por Carlos Alberto dos Santos
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Conforme mencionei no ensaio anterior, havíamos previsto uma série de ensaios sobre alguns ganhadores do Prêmio Nobel (PN), e quando se trata de PN, é inescapável a lembrança da família Curie. Marie, Pierre, Irène e Frédéric ganharam cinco PN, caso único na história desse prêmio. O lançamento recente do filme Radioactive deu visibilidade popular ao casal Marie e Pierre Curie, com muitas resenhas do filme e reportagens jornalísticas. Tive o cuidado de ler todos os textos que apareceram no meu radar da Internet, para elaborar este ensaio a partir de fatos históricos pouco conhecidos do grande público e não abordados nesses textos que li. Todavia, para bem definir o contexto no qual farei minha narrativa, algumas informações familiares bem conhecidas devem ser aqui também apresentadas.
De toda a literatura que conheço sobre Marya Salomea Sklodowska, ou Marie Curie, nome que adotou depois do casamento, ou Marie Curie-Sklodowska, como consta em seu túmulo no Panteão de Paris, ou Madame Curie nome que a consagrou como cientista, há dois livros que aprecio mais do que todos, mesmo tendo em conta a importância documental do livro de sua filha, Ève Curie [1]. Refiro-me aos livros de Françoise Giroud [2] e Susan Quinn [3]. Excetuando casos muito especiais, todo o conteúdo deste ensaio é baseado nesses dois livros.
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Marya Salomea Sklodowska
Nasceu em Varsóvia, em 7 de novembro de 1867. Caçula de cinco filhos de Wladyslaw e Bronislawa Sklodowski. Ele, professor de física e matemática de um colégio masculino, e ela diretora de uma das melhores escolas privadas para meninas, em Varsóvia. Marya fez seus estudos primários na escola Sikorska, onde destacou-se como aluna aplicada e inteligente, com as melhores notas em todas as matérias, e aos quinze anos conclui o ginásio com medalha de ouro, mas não pode ingressar na universidade, que naquela época não estava aberta às moças. Para ajudar nas economias da família, Marya dá aulas particulares de aritmética, geometria e francês. Aos 18 anos aceita um emprego de preceptora em uma rica família de advogados de Varsóvia. Precisa ganhar dinheiro para ajudar a irmã mais velha, Bronia, em seus estudos de medicina em Paris. Depois, a irmã a ajudaria a mudar-se para a cidade-luz. Do primeiro emprego parte para um com salário melhor, ainda como preceptora na família Zorawski, produtores de beterraba em Sluski, a três horas de trem de Varsóvia. Casimir, o primogênito da família, estudante de engenharia agronômica em Varsóvia, apaixona-se por Marya. É sua primeira decepção amorosa. O rapaz sucumbe à objeção de seus pais e abandona Marya, mas ela permanece no emprego por quatro anos. A necessidade financeira é maior do que a humilhação. Findo o contrato de quatro anos, ela vai trabalhar na casa de ricos industriais de Varsóvia, e no outono de 1891, aos 24 anos, desembarca em Paris, na gare du Nord.
