por Desidério Murcho
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Em plena Segunda Guerra Mundial, quando o governo britânico pedia aos seus cidadãos imensos sacrifícios económicos, Orwell ficou chocado com a incongruência de jornais em que os editorialistas davam voz aos pedidos do governo, ao mesmo tempo que publicavam anúncios de casacos de peles, na mesma página. Esta imagem memorável ilustra um problema de fundo que poucas pessoas parecem compreender, sobretudo porque albergam preconceitos ideológicos relacionados com o comércio: é o problema do financiamento da cultura, da ciência, das artes, da filosofia e da informação. Não é possível pensar claramente neste problema enquanto se continuar a pensar de um modo aristocrático. Para o aristocrata, toda a transacção comercial é vil, e as coisas superiores da vida, nomeadamente as ideias, têm de se manter recatadamente afastadas do dinheiro. Hoje, pessoas protegidas desde muito novas por instituições públicas ou por grandes multinacionais, que sem sobressaltos lhes pagam a vida há décadas, podem dar-se ao luxo de ter, com a mesma hipocrisia dos aristocratas de antigamente, a mesma atitude de nojo perante o comércio.
Há razões a favor do actual modelo de financiamento fortemente estatal e burocratizado do trabalho intelectual envolvido nas artes, ciências e filosofia; mas também há razões contra. Uma delas sendo que os criadores perdem assim contacto com o seu público. Um grande pintor renascentista, por exemplo, tinha sempre viva a consciência de que dependia dos seus patronos, que lhes pagavam os quadros que pintava, lhes encomendavam trabalhos e lhes pagavam muitas vezes as despesas ou os alojavam em suas casas. Jonathan Le Cocq argumenta que este modelo tem vantagens sobre o modelo estatizado também por evitar que o artista produza obras que literalmente ninguém aprecia, nem vai alguma vez apreciar. É vantajoso que o artista tenha liberdade, mas também é desvantajoso que com essa liberdade o artista perca o contacto com os destinatários do seu trabalho.
A desvantagem estrutural do modelo fortemente estatizado de financiamento é alguns dos financiados perderem o sentido da realidade, caindo então na mentalidade aristocrática; e o problema da mentalidade aristocrática é que é uma mentira. As artes, as ciências, a filosofia e a informação precisam de ser financiadas pelo simples facto de que se o não forem só os ricos poderiam fazer essas coisas e nem sempre são os ricos que têm os talentos, os interesses e as energias para as fazerem. Se não abandonarmos a mentalidade aristocrática, e continuarmos a fingir que não são as pessoas que nos financiam a vida involuntariamente através dos impostos, somos incapazes de compreender o problema do financiamento, e por isso seremos incapazes de compreender o funcionamento de um jornal, por exemplo. Porque um jornal não consome — qual lapa agarrada à rocha — os impostos involuntários das pessoas, depende inteiramente do financiamento que for capaz de gerar junto do seu próprio público leitor. Mas isto mostra-nos imediatamente a hipocrisia inerente dos seres humanos: ao mesmo tempo que muitos batem no peito pela informação de qualidade, quase ninguém está realmente disposto a pagá-la. De modo que um jornal tem de ser barato — muito barato — o que significa que depende de outras formas de financiamento: a publicidade. Isto dá origem à incongruência que chocava Orwell, pois os interesses dos anunciantes são insusceptíveis de serem compatibilizados com os interesses da informação de qualidade: tudo o que se consegue fazer é uma guerra fria, que consiste em encher o jornal de palermices que lhe permitem ter maior circulação, para então se conseguir encher as páginas de retratos de carros infalíveis e instituições bancárias que fazem todos os dias o milagre da multiplicação dos peixes. Conheço um só jornal com informação cultural de qualidade que não depende fortemente da publicidade, mas que por isso tem uma circulação muito reduzida e é muito caro: o maravilho TLS britânico. Uma andorinha não faz a primavera, e um caso isolado está longe de nos dar uma pista de como poderemos pôr fim à guerra fria.
