por André Chermont de Lima
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Em 1768, quando o poeta Basílio da Gama chegou a Portugal para começar seus estudos em Coimbra, a Inquisição o identificou como ex-aluno do colégio jesuítico no Rio de Janeiro — onde o projeto de ordenar-se padre havia sido interrompido pelo banimento da Companhia de Jesus — e o condenou ao degredo em Angola. Por decreto, era essa a pena para os acusados de serem partidários dos jesuítas. O jovem poeta escreveu então “um medíocre epitalâmio”, nas palavras de José Guilherme Merquior, à filha do Marquês de Pombal, Maria Amália, que se casava com o Conde de Rio Maior. No poema ele louva a noiva, reprime uma sutil inveja do noivo e, naturalmente, mira o pai:
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“Entra esposa imortal de Amor no templo,
Dá à Pátria, que te ama, e se desvela,
Doces frutos de amor (eu os contemplo)
Sucessão numerosa, ilustre, e bela:
Que siga os passos, e o paterno exemplo,
E se deixe guiar da sua estrela.
Que de fortes leões leões se geram.
Nem os filhos das águias degeneram” (VI)
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“Eu não verei passar teus doces anos,
Alma de amor, e de piedade cheia:
Esperam-me os desertos Africanos,
Áspera, inculta, e monstruosa areia.
Ah tu faze cessar os tristes danos,
Que eu já na tempestade escura, e feia
Mal diviso, e me serve de consolo,
A branca mão, que me conduz ao porto” (XIV)
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Tudo isso sem esquecer-se de humilhar os jesuítas:
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“Quis erguer a Ambição com surdas guerras
Fantástico edifício, aéreas traves:
Porém geme debaixo de altas serras,
E tem sobre o seu peito os montes graves.
Lá vão passando o mar a estranhas terras
Os negros bandos de noturnas aves,
Com a Inveja, a Ignorância, e a Hipocrisia,
Que nem se atrevem a encarar o dia” (XII).
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Impressionado, o Primeiro-Ministro não só anulou o castigo como deu a Basílio carta de fidalguia e o nomeou funcionário da Secretaria do Reino. No ano seguinte, o brasileiro publicaria, em Lisboa, a obra que o consagrou, o poema épico antijesuíta “O Uraguai” — dedicado ao irmão de Pombal. Ainda segundo Merquior, Basílio da Gama “converteu-se ardorosamente ao pombalismo” e “teve a hombridade de não abjurar quando o marquês caiu em desgraça”. Morreu silenciosamente em Lisboa, em 1795, entre uma e outra volta ao Brasil para escapar da perseguição intermitente que passou a sofrer como partidário do poderoso reformador.
Sérgio Buarque de Holanda, Francisco de Varnhagen e outros contam um episódio, ocorrido poucos anos após o falecimento de Basílio da Gama, envolvendo a visita de Alexander von Humboldt à América do Sul. Dom João VI expediu uma ordem aos governadores das capitanias do Norte e Nordeste para que impedissem a entrada no território da colônia de “um tal barão de Humboldt, natural de Berlim”, cuja viagem ao continente americano, anunciada pelos jornais de Lisboa, pareceria “sumariamente prejudicial aos interesses políticos da Coroa”. O ministro de ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, teria alertado sobre o perigo de o visitante vir a “tentar com novas ideias os ânimos dos povos”.
Pelo que nos informa Sérgio Buarque, o conde da Barca teria convencido o monarca a revogar a ordem — cientista e livre-pensador, o futuro ministro do exterior de Dom João e então embaixador na França teria seguramente gostado de ver os resultados de uma expedição científica pela Amazônia, aquela imensa extensão de floresta sem donos de facto. A intervenção do conde, entretanto, não rendeu muito na prática, pois o alemão, portando autorização da coroa espanhola, limitou seu primeiro périplo sul-americano à Venezuela. Suas viagens posteriores à América tampouco contemplaram o Brasil, e, se entrou em território português, fê-lo apenas tangencialmente. Humboldt não teria tomado conhecimento das suspeitas que levantou junto à corte em Lisboa senão em 1848, quando recebeu carta de seu amigo e compatriota, o barão de Eschwege, acompanhada de cópia da antiga ordem de Dom João VI.