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Três anos depois, Marya que agora se chamava Marie, concluiu seu curso de física em primeiro lugar. Um ano depois gradua-se em matemática, em segundo lugar. Naquela época os avanços científicos na França eram bem menos relevantes que aqueles em curso na Alemanha e na Inglaterra, mas Marie teve bons e famosos professores na Sorbonne; o físico Gabriel Lippmann, que ganharia o Prêmio Nobel de Física (PNF) de 1908, e os matemáticos Paul Painlevé, que seria Primeiro Ministro da França por dois meses, em 1917, e Paul Appell, que seria reitor da Universidade de Paris, a Sorbonne, entre 1920 e 1925. E, o mais famoso entre os acadêmicos, o físico-filósofo-matemático Henri Poincaré. Com dois títulos universitários debaixo do braço, Marie estava pronta para exercer o magistério na sua amada Polônia. Mas, em algum dia da primavera de 1894, ela foi apresentada a Pierre Curie, e a história da física tomou um novo rumo. É ela quem relata o dia em que viu Pierre pela primeira vez [2]:
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Quando entrei, Pierre Curie estava no umbral de uma porta-janela que dava para o balcão. Pareceu-me jovem, apesar de na época ter trinta e cinco anos. Fiquei impressionada com a expressão de seu olhar límpido e com uma ligeira aparência de displicência em sua alta estatura. Sua fala um pouco lenta e reflexiva, sua simplicidade, seu sorriso ao mesmo tempo sério e jovem inspiravam confiança. Logo iniciamos uma conversa amigável; o assunto eram questões de ciências, sobre as quais eu estava contente por pedir sua opinião; a seguir, passamos a questões sociais e humanitárias, pelas quais nós dois tínhamos interesse. Entre sua concepção das coisas e a minha, apesar da diferença de países de origem, havia uma proximidade surpreendente, sem dúvida em parte por uma certa semelhança de atmosfera moral dos nossos meios familiares.
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Pierre Curie
Nasceu em Paris, em 15 de maio de 1859, descendente de uma modesta família burguesa da região alsaciana, nas proximidades do rio Reno, que terminou por gerar médicos e cientistas de prestígio. Seu pai, Eugène Curie, era médico. Sua mãe, Sophie-Claire Depoully Curie, era filha de comerciantes da região de Lyon. Pierre tinha um irmão mais velho, Paul-Jacques, que também graduou-se em física. Os dois irmãos inventaram um equipamento, que anos depois seria crucial nas descobertas de Marie e Pierre.
Pierre gradua-se em física em 1877, e no ano seguinte começa a trabalhar como preparador adjunto no laboratório de física da Faculdade de Ciências. Dois anos depois apresenta, à Academia de Ciências de Paris (ACP), seu primeiro trabalho científico, em colaboração com Paul Desains. No mesmo ano, os irmãos Curie apresentam o trabalho sobre a descoberta da piezoeletricidade. Em 1882, Pierre ocupa o posto de professor na recém-criada Escola de Física e Química Industrial. Entre 1882 e 1886, utilizando a propriedade piezoelétrica do quartzo, os irmãos Curie inventam a balança de quartzo, um eletrômetro de quadrante e um manômetro piezoelétrico. É com esses equipamentos que Marie e Pierre vão descobrir, em 1898, os elementos radioativos polônio e rádio.
A partir de 1891, Pierre inicia uma série de estudos sobre magnetismo, pelos quais é mais conhecido na história da física. Descobriu a temperatura abaixo da qual os materiais como ferro e cobalto, entre outros, tornam-se ferromagnéticos. Essa temperatura é hoje conhecida como temperatura de Curie. Em 1895 ele conclui sua tese de doutorado e casa-se com Marie Sklodowska. A lua de mel é uma viagem de bicicleta, que o casal faz explorando a floresta da região de Chantilly.
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1898, o ano miraculoso de Marie Curie
Todo grande cientista tem em sua história um ano que se costuma denominar de ano miraculoso, ou, no casto latim, annus mirabilis. O de Newton foi 1666, durante a Grande Praga de Londres, quando ele inventou o cálculo e fez grandes descobertas sobre as leis do movimento, a ótica e a gravitação. O de Einstein foi 1905, quando ele publicou quatro trabalhos que revolucionaram a física, entre os quais, a teoria da relatividade especial e a equação do efeito fotoelétrico, pela qual ganhou o PNF de 1921. Não há a menor dúvida que 1898 é o ano miraculoso de Marie Curie.
