por Gilberto Morbach
Nor shall I crave my native speech,
its milky call that comes in handy.
It makes no difference in which
tongue passers-by won’t comprehend me.
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—Marina Tsvetaeva, Homesickness……….
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I.
Nas páginas da edição de 04 de julho de 1982 do jornal O Estado de S. Paulo, em ensaio intitulado Cultura: a história de uma ideia, José Guilherme Merquior refletia sobre as diferentes interpretações do conceito de cultura ao longo da história.
A noção clássica de cultura, dizia Merquior, tinha seu significado derivado da própria etimologia da palavra. “Cultura”, afinal, conota “uma atitude de zelo e cuidado perante algo que cresce e se forma, amadurecendo lentamente”.[1] Daí por que, nos círculos humanísticos da Antiguidade, o conceito de cultura expressava um processo perfectivo.
Esse processo, por sua vez, indica outra ideia vinculada diretamente à cultura em sua acepção clássica: a individualidade. Afinal, se esse processo perfectivo precisa de um sujeito, naturalmente que esse sujeito é o indivíduo. É assim, na união entre essas duas ideias que são uma só, que a cultura — em sua clássica definição — é algo que está para muito além, em “densidade moral” da “mera instrução”.[2]
“Outra característica da ideia clássica” — humanística — “de cultura”, segue Merquior, é seu “alcance universal”; sua “vocação cosmopolita”. Não era sem razão que Cícero postulava uma equivalência entre cultura e humanitas. Lado a lado, cultura e humanidade.
O ponto aqui, contudo, é que esse alcance universal não pode ser entendido como um simples dado biológico da condição humana; em vez disso, trata-se da própria condição humana como algo a ser conquistado, por meio da cultura. É a isso que Merquior chama de “universalismo meritocrático”.[3] A humanidade não nos é um direito inato, mas algo a ser conquistado exatamente pelo processo de autoaperfeiçoamento expressado pela ideia própria de cultura. Ora, não se nasce culto; torna-se. Igualmente, portanto, a partir do ideal clássico, nos tornamos humanos na medida em que nos aperfeiçoamos. Cultura é humanidade.
Merquior consagra essa ideia duplamente humanística de cultura fazendo referência às Cartas para o avanço da humanidade, de Herder, onde lemos que, embora humanidade seja “o caráter da nossa estirpe”, esse caráter só é inato enquanto “disposição”. Devemos educar a humanidade que nos é própria; ela é, afinal — dizia Herder — “o tesouro e fruto de todos os esforços humanos”. Humanidade, em sua definição (abraçada por Merquior), é “a arte de nossa espécie”.[4]-[5]
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Essa era a noção clássica.
II.
A partir do fim do século XVIII, surge um outro conceito de cultura. Da universalidade, o pensamento ocidental voltou-se à particularidade de cada uma das culturas — agora no plural. Do indivíduo abstrato, engajado em um processo perfectivo, passou-se a cada comunidade étnica concreta. Não mais o “estudo do homem” e da civilização — compreendida aqui enquanto “qualidade progressiva do estado material e moral do gênero humano”; agora, a “análise das culturas”.[6]
Se cultura era um processo progressivo, perfectivo, individual e cosmopolita, passou a ser constituída pelo conjunto da heterogeneidade de costumes e práticas passadas e presentes de cada cultura nacional particular.
A grande diferença entre, de um lado, (a) a noção humanística clássica de cultura educativa e, de outro, (b) a versão antropológica de análise das culturas de cada povo ou etnia é que, na primeira, os indivíduos se tornam cultos; na segunda, as coletividades manifestam aquilo que já são.
Desse contraste surge o grande questionamento de Merquior: não será o caso de que algo tenha sido perdido nessa passagem do perfectivo para o (meramente) expressivo? Na pretensão de recusar qualquer risco de um evolucionismo vulgar, não fragilizamos o conceito de cultura em sua dimensão moral, educativa? Isso não representaria uma degradação da própria ideia de humanidade? A dúvida já parece suficiente para dar razão a Merquior em sua classificação do “eclipse da ideia plenamente humana de cultura” como um problema histórico de primeira grandeza.[7]
Em outro ensaio — do mesmo ano, 1982, para o mesmo jornal, O Estado —, intitulado Vida e cultura, Merquior é sucinto e direto em seu diagnóstico: quando o “alarido libertário” da ideologia (pós-)moderna abandona a cultura como autocultivo, “[o] id da ‘vida’ sacudia o jugo do superego ‘cultura’.” Nessa rebelião, perde-se aquilo que só é possível por meio de uma noção clássica: a “conversação da humanidade consigo mesma”, por meio da qual adquirimos saberes e sensibilidades que são, ao mesmo tempo, “humanos” e “humanizantes”.[8]
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Não sei se Merquior era um leitor de Joseph Brodsky. Desconfio que sim; ninguém menos que Raymond Aron, afinal, perguntado sobre o então jovem brasileiro foi taxativo: “Esse menino leu tudo”.[9] De qualquer forma, o fato é que há grande sintonia entre as reflexões dos dois autores sobre uma ideia de cultura e civilização.
