexões memoráveis sobre a amizade, o luto e a finalidade do bem e do mal são frutos desses períodos de relativo afastamento. Depressão com lastro de uma inteligência fadada à mentalidade estoica em momentos de descuido.

Terceira via que não se sustenta e funcionaliza o atraso acaba em solução efêmera. Ao perpetuar a burla termina vencida pela tirania. Como não ter o mesmo destino de Cícero? Eloquência sem real compromisso com o bem comum e a justiça é sofismo execrável, como mostra Sócrates em Górgias. Continuaremos a tentar esvaziar o oceano com balde, encharcados em uma melancolia perene. Virtude não se encerra na oratória, pratica-se. Mas quem está disposto a praticá-la?

Um homem só não faz a República. Cícero não é, certamente, um herói incompreendido. Cometeu equívocos cegado em parte por orgulho, em parte por ambições pessoais. Ao final da vida tentou de todos os modos fazer com que fosse lembrando como pensador, mais filósofo do que orador, como nos conta Plutarco em suas Vidas Paralelas. E tem mesmo muito a ensinar com sua filosofia moral e política. O orador brilhante foi engolido pela Realpolitik de Marco Antônio, irado com as Filípicas de Cícero, para proveito posterior de Octávio Augusto.

Cícero caiu porque já haviam caído valores. O tempora, o mores!    

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‘Fulvia y Marco Antonio, o La venganza de Fulvia’, Francisco Maura y Montaner, 1888

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Nota:

[*] ROMAN, Yves. Cicéron. Fayard, Paris, 2020.

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