No final de 1897, Marie publica seu primeiro trabalho, no assunto que seu marido dominava, o magnetismo, mas tem que pensar em seu tema de tese de doutorado. Toma conhecimento de um intrigante fenômeno descoberto por Henri Becquerel, em seu laboratório do Museu de História Natural. Dois meses depois da descoberta dos raios-X, exatamente em fevereiro de 1896, Becquerel submeteu amostras de um sal de urânio à luz solar. Sob a amostra havia uma chapa fotográfica protegida da luz solar. A ideia do experimento era verificar a hipótese de que os raios-X eram emitidos em consequência de um processo de fluorescência. O sal de urânio era fluorescente. Becquerel supunha que excitando-o com a luz solar ele emitiria raios-X, que sensibilizariam a chapa fotográfica. De fato, isso ocorria, mas um dia, quando Becquerel se preparava para fazer nova observação, o Sol não deu o ar de sua graça no céu parisiense. E assim ficou durante dois dias. Becquerel resolveu revelar aquela chapa fotográfica que estava guardada em alguma gaveta do laboratório, totalmente protegida da luminosidade. Se a hipótese da fluorescência estivesse correta, a chapa fotográfica não apresentaria mancha, ou se apresentasse seria muito tênue. Para sua surpresa, a chapa apresentou uma intensa mancha escura, como se tivesse sido fortemente atingida por um feixe de raios-X. Becquerel atribuiu a sensibilização a uma longa permanência do estado de fluorescência naquele sal de urânio. Ou seja, em algum momento anterior, o material teria sido excitado pela luz solar e assim permanecido por um longo tempo em seu estado fluorescente. Becquerel chegou a denominar o processo de fluorescência invisível com longo tempo de permanência.
Outros pesquisadores seguiram o mesmo caminho de Becquerel, mas ninguém conseguia justificar os resultados experimentais com base no fenômeno da fluorescência. Entre as conclusões equivocadas de Becquerel destaca-se aquela segundo a qual o urânio metálico era o primeiro metal puro que apresentava o fenômeno da fluorescência. Um metal puro não pode ser fluorescente. Quando ele observou a radiação penetrante emitida pelo urânio metálico, em maio de 1896, ele deveria ter-se dado conta de que aquilo se tratava de um fenômeno diferente, e não de fluorescência ou fosforescência. A partir desse trabalho de maio de 1896, Becquerel se desinteressa pelo assunto e deixa de publicar sobre o mesmo, sem conseguir estabelecer a natureza das radiações emitidas, nem a natureza subatômica do processo [4].
O fenômeno era interessante, deve ter avaliado Marie, e sua explicação encontrava-se em aberto. Fazia quase dois anos que aquela área de pesquisa estava praticamente estagnada. Não há circunstância melhor do que essa para uma tese de doutorado. Já em abril de 1898, Marie apresenta seu primeiro trabalho sobre o fenômeno que ela denominaria de radioatividade. Foi apresentado à ACP pelo seu velho professor Gabriel Lippmann. Ela mesma não podia fazer a apresentação porque não era membro da Academia. Intitulado Rayons émis par les composés de l’uranium et du thorium, ela apresentava no artigo os primeiros resultados mostrando que além de urânio, o tório também era radioativo. Coincidentemente, este resultado foi obtido na mesma época na Alemanha, por Gerhardt Carl Schmidt.
O sucesso obtido por Marie nesse trabalho e nos que se seguiram, deve-se em grande parte ao uso do equipamento desenvolvido por Jacques e Pierre Curie. Foi um verdadeiro pulo do gato metodológico. Sabia-se que, assim como os raios-X, as radiações urânicas ionizavam o ar. Então, em vez de usar o impreciso método fotográfico de Becquerel, Pierre deve ter sugerido que ela medisse a ionização produzida pela radiação fazendo uso de uma balança de quartzo acoplada a um eletrômetro de quadrante e uma câmara de ionização. Até hoje nenhum método é mais preciso para medir corrente elétrica do que o método utilizado naquele equipamento inventado pelos irmãos Curie. O material radioativo era colocado na câmara de ionização, e a corrente produzida era medida pelo eletrômetro de quadrante. Com a balança de quartzo eles quantificavam a intensidade da radiação. Foi assim que Marie conseguiu detectar quantidades ínfimas de materiais radioativos presentes em amostras minerais. Foi assim que analisando uma amostra de pechblenda (óxido de urânio), Marie desconfiou que havia algum material desconhecido na amostra. Com a colaboração de Pierre ela submete a amostra de pechblenda a processos químicos de purificação até obter uma amostra com bismuto associado ao material ativo. Eles não conseguiram separar os dois materiais pelos processos químicos da época. No artigo que publicam em julho de 1898, o casal Curie sugere [5]:
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Cremos, portanto, que a substância que retiramos da pechblenda contém um metal ainda não identificado, vizinho do bismuto por suas propriedades analíticas. Se a existência desse novo metal for confirmada, propomos dar-lhe o nome de polônio, nome do país de origem de um de nós.