Em ensaio celebrando a memória de Nadezhda Mandelstam, viúva de Ossip Mandelstam, Brodsky diz — em sua prosa elegante e incisiva que encontra le juste milieu, sem ter medo de desagradar nem escorregar para a polêmica barata buscada como um fim em si mesmo —, respondendo aos gritos de “elitista!” dos campi universitários à época, que “a cultura é elitista por definição”.[10]
Seu raciocínio era o seguinte: isoladamente e em si mesma, a realidade é uma abstração que não significa nada. Somente somos capazes de atribuir sentido a isso que chamamos de realidade por meio da percepção. Em seguida, Brodsky diz que há uma hierarquia entre percepções — entre significados, pois — e que, no topo, estão os prismas mais refinados e sensíveis. Quais são esses prismas? Aqueles que têm como fonte “a cultura, a civilização, cuja maior ferramenta é a linguagem”.[11] A atribuição de sentido à realidade por meio dessa ótica é a mais justa, precisamente porque mais refinada, precisamente porque mais sensível.
A noção clássica de cultura subjacente ao emprego da palavra pelo poeta russo é evidente. Sendo mais direto: Brodsky era um ferrenho adversário do relativismo cultural. Parece pouco democrático? O próprio Brodsky, expulso da União Soviética, seria o primeiro a admitir: no mesmo ensaio, na mesma passagem, dirá — naquilo que bem serviria como sua resposta ao questionamento de Merquior — que “a aplicação dos princípios democráticos na esfera do conhecimento leva-nos a igualarmos sabedoria e idiotia”.[12] Isso é repetido em outro ensaio, não mais sobre a viúva Mandelstam, mas sobre o romancista Andrei Platonov:
“[O] princípio democrático, tão bem-vindo em quase todas as esferas de empreendimentos humanos, não tem aplicação em ao menos duas delas: na arte e na ciência. Nessas duas esferas, a aplicação do princípio democrático resulta na equivalência entre obra prima e lixo, entre descoberta e ignorância.”[13]
O elitismo assumido de Brodsky, contudo, é cultural. Ele próprio é um filho da miséria e das fábricas, das prisões e do exílio. Sua visão sobre a cultura é a de “um processo linear”, cuja história é a de “adição e refinamento, de extensão da perspectiva da sensibilidade humana” e de “enriquecimento dos meios de expressão”.[14] É isso que nos permite enxergar como o elitismo do autor não tem qualquer cunho classista. A definição de cultura proposta por Nadezhda Mandelstam, enaltecida e chamada de profeta no mesmo ensaio em que Brodsky articula seu próprio elitismo cultural, dá uma boa pista:
“A cultura . . . não é algo gerado por uma classe superior da sociedade em qualquer tempo, mas um elemento transmitido de geração a geração — um produto da continuidade sem a qual no lugar da vida só haveria o caos.”[15]
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Era algo muito próxio da definição de Óssip, companheiro de Nadezhda: a cultura como “a ideia subjacente que impõe ordem ao processo histórico e define sua estrutura”.[16]
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É por isso que a cultura, em Brodsky, é elitista. E é por isso que ela é mais do que uma análise dos processos históricos, culturais no plural. Porque a cultura é mais do que a história, é o que torna minúsculo seu “h”. “À luz da consciência e da cultura, a história se retrai, e então um indivíduo faz sua escolha: entre buscar a fonte dessa luz, e cometer um crime antropológico contra si mesmo”.[17]
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III.