A grande ironia do caso veio depois. Na década de 1850, Humboldt apresentou ao governo imperial anotações e mapas detalhados sobre a fronteira norte e deu parecer arbitral favorável ao Brasil em litígio territorial com a Venezuela. A vitória brasileira na querela foi indispensável para a conclusão das negociações do Tratado de Limites e Navegação Fluvial com o país vizinho, assinado em 1859. Graças a seus serviços, o cientista alemão foi condecorado com a Grã-Cruz da Imperial Ordem da Rosa. Sérgio Buarque reproduz o maldoso comentário do barão a Varnhagen, anotado no diário do historiador:
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“Em outros tempos, no Rio de Janeiro, quiseram prender-me e mandar-me de volta à Europa como espião perigoso, e o aviso baixado nesse sentido é exibido por lá como objeto de curiosidade. Hoje fazem-me juiz. É evidente que eu só poderia decidir em favor do Brasil, pois necessitava de uma condecoração, coisa que não existe na república da Venezuela!”[1]
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As duas anedotas não parecem ter muito em comum. A primeira aproxima-se de muitos outros casos de bajulação, mais atuais, e, quase corriqueira por sua natureza, talvez retenha um pouco de curiosidade pela identidade ilustre dos protagonistas. A segunda, mais inesperada, surpreende pela reviravolta e pelo pano de fundo moral: se o Estado brasileiro fosse um personagem de carne e osso, é possível que o víssemos envergonhado, arrependido até, na qualidade de sucessor da coroa portuguesa, condecorando o grande cientista alemão cheio de constrangimento, num esforço de compensá-lo pelos serviços que prestou — e pelo tratamento que receberia caso tivesse sido apanhado pelas autoridades meio século antes.
Ambas são histórias de crime e perdão, mas não de crime e castigo. Esta talvez seja a mais importante conexão entre as duas. Seria supérfluo discutir se Basílio da Gama e Alexander von Humboldt estavam de fato errados: um estudara com os jesuítas, o outro “ameaçava” entrar em nosso território sem autorização; absolvê-los, do ponto de vista moral, sobretudo com o passar dos séculos, não pede grande esforço. O fato, porém, é que cometeram crimes à luz da legislação da época, mas, em vez de cumprirem as penas previstas, acabaram perdoados, cada um à sua maneira e diante da enorme diferença circunstancial entre um caso e outro. Contemplamos, naqueles dois momentos, um Estado todo-poderoso que não conhece limites: identifica as ameaças, caça seus culpados (ou se protege deles), condena-os, perdoa-os, glorifica-os. Poderia não tê-los perdoado, poderia usar o direito que tinha, e tem, de fazer cumprir a lei. Mas seu poder quase divino investe-se de desígnios insondáveis, entre os quais o de arrepender-se, extinguir punições e transformá-las em benesses.
A arte da bajulação, claro, é instrumental para a circulação exitosa nesses meandros. Engana-se quem argumenta que a bela démarche de Basílio da Gama só seria viável em tempos de instituições mais personalistas e burocracias menos complicadas; ao contrário, todo brasileiro sabe que a multiplicação de instâncias favorece a corrupção, o compadrio e a adulação. É a diferença entre o indivíduo e a pessoa, no famoso trabalho de Roberto Da Matta: enquanto o “indivíduo”, esse receptáculo abstrato de direitos e deveres, sofre com as ameaças do Estado repressor, a “pessoa” escapa das garras da institucionalidade por meio de suas relações com o poder.