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Na última reunião da ACP de 1898, Becquerel apresenta o trabalho de Marie Curie, Pierre Curie e Gustave Bémont, no qual descrevem a descoberta de um novo elemento radioativo, quimicamente semelhante ao bário, extraído também de pechblenda, ao qual denominam rádio.
Em 1899, com o título de Les rayons de Becquerel et le polonium, Marie publica na Revue Générale des Sciences, a síntese e a conclusão da área de estudo pela qual ela ganhou seu primeiro PN, o de física de 1903:
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Os raios urânicos foram frequentemente chamados de raios de Becquerel. Pode-se generalizar esse nome, aplicando-o não apenas aos raios urânicos, mas também aos raios tóricos e a todas as radiações semelhantes.
Chamarei de radioativas as substâncias que emitem os raios de Becquerel. O nome de hiperfosforescência que foi proposto para o fenômeno parece-me dar uma falsa ideia de sua natureza.
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Esse foi o momento do batismo da radioatividade. Ao contrário de Becquerel, que foi pioneiro na observação do fenômeno, e sobre ele trabalhou durante três meses sem conseguir caracterizá-lo como um fenômeno subatômico, preso que estava à ideia da hiperfosforescência, Marie Curie compreendeu que se tratava de um fenômeno novo, originado na estrutura subatômica da matéria, ou seja, no núcleo, e apresentado por determinados materiais, que ela denominou radioativos, e batizou o fenômeno como radioatividade.
A partir de 1990, Roberto de Andrade Martins publicou uma série de artigos argumentando que ao contrário do que consta na literatura didática e historiográfica, foi Marie Curie, e não Becquerel quem descobriu a radioatividade. Seu primeiro artigo sobre o assunto tem um título bem sugestivo: Como Becquerel não descobriu a radioatividade [6]. Seus anos de estudo sobre o tema foram reunidos em um livro, em 2012, premiado com o terceiro lugar no Prêmio Jabuti de 2013, na categoria Ciências exatas, tecnologia e informática [4].
Todavia, parte da comunidade científica tem outros critérios para avaliar a paternidade das descobertas científicas, que não aqueles baseados unicamente em análises epistemológicas. Há critérios sociais não muito claros, sobretudo no que se refere às indicações ao PN (ver ensaio anterior). Em seu livro, La fondation des Prix Nobel scientifiques: 1901-1915, Elisabeth Crawford faz uma boa discussão a esse respeito [7]. Por exemplo, no capítulo 4 ela analisa o sistema de indicações e sua influência sobre a escolha dos laureados. É importante ter em conta que o Comitê Nobel (CN) não é obrigado a seguir as recomendações dos cientistas responsáveis pelas indicações. Há inúmeros casos em que o CN não escolheu os mais indicados pela comunidade científica. Além disso, a decisão final não é do CN; é da Real Academia Sueca de Ciências (RASC). E nem sempre a recomendação do CN é totalmente aceita pela RASC.