Que não se pense que um retorno a uma noção humanista, uma noção moral de cultura invalida o reconhecimento do pluralismo inerente às sociedades contemporâneas de um mundo que, globalizado, é fragmentado e heterogêneo. Pelo contrário: em tempos de crise, o imperativo cultural clássico que demanda que as humanidades humanizem talvez seja exatamente o que torna esse pluralismo possível. A neutralização antropológica de uma ideia de cultura, ao postular essa neutralidade mesma, não leva à tolerância, porque incapaz de derivá-la de qualquer fundamento sólido, estável. Como dizia Sir Isaiah Berlin, leitor de Vico e Herder, há uma pluralidade de culturas, ideias, temperamentos, mas “o pluralismo não é relativismo — os valores múltiplos são objetivos, parte da essência da humanidade em vez de criações arbitrárias das fantasias subjetivas dos homens.” Sem critérios, sem uma necessidade de pedirmos contas a certas concepções menos exigentes, o resultado pode ser exatamente aquele contra o qual alertava Berlin (e que, paradoxalmente, causa arrepios aos mesmos expressivistas neorromânticos): “Gosto de meu café com leite, e você gosta do seu sem leite; sou a favor da bondade, e você prefere os campos de concentração”.[18]
A dualidade não é necessariamente entre cultura (clássica, singular) e culturas (no sentido antropológico, plural), mas entre o (também) perfectivo e o (meramente) expressivo.
A dualidade é entre civilização e barbárie, e a escolha é óbvia. Em The Child of Civilization, o mesmo Brodsky — o filho da miséria e das fábricas, das prisões e do exílio e, como Mandelstam (Óssip, a quem o ensaio é dedicado), da civilização — indica o significado dessa escolha: “A civilização é a soma total das diferentes culturas, animada por um numerador espiritual comum.”[19]
Sugiro que esse numerador espiritual comum — que anima e informa, mantém viva e legítima cada tradição, em toda sua pluralidade de perspectivas — seja precisamente o da cultura como educação moral. Mais de uma cultura, sim; cada uma delas, constituída por indivíduos que buscam reivindicar e conquistar a humanidade a que aponta a disposição que lhes é comum.
Cultura é humanidade. Tornemo-nos cultos, tornemo-nos humanos, sob pena de cometermos um crime antropológico contra nós mesmos — e contra a humanidade como tal
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Notas:
[1] Merquior, José Guilherme. Cultura: a história de uma ideia. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, p. 180.
[2] Merquior, José Guilherme. Cultura: a história de uma ideia. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, p. 180.
[3] Merquior, José Guilherme. Cultura: a história de uma ideia. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, pp. 180-181.
[4] Merquior, José Guilherme. Cultura: a história de uma ideia. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, p. 183.
[5] O romantismo de Herder, paradoxalmente — e Merquior aponta isso — ajudou a dar início à noção não humanística de cultura. Nem mesmo Herder, porém, perdeu de vista a ideia de humanidade como valor associado à cultura educativa.
[6] Merquior, José Guilherme. Cultura: a história de uma ideia. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, p. 181.
[7] Merquior, José Guilherme. Cultura: a história de uma ideia. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, p. 182.
[8] Merquior, José Guilherme. Cultura e vida. Em Merquior, José Guilherme. O Argumento Liberal. Editora É Realizações, 2020, pp. 185, 186.
[9] Rocha, João Cezar de Castro. A Vocação Crítica de José Guilherme Merquior. Apresentação à segunda edição de Merquior, José Guilherme. A Estética de Lévi-Strauss. Editora É Realizações, 2013, p. 13.
[10] Brodsky, Joseph. Nadezhda Mandelstam. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 153.
[11] Brodsky, Joseph. Nadezhda Mandelstam. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 153.
[12] Brodsky, Joseph. Nadezhda Mandelstam. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 153.
[13] Brodsky, Joseph. Catastrophes in the air. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 302.
[14] Brodsky, Joseph. Catastrophes in the air. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 302.
[15] Mandelstam, Nadezhda. Hope Against Hope. Atheneum, 1983, p. 266.
[16] Mandelstam, Nadezhda. Hope Against Hope. Atheneum, 1983, p. 255.
[17] Brodsky, Joseph. Nadezhda Mandelstam. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 153.
[18] Berlin, Isaiah. The Power of Ideas. Princeton University Press, 2000, pp. 11-12.
[19] Brodsky, Joseph. The Child of Civilization. In Brodsky, Joseph. Less Than One: Selected Essays. Farrar, Straus and Giroux, 1986, p. 141.