por Sérgio da Mata
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É inegavelmente sedutora a ideia de que todo silêncio, todo esquecimento, se deve a algum mecanismo velado de poder. O sujeito hiperpolitizado, tal como o homo religiosus, nunca está disposto a admitir que a contingência existe. Os antigos se mostravam mais sábios a esse respeito: ao invés de erigirem templos a Clio, a musa da história, faziam-no a Tyche, a deusa do acaso.
Uma anedota permitirá entender melhor a questão. Em agosto de 1954, realizou-se em São Paulo um congresso internacional de filosofia. Pouco tempo depois, um dos participantes estrangeiros, o renomado teólogo Ernst Benz publica um relato sobre o evento em que reproduz a seguinte história: um colega brasileiro lhe dissera que o mecanismo que garante o sucesso de um autor estrangeiro na América Latina seria como o naufrágio de um navio em que alguns dos livros ali transportados se salvam, como por milagre, dando à costa no interior de um cesto. Somente o que a fortuna pôs no cesto é lido pelos que o encontram.
Talvez seja essa a razão pela qual segue praticamente desconhecido no Brasil o Collegium philosophicum que gravitou em torno do filósofo Joachim Ritter (1903-1974) — não obstante Ernst Tugendhat, autor com o qual o leitor brasileiro está bem familiarizado, ter declarado que este era o mais vibrante espaço de discussão filosófica da Alemanha do pós-guerra.
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Discípulo de Ernst Cassirer, Ritter foi nomeado para o cargo de professor em Münster por um golpe de sorte. Os dois primeiros indicados haviam declinado porque, como admitiu o reitor da universidade, em 1946 a cidade não passava de um monte de ruínas. Duzentos quilômetros ao norte dali, numa estação de trem na zona de ocupação britânica, dois jovens se encontram a caminho dos estudos de filosofia em Münster. Ambos haviam passado pelos campos de batalha. Hermann Lübbe tem 20 anos e traz consigo uma bíblia, e Odo Marquard, dois anos mais jovem, carrega um exemplar da Crítica da razão pura. Nos cursos de Ritter, eles conhecem Robert Spaemann, Ernst-Wolfgang Böckenförde, Karlfried Gründer, Martin Kriele e outros representantes da chamada “geração cética”.
Em paisagens urbanas como as eternizadas por Roberto Rosselini em Germania anno zero, era preciso ajudar na retirada de entulho das ruas para poder assistir os cursos na universidade. Por ausência de instalações, as preleções de Ritter eram ministradas no Jardim Botânico, e os seminários em sua própria casa. Lübbe vendia chá no mercado negro para se manter sem a ajuda dos pais.
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Alguns estudantes começaram a se reunir no Café Schucan para conversar sobre o tema da aula de Ritter ministrada naquele dia, e foi assim, também por acaso, que surgiu a ideia do Collegium philosophicum. As discussões passaram a acontecer com regularidade, e os relatos são unânimes em ressaltar a extrema liberalidade com que Ritter acolhia sugestões de leitura e conduzia as discussões. Como diria um dos participantes mais tarde, o Collegium era menos uma “escola” que um “fórum do pensamento aberto”. Embora os filósofos fossem maioria, o grupo incluía críticos literários, historiadores, juristas e até o matemático Friedrich Kambartel. Lia-se de tudo um pouco, de clássicos como Aristóteles e Hegel às publicações mais recentes de Marcuse e Lukács.
Chama a atenção o enorme contraste entre a sede de conhecimento daquela geração e o cenário de destruição do país. Os professores não cansavam de se surpreender com o que alguém chamou de “devoção fanática” dos jovens aos estudos. As velhas utopias caíam em descrédito, mas — coisa estranha — nenhuma ambição intelectual parecia exagerada. Em janeiro de 1953, um estudante de doutorado de 29 anos chamado Reinhart Koselleck envia uma carta ao jurista Carl Schmitt em que expressa, com a maior seriedade do mundo, seu desejo de elaborar uma ontologia da história. Os centenários versos de Heine nunca tinham feito tanto sentido como agora: Aos franceses e russos pertence a terra, / aos britânicos o mar, / mas a nós coube o domínio / do reino dos sonhos, suspenso no ar.
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Convidado a lecionar na universidade de Istambul, Ritter fica afastado do círculo entre 1953 e 1955. Depois de seu retorno o grupo retoma os encontros e, em 1959, assume um projeto editorial que consumiria três décadas de trabalho e o concurso de nada menos de 1.500 colaboradores: a edição do colossal Dicionário Histórico da Filosofia, obra em 13 volumes que ajudou a fazer a fama de Münster como uma das capitais mundiais da história dos conceitos.
Pouco antes de viajar para a Turquia, entretanto, Ritter havia delineado seu projeto filosófico. Em primeiro lugar, tratava-se de resgatar o conceito de “sociedade civil”. Um de seus manuscritos, hoje preservados no Arquivo da Literatura Alemã, contém os esboços do que Ritter chamou de “teoria positiva” da modernidade. Enquanto outros pensadores alemães rejeitavam o mundo contemporâneo por sua “decadência”, sua “despolitização” ou pela rotinização das crises históricas, Ritter afirma que o ser humano só se humaniza plenamente em uma comunidade política “fundada na liberdade e que tenha por conteúdo a liberdade”. Concretamente, isso significava dizer que “o Estado da liberdade é, essencialmente, um Estado de Direito”.