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O problema de fundo é uma injustiça fundamental da humanidade. Ao mesmo tempo que muitíssimas pessoas ganham, e muito, com avanços da ciência e com informação de qualidade, só uma pequeníssima minoria está realmente disposta a pagar essas coisas e a pagá-las caras. É muito mais fácil vender consolas de jogos do que jornais de qualidade, sapatos caros do que livros de filosofia, lingerie sexy do que pinturas de arte. Claro que as mesmas pessoas que raramente gastam 10% dos seus rendimentos em cultura ou ciência ou artes batem no peito dizendo que essas coisas são muito importantes, mas isto é só mais uma manifestação da profunda mentira humana, infelizmente tão comum.
Algumas pessoas, munidas de algo como um raciocínio deste género, não têm então hesitação em dizer que o modelo estatal de financiamento existe precisamente para tirar dinheiro às pessoas contra a sua vontade, através de impostos, para financiar o que elas na verdade se recusam a financiar voluntariamente — uma defesa, pois, do roubo iluminado. Mas esta certeza comunista nas maravilhas do financiamento estatal é apenas outra maneira de nos recusarmos a formular sequer o verdadeiro problema. Um passo nessa direcção é reconhecer que não é de modo algum desejável que os jornais, por exemplo, sejam exclusivamente financiados, ou até financiados em parte, com dinheiros públicos — porque sabemos que quem financia tem inevitavelmente poder sobre o que financia, e é demasiado perigoso para a saúde de uma democracia que o mesmo primeiro-ministro que mente e trapaceia tenha poder sobre o financiamento dos jornais que vão investigar e revelar as suas mentiras e trapaças.
Falei de um pensamento melancólico, que é a ideia de que um jornal se financia enchendo-se de palermices, para assim ter mais circulação e por isso mais publicidade. Outro pensamento melancólico, mas de polaridade oposta, é a palermice de pensar que podemos prescindir do jornalismo profissional porque agora temos a Internet, pá, olha que maravilha. O problema é que as publicações da Internet não são financeiramente viáveis sem publicidade, outra vez: nenhum jornalista profissional poderia manter-se escrevendo notícias na Internet, sem publicidade, porque as pessoas querem ler tudo de borla na Internet de borla (ou ver — a esmagadora maioria das pessoas que entram numa publicação não lêem mais do que os títulos). E se o jornalista colocar publicidade na sua publicação da Internet, fica outra vez na mesma situação que já conhecia com os jornais em papel: terá de enchê-lo de palermices, para ter milhares de visitas, sem as quais as receitas publicitárias não serão suficientes para o manter.
O modelo de financiamento da cultura que ocorre na Internet sofre da mesma perversidade do modelo de financiamento da cultura que ocorre nos jornais tradicionais: baseia-se na publicidade. A perversidade que isto introduz é a necessidade de publicar palermices, porque a verdade desagradável acerca da humanidade é que as palermices são muito mais populares do que tudo o resto. Quem pensa que vivemos num admirável mundo novo digital não vai querer aceitar que não há afinal assim tantas diferenças relativamente ao velho mundo não-digital. Há diferenças, sem dúvida, e eu não quereria voltar aos tempos em que não havia Internet. Mas se nos recusarmos a olhar de frente para o problema do financiamento do jornalismo de qualidade, das artes e da cultura, da ciência e da filosofia, nada estaremos a fazer para resolver o problema da guerra fria. Defender que os livros devem ser distribuídos gratuitamente, na Internet, assim como os jornais, é aprofundar o problema da guerra fria e tornar o admirável mundo novo digital cada vez mais parecido ao pior que tem o velho mundo não-digital: a dependência da publicidade, e com isso, dos grandes financiadores e das grandes empresas.