Mas seria mesmo esse Estado assim tão poderoso? Outra perspectiva de encará-lo remete-nos justamente ao lado da fraqueza, essa fraqueza crônica que permite os tradicionais atropelos da lei em prol de interesses pessoais de toda ordem: a leitura de Casa Grande e Senzala subsidia ricamente a tese das instituições fracas sobre uma estrutura feudal, onde mandavam e desmandavam os latifundiários e, num segundo plano, a Igreja. Esgotados os apelos às autoridades, a expressão “vá queixar-se ao bispo” é reflexo dessa penúltima instância mais próxima ao céu; mas acima dela, acima do próprio céu, o “criminoso ou escravo fugido que se apadrinhasse com senhor de engenho livrava-se na certa das iras da justiça ou da polícia”. Se ainda acreditarmos em Gilberto Freyre, é sobre a família latifundiária que se assentará a construção da colônia e a formação da primeira etapa da sociedade brasileira.[2] Essa tradição familiar e personalista, em vez de se dissipar, se consolidará ao longo dos séculos, intocada após a Independência, e deixará seus rastros até mesmo depois da reinvenção do Estado nacional nos anos 30. O que Basílio da Gama fez no século XVIII está longe de ter perdido significado pelo passar do tempo e o desaparecimento de eventuais códigos ou referências: a intenção, a iniciativa e o resultado são mais vivos que nunca; nós compreendemos a mensagem por meio de múltiplas atualizações e reencenações dessa antiquíssima parábola do bajulador e do bajulado.
Lembro-me do ofício, depois tornado famoso pelo documentário em sua homenagem,[3] em que Vinícius de Moraes se dirigiu ao ministro das Relações Exteriores nestes termos: “Preciso, de fato, voltar ao Rio de Janeiro. Não é problema material, de dinheiro ou de status profissional. Tudo isso é recuperável. É um problema de amor, pois o tempo do amor é irrecuperável”. O documento, por mais romântico e fictício que possa parecer, de fato existiu. O procedimento pouco ortodoxo e a quebra de hierarquia numa estrutura rígida como a do Itamaraty — Vinícius era primeiro-secretário e não poderia dirigir-se ao Chanceler por expediente oficial — juntam-se à ironia de quem, notoriamente, tinha planos de deixar o emprego para dedicar-se à “carreira paralela” em que era agora muito mais bem-sucedido. Como disse Ricardo Cravo Albin numa entrevista, a carreira diplomática garantia ao poeta a paz e a segurança necessárias para criar.[4] E o pedido foi atendido: Vinícius voltou ao Brasil, casou-se com Lucinha Proença e, cerca de dez anos depois, acabou demitido por “vagabundagem”.[5] A personalização da burocracia repetiu-se postumamente, quando o ex-diplomata foi reincorporado à carreira e promovido a embaixador. Alguns disseram à época da reincorporação que o serviço prestado por Vinícius de Moraes à cultura e à imagem do Brasil o credenciava como um dos mais valorosos funcionários públicos imagináveis. Talvez: resta saber se teria feito alguma diferença para a boa reputação do país se o “poetinha” jamais tivesse feito o concurso para entrar na carreira diplomática. O serviço público parece ter servido mais a ele do que ele ao serviço público. Vê-se, nesse rodeio, um círculo iniciado com um ofício esdrúxulo e se fechando num generoso reconhecimento post mortem. As relações entre os artistas e o Estado teimam em sobreviver à maneira barroca.
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Notas:
[1] Buarque de Holanda, Sérgio. “Raízes do Brasil” in “Intérpretes do Brasil”, vol. 3. Rio de Janeiro: ed. Nova Aguilar, 2000, págs. 1027-8
[2] Freyre, Gilberto. “Casa Grande e Senzala” in “Intérpretes do Brasil”, vol. 2. Rio de Janeiro: ed. Nova Aguilar, 2000, págs. 248, 401
[3] “Vinicius”, de Miguel Faria Jr. (2005)
[4] Correio Braziliense, 16/8/2010.
[5] O estado de espírito de Vinícius após a demissão é ponto discutível. Segundo algumas fontes, ele teria sentido deprimido e pensou no autoexílio. Outras atestam que ele se livrou de uma espécie de fardo, e que a decisão do então Chanceler apenas acelerou os planos anteriores de desligar-se do Itamaraty.
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