Revisitando a obra de Hegel, Ritter vê o traço distintivo do mundo moderno na disjunção (Entzweiung) entre passado e presente. Alguns de seus melhores textos tratam justamente dos efeitos culturais desse processo. Na contramão de Walter Benjamin e Theodor Adorno, para os quais o capitalismo solapa os fundamentos sociológicos da verdadeira obra de arte, Ritter nos lembra que em nenhuma sociedade anterior à nossa se valorizou tanto o fenômeno estético. Quanto mais a “racionalidade instrumental” e a homogeneização parecem se impor, maior a necessidade daquilo que se situa além de toda “utilidade”: a fruição e a experiência do belo. Ao mesmo tempo em que a natureza é matematizada e impiedosamente explorada, a modernidade também a idealiza e esteticiza, convertendo-a em “paisagem”. Não obstante o utilitarismo reinante, as ciências que se dedicam ao especificamente “inútil” (o passado, as línguas mortas, a literatura) se expandem, ao invés de regredir. A função das ciências humanas, assim, é nos reconectar com tudo aquilo que, ante o progressivo afastamento entre passado e presente, estamos constantemente ameaçados de perder. Compensando as neutralizações modernas, isto é, a tendência à homogeneização e à eliminação das diferenças, elas e somente elas permitem que saibamos quem nós somos.
Para Ritter e seus alunos, a teoria não é um construto altamente complexo posto a serviço da transformação da realidade, mas theoria no sentido original da palavra: ver e dizer, da forma mais clara possível, o que as coisas de fato são. Isso vale, é claro, para a própria filosofia. Spaemann a define como um “empreendimento anárquico”, ao passo que Marquard, um mestre na arte da produção de neologismos bem-humorados, considera-a uma “competência para a compensação de incompetências” (Inkompetenzkompensationskompetenz).
A dimensão prática de uma filosofia assim entendida é igualmente evidente, pois ela se quer uma “filosofia da cidadania”. Em princípios da década de sessenta, Böckenförde e Spaemann publicam um influente artigo na revista católica Hochland contra o desenvolvimento de armas atômicas. Pouco depois, aparece na mesma revista um texto de enorme impacto de Böckenförde, denunciando a postura leniente na Igreja Católica alemã durante o nacional-socialismo. Lübbe, por sua vez, alerta para os riscos totalitários da “absolutização da crítica ideológica”. Ele constata em 1961 que “de novo se tornou comum entre nós acusar o Iluminismo europeu, de cuja teoria política derivam os princípios democráticos”. Quem faz pouco caso de ideais iluministas como tolerância, liberdade e igualdade de direitos, conclui ele, apenas “revela seu analfabetismo democrático”.
Era inevitável que se acentuassem e viessem a público as diferenças com a Escola de Frankfurt. Enquanto esta demandava plena emancipação e, no limite, a substituição de um sistema político que Jürgen Habermas acreditava passar por uma crise terminal de legitimação, os egressos do Collegium criticavam a teoria crítica por seu utopismo orientado pelas velhas filosofias da história. Em fevereiro de 1974, depois de ler o livro de Marquard, Dificuldades com a filosofia da história, Hans Blumenberg escreve uma carta ao autor com uma divertida “Prece de um ateu após ler a filosofia da história de Odo Marquard”. Três anos depois, aparece Para a crítica da utopia política, de Spaemann.
A segunda grande crítica à teoria crítica frankfurtiana diz respeito ao moralismo político. De fato, o caminho que leva de Adorno a Habermas pode ser descrito como a passagem das minima para as maxima moralia. Para Lübbe, a moralização do político (fenômeno de que a política brasileira dá abundantes exemplos em todos os seus quadrantes) suspende “a separação entre legalidade e moralidade, apaga as fronteiras entre Estado e sociedade, dissolve as garantias institucionais da liberdade civil”.
O liberalismo político merece ser defendido, diz Lübbe, porque os sistemas balizados por ele se caracterizam “pelo fato de permitir a máxima ampliação daquelas esferas da vida que não devem ser colocadas à disposição de decisões políticas”. O que está em jogo não é “negar” o político, mas estabelecer seus limites. Tão importante quanto um desenho institucional que impeça a concentração de poderes é a existência de uma cultura política que se oponha à politização indiscriminada do mundo da vida — da prática jurídica à congregação religiosa, da historiografia aos protocolos sanitários. O liberalismo é esta cultura. Ele é, ainda, o cultivo iluminista da tolerância e da igualdade de direitos, valores que dão a chave para a compreensão do famoso paradoxo formulado por Böckenförde: “O Estado liberal e secular vive de premissas que ele próprio não é capaz de garantir”. Onde, porém, grassa o antiliberalismo e sua ideia fixa de que “tudo é política”, a fragilidade de tais premissas se traduz em fragilidade do próprio Estado de Direito. A posicionalidade excêntrica dos filósofos do Collegium, portanto, não se confunde com aquilo que a linguagem vulgar tem chamado de “isentismo”.
Bem pode ser que a atual crise das democracias liberais se deva ao estreitamento dos espaços de mediação e à aparente perda de prestígio dos que se dispõem a defendê-los. Mas nada indica que tal crise seja irreversível. Caso todo projeto humano atingisse a plenitude de seus objetivos, já não teríamos história, pois, como bem ressaltou o poeta Joseph Brodsky, the only law of history is chance. O jogo está sempre aberto. Especialmente, e sobretudo, em sociedades cujo pluralismo (étnico, político, cultural) não pode ser suprimido pela mera vontade de governantes que fizeram da desumanidade e da torpeza um meio de vida. A esse tipo de sociedade, que também é a nossa, há de corresponder, e cada vez mais, a máxima de Marquard segundo a qual “igualdade significa: poder ser diferente dos demais sem medo”.
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