Mas qual é o problema de depender da publicidade, afinal? A maior parte das pessoas prefere usar o gmail gratuitamente, vendo publicidade todos os dias, do que pagar uns míseros 20 euros por ano pelo serviço — ao mesmo tempo que paga 50 euros por mês para ter acesso à Internet em casa. Num certo sentido, a publicidade é até benéfica: obriga os produtores de bens e serviços a fazer o que as pessoas realmente querem. Ou seja, obriga as televisões a fazer informação fantasiosa, populista e de má qualidade, porque é isso que as pessoas preferem; obriga as empresas de revistas e jornais a publicar cinco revistas de palermices, para ganhar dinheiro e conseguir financiar uma revista com informação de qualidade, e obriga os jornais de qualidade a publicar na sua maior parte palermices, para poderem chegar a um número maior de pessoas. Qual é o problema? A publicidade é o grande soro de verdade da humanidade, corroendo todas as hipócritas declarações de amor fiel às artes, à informação de qualidade, à filosofia e às ciências.
O problema é pensar que temos uma resposta razoável para o problema do financiamento da informação de qualidade, da cultura, da filosofia ou das ciências. Não temos tal coisa. Temos modelos maus, uns menos maus do que outros, mas ninguém tem um modelo bom. E não o teremos jamais se todos assumirmos uma atitude de nojo aristocrático pelo dinheiro, pela compra e pela venda de serviços e bens que envolvam ideias. Estaríamos a dar um passo de gigante na direcção certa se assumíssemos que queremos vender informação de qualidade, artes, filosofia, ciência, aulas. Porque aí veríamos que o problema é encontrar quem realmente queira comprar isso que queremos vender, ao invés de se limitarem a bater hipocritamente no peito dizendo que muito valorizam essas coisas — desde que não tenham de abrir a carteira.
A mentalidade aristocrática tem hoje uma expressão notável em subgrupos que fazem da Internet e do digital a sua vida principal, desacompanhados de qualquer vestígio de tino económico. Os grupos religiosos de apoio ao Linux, ao Open Office e a tudo o que seja software, produtos ou serviços digitais gratuitos são particularmente fascinantes. A maior parte das pessoas não conhece o Linux, nem o Open Office, e só muito recentemente passaram a conhecer, algumas delas, uma coisa chamada Firefox, e que é um navegador alternativo ao Google Chrome. Este desconhecimento deveria ser suficiente para os religiosos do Linux pensarem outra vez na sua Weltanschauung, mas como Popper se apercebeu ao falar com os marxistas e os psicanalistas, o dogma tem sempre razões que a razão desconhece, e uma capacidade acrobática para transformar negativo em positivo, branco em preto, e refutação em confirmação. O Linux é um sistema operativo gratuito alternativo ao Windows. Mas então como se dá o extraordinário milagre económico de as pessoas preferirem comprar o Windows, em vez de usar um sistema operativo gratuito?
A resposta dos religiosos é que isso só acontece porque o Windows já vem instalado nos computadores que as pessoas compram. Isto é mentira porque em muitos países, como no Brasil, já se compram há bastante tempo computadores mais baratos, com o Linux instalado — e as pessoas levam-nos para casa, desinstalam rapidamente o Linux e instalam o Windows. Mas mesmo que fosse verdadeiro que a razão de ser da falta de penetração do Linux fosse esse aspecto da distribuição, seria necessário compreender por que raio o Linux não está mais presente nos computadores que as pessoas compram nas lojas. Ao fim ao cabo, se eu estou a vender computadores, consigo vender mais barato um computador com Linux do que o mesmo computador com Windows, porque não tenho de pagar o Linux, mas tenho de pagar o Windows. O que acontece é que as pessoas preferem realmente o Windows ao Linux, e por uma razão simples: quase não há software para o Linux. E é aqui que está o busílis: não há mais software para Linux porque os religiosos do Linux têm a mentalidade aristocrática de que o software, como todo o produto do trabalho intelectual, deve ser gratuito. E consequentemente, poucos engenheiros podem fazer software para o Linux, porque não poderiam viver disso. No meu trabalho, por exemplo, uso crucialmente vários programas de software que comprei e que não existiria se outras pessoas não os comprassem, porque nesse caso os engenheiros não os poderiam fazer.
De modo que os fanáticos do Linux dificilmente poderão ter uma resposta para o problema do financiamento da informação de qualidade, da filosofia ou das ciências, pois a resposta inane que têm para o problema do financiamento do seu próprio trabalho é que devem ser todos empregados do estado ou de grandes multinacionais como a Adobe, Microsoft, Mozilla Corporation ou Sun, para depois então poderem dar de borla o que fizerem nessas empresas ou nos fins-de-semana melancólicos, nos intervalos de um joguinho emocionante. Não se compreende é como essas empresas que os empregam vão ganhar dinheiro se também os seus programas informáticos forem todos distribuídos gratuitamente, e tal modelo de negócio nunca vingou. Há umas ideias vagas de o engenheiro andar a fazer de moço de recados, dando assistência técnica a quem usa os produtos que escreveu tão mal que tem de ser chamado de hora a hora por meio planeta fora para desencravar os seus clientes que queriam ao invés poder usar um bom software sem terem de depender dos solícitos engenheiros.
Significativamente, o Firefox é o grande sucesso desta mentalidade aristocrática. Significativamente porque só conseguiu vingar quando se associou ao Google e passou então a receber dinheiro da publicidade vista nos computadores que usam o Firefox. Ou seja, é outra vez o velho mundo não-digital: o Firefox depende financeiramente da publicidade, o que significa que depende de grandes companhias com o Google, que a gere, ao mesmo tempo que se apresenta mentirosamente como um rebelde contra as grandes companhias como a Microsoft. Mas esta mentira serve os seus propósitos: ao passo que nenhum engenheiro mentalmente saudável estaria disposto a trabalhar para a Microsoft sem esta lhe pagar, a Mozilla Corporation conta com o trabalho voluntário de milhares de engenheiros papalvos. É a nova economia digital, da qual a Wikipedia é o paradigma: quem ganha dinheiro são alguns tubarões que, agitando o isco da gratuitidade, conseguem viver da Wikipédia porque milhares de voluntários papalvos trabalham gratuitamente para eles. A ilusão, claro, é que não estão a trabalhar para os tubarões da Wikipédia ou da Mozilla Corporation, mas para as pessoas comuns poderem ter um produto gratuito de qualidade. Esta ilusão, contudo, mostra como o problema fundamental do financiamento se oculta facilmente: se as pessoas realmente prezassem o trabalho desses voluntários, estariam dispostas a pagar-lhes directamente, ainda que uns poucos euros por ano, para que pudessem fazer um trabalho melhor e genuinamente independente quer de tubarões quer de publicidade. De modo que este modelo de financiamento apenas oculta o verdadeiro problema que urge enfrentar: a hipocrisia que faz as pessoas bater no peito dizendo que uma enciclopédia, por exemplo, é muito importante, ao mesmo tempo que se recusam a pagar a quem a escreve.
Os efeitos económicos desta mentalidade são desastrosos. Imagine o leitor que é engenheiro informático e que tem uma ideia revolucionária para fazer um navegador para a Internet, um leitor de email ou uma aplicação do género do Office. Não conseguirá fazer seja o que for sem um séquito de investidores atrás de si, advogados, secretárias, e uma qualquer grande companhia por detrás, tal e qual como vinte jornalistas são incapazes no mundo não-digital de ontem ou no mundo digital de hoje de fazer um jornal independente de todas essas coisas. Contudo, se não fosse a mentalidade aristocrática que estimula a hipocrisia das pessoas, que querem usufruir sem pagar do trabalho dos outros, isso seria hoje possível. Se o leitor for um engenheiro informático com uma ideia que funciona, poderia colocar uma primeira versão à venda, barata, no seu site. Com essas receitas, poderia desenvolver melhor o seu trabalho e vender uma segunda versão ao fim de um ano de trabalho compensador. E assim poderia viver directamente do seu trabalho, vendendo-o directamente a quem dele usufrui. O mesmo aconteceria com um grupo de jornalistas — facilmente poderiam manter-se a si próprios, independentes dos grandes financiadores e da publicidade, se o jornal fosse publicado exclusivamente na Internet, a um preço ridiculamente baixo. Mas nada disto pode hoje acontecer porque o leitor teria de concorrer com produtos gratuitos análogos que são apoiados por grandes corporações, incluindo corporações que gerem a publicidade, como o Google. É pura e simplesmente impossível concorrer com o Guardian, porque é gratuito, ou com o Open Office, ou com o Linux.
As regras do jogo no maravilhoso mundo digital são iguais às regras do jogo do velho mundo não-digital: a independência económica de pequenos criadores é uma ilusão, a dependência das grandes corporações financiadoras e da publicidade e dos interesses políticos é um facto. A única novidade introduzida pela nova economia digital é o trabalho gratuito de milhares de pessoas iludidas com as cantigas de bandido da mentalidade Linux.
Claro que há um argumento de fundo que está aqui em causa: o sonho de uma economia sem dinheiro, uma economia verdadeiramente comunista, onde as pessoas trabalhariam pelo gosto de fazer o que fazem e trocariam isso que fazem por outras coisas que outras pessoas fariam igualmente por gosto. Ninguém precisaria de comprar coisa alguma, e seria um regime de liberdade económica das grandes corporações. Afinal, há razões para pensar que a economia baseada no dinheiro é uma forma primitiva de economia.
O problema é que ninguém tem um modelo alternativo de economia, que não se baseie no dinheiro. E quando a nossa vida está largamente inserida numa economia baseada no dinheiro, toda a ilha económica sem dinheiro é uma mentira: significa apenas que alguém paga e alguém é explorado e alguém fica a perder, mas nada disso é visível. Evidentemente, quem é pago por gigantes económicos — universidades, corporações, grandes empresas — e recebe certinho o seu ordenado ao fim do mês, sem flutuações relacionadas com mais ou menos vendas, mais ou menos público, melhor ou pior trabalho, perde facilmente o contacto com a dura realidade económica que qualquer merceeiro ou dono de restaurante tem: ou as pessoas nos pagam o que fazemos para elas, ou temos de mudar de ramo.
O problema do financiamento de actividades impopulares — cultura, informação de qualidade, filosofia, ciências — poderia ser parcialmente resolvido se não existisse a mentalidade aristocrática, que aprofunda e aplaude a atitude das pessoas que querem usar a Internet como usam a televisão aberta: sem a pagar directamente, mas pagando-a através da publicidade. Se as minorias realmente interessadas em informação de qualidade estivessem dispostas a pagar 5 euros por mês para ler um bom jornal na Internet, por exemplo, quaisquer dez jornalistas ou menos poderiam fazer tal coisa. E depois poderiam existir vários jornais em competição e os melhores teriam mais leitores de qualidade e poderiam ficar ainda melhores, sempre independentes dos grandes financiadores e dos tubarões da publicidade. Mas as coisas não são assim — e não vão ser assim. Fazer um trabalho informativo de qualidade vai continuar a ser uma guerra fria entre a qualidade e a palermice, em que no meio de muitas páginas com palermices para atrair papalvos que clicam na mentira da publicidade, se consegue de vez em quando inserir um bom trabalho, genuinamente informativo. A situação é infeliz, mas nada se pode fazer excepto explicar as coisas como elas são, para que os discursos da mentira não tenham o monopólio da verdade.
Ninguém sabe quais serão os caminhos do nosso futuro digital. Os livros são das poucas coisas da nossa vida que hoje em dia são honestas, no sentido em que são exclusivamente pagos por quem os lê, não têm publicidade e os editores pagam aos autores, permitindo-lhes viver da escrita. Ninguém sabe por quanto mais tempo isto irá ser possível. Do ponto de vista da ideologia aristocrática, é um crime pagar vinte euros por um livro, sendo uma percentagem desse dinheiro para sustentar o autor, se esse livro for inteiramente digital e facilmente copiável, porque só é legítimo pagar coisas como hortaliças e folhas de papel, mas não romances, poemas ou ensaios. O sistema de financiamento do trabalho intelectual, no velho mundo não-digital, tinha coisas muito más e outras boas; gerou jornais e revistas palermas e muita palermice nos jornais e revistas que não são palermas, mas permitiu também que romancistas, ensaístas e outros intelectuais vivessem da venda do seu trabalho, ao invés de dependerem de um emprego numa grande empresa ou numa universidade. Gerou muito jornalismo palerma, mas também gerou jornalismo de alta qualidade. Como tudo na vida, o velho mundo não-digital tinha coisas boas e coisas más. É de crer que o novo mundo digital terá coisas boas e coisas más, mas os aristocratas do freeware querem fazer-nos crer que só terá coisas boas, ao mesmo tempo que a teia do Google, com a sua publicidade planetária, nos envolve cada vez mais. Há razões para pensar que a habitual mentira de nós para nós se intensifica porque gostamos de puxar umas coisas da Internet, legais ou não, sem pagar, encontrando então depois umas racionalizações tanto mais palermas quanto mais complexas são.
Um conceito lunático curioso é que um escritor pode chegar à Internet, oferecer os seus livros de graça e depois pedir por favor, por graça do Espírito Santo, dêem-me qualquer coisita para comer. A ideia é que as pessoas são generosas, e pagam o que consomem. Evidentemente! É por isso que não há empresas de segurança e podemos entrar numa loja, pegar numa televisão e sair porta fora sem pagar, que ninguém nos diz coisa alguma: as lojas estão feitas de maneira que quem quiser pagar, paga, pois as pessoas são generosas e honestas. Para lá da ironia, este conceito lunático é outra forma de não compreender o problema fundamental do financiamento da cultura, da ciência ou até de coisas mais obviamente úteis para toda a gente como a medicina. Se as pessoas pudessem escolher pagar ou não impostos para financiar a medicina, quase ninguém escolheria pagar tal coisa, apesar de correrem o risco óbvio de ficarem doentes no futuro e depois não poderem ser curadas. Quando temos um sistema em que paga quem quer, só as pessoas mais generosas do que o comum pagam; a generalidade das outras pessoas sentem-se até particularmente espertas porque podem ter sem pagar. Esta é aliás uma das motivações da pirataria informática: muitas pessoas que têm em casa gigabytes sem fim de músicas e software pirateado nem sequer o usam, mas pirateiam-no porque se sentem espertos tendo de borla algo que as outras pessoas pagam.
Diz-se por vezes que o que matou o comunismo foi a ideia lunática de Marx de que, sem as injustiças económicas do sistema capitalista, a verdadeira natureza humana, generosa e iluminada, viria ao de cima, ao passo que a verdadeira natureza humana que realmente veio ao de cima foi precisamente o tipo de coisa que torna a economia de mercado um sistema que funciona, mas o comunismo não. Isto é um pouco como uma queixa que ouvi há dias: que o Carnaval era dantes uma festa do povo, genuína e tudo isso, mas que tinha agora sido tomada de assalto pelo comércio. O disparate desta ideia é não perceber que o comércio só pode tomar conta do Carnaval precisamente porque essa é a expressão livre e genuína do povo: compram coisas, pagam por elas, e escolhem em geral as coisas mais palermas que é possível imaginar. A ideia de que a humanidade é uma maravilha se não fosse os comerciantes que estragam tudo é uma das maiores mentiras da humanidade. Quem vende só vende porque as pessoas compram o que ele vende, e se as pessoas preferissem a biologia à Coca-Cola, os livros de física aos bonés americanos e a poesia às festas de bêbados, quem vende venderia mais biologia, mais física e mais poesia, e menos das outras coisas. A expressão genuína e natural do povo é precisamente o que os lunáticos entendem que é a expressão de outra força qualquer oculta, que só existe nas suas teorias para tentar explicar ad hoc o facto de a realidade, sendo a humanidade uma maravilha tão grande, ser uma palermice tão pesada.
Acontece o mesmo quando se trata de conceber o financiamento do trabalho intelectual: podemos ser como Marx e pensar que as pessoas de livre vontade vão inibir-se de ter mais uma consola de jogos ou mais um par de sapatos ou mais um par de cuecas para financiarem um filósofo, um jornalista ou um cientista. Mas se o fizermos, estaremos a sonhar alto. A natureza humana não é um paraíso, e quanto mais depressa esta ideia entrar na nossa concepção do financiamento do trabalho intelectual, menos ideias economicamente lunáticas teremos.
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Uma parceria entre o Estado da Arte e o Crítica na Rede.
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