Os PNF e PNQ de 1903 revelam um aspecto de disputa entre comunidades científicas muito interessante e que se manifestam até hoje no ensino dessas duas ciências da natureza. A que área pertence a descoberta da radioatividade e seus desdobramentos? Essa questão emergiu claramente na concessão do PNF e do PNQ daquele ano, mas continuou nos anos seguintes. Por exemplo, quando o PNQ de 1908 foi concedido a Rutherford, por suas investigações na desintegração dos elementos, e a química das substâncias radioativas, parte importante da comunidade científica considerava que essa era uma área predominantemente da física. Essa ambiguidade se transferiu para o sistema educacional básico em praticamente todos os países. No ensino médio, costuma-se abordar o modelo atômico nas disciplinas de química, apesar de que os avanços nessa área do conhecimento, no início do século 20, tenham sido apresentados por físicos. Os químicos da RASC consideravam uma temeridade conceder o PNF a Becquerel e ao casal Curie, porque isso poderia fazer com que os físicos passassem a considerar a radioatividade e as descobertas de novos elementos químicos radioativos como uma área da física, e não da química.
Se considerarmos os argumentos de Roberto A. Martins [4], podemos questionar a concessão do prêmio a Becquerel, porque sua única contribuição foi ter feito o experimento que mostrou a existência do fenômeno. Foram infrutíferas todas as suas tentativas de explicar o processo pelo qual os compostos de urânio emitiam aquela radiação. A explicação veio dois anos depois, com as investigações de Marie Curie. De fato, entre os três ganhadores do PNF de 1903, Becquerel, Pierre e Marie Curie, talvez esta seja a que mais mereceu o prêmio. É verdade que o uso do equipamento inventado pelos irmãos Curie foi fundamental, mas tudo indica que os experimentos foram conduzidos e analisados por ela. A participação de Pierre não é clara. Talvez este seja um caso em que critérios sociais tenham sobrepujado critérios puramente científicos, ou por desconhecimento dos principais votantes, ou por respeito ao status acadêmico de Becquerel, o único entre os três a fazer parte da ACP e da RASC. Aliás, Marcellin Berthelot, também membro das duas academias foi o único a indicar Becquerel para o PNF de 1901, repetindo a indicação em 1902 e 1903, quando outros cientistas já indicavam a divisão do prêmio entre Becquerel e o casal Curie.
A RASC decidiu conceder a metade do prêmio a Becquerel e a outra metade ao casal Curie. Se houvesse justificativa científica para incluir Becquerel, o mais justo seria 1/3 do prêmio para cada um. Consta no anúncio que o prêmio foi concedido a Becquerel em reconhecimento de seus extraordinários serviços pela descoberta da radioatividade espontânea, e a Pierre Curie e Marie Curie em reconhecimento aos extraordinários serviços prestados por eles, com as pesquisas sobre o fenômeno da radiação descoberto pelo Professor Henri Becquerel.
Uma situação inteiramente assimétrica aconteceu na premiação de 1935, envolvendo outros dois membros da família Curie, Irène, filha de Marie e Pierre, e seu marido Frédéric Joliot-Curie. De acordo com o anúncio da RASC, o PNF de 1935 foi concedido a James Chadwick pela descoberta do nêutron. Este é o registro mais popular que se tem dessa importante descoberta. Embora não se possa contestar a premiação de Chadwick, o registro puro e simples de que o nêutron foi por ele descoberto cristaliza uma injustiça aos trabalhos precursores de Irène Joliot-Curie e Frédéric Joliot-Curie, entre outros. Essa descoberta deu-se num contexto histórico que bem caracteriza, em toda sua dramaticidade, a complexidade do trabalho científico e o estresse emocional a que estão sujeitos os profissionais da área, quer seja pelo alto nível de competição, ou pela necessidade de reconhecimento pela descoberta.
Ernest Rutherford foi pioneiro no estudo dos núcleos atômicos a partir de bombardeio com partículas alfa. Foi assim que ele propôs, em 1911, o modelo atômico que seu auxiliar Niels Bohr desenvolveu e que abriu as portas para o desenvolvimento da física quântica. Em 1919, Rutherford bombardeou átomos de nitrogênio com partículas alfa e descobriu o surgimento de oxigênio. Ou seja a reação nuclear resultante do bombardeio produzia oxigênio e prótons. Foi a primeira vez que se falou em transmutação nuclear. Desde então, vários laboratórios, especialmente na Alemanha, França e Inglaterra passaram a realizar experimentos similares com bombardeio de partículas alfa.
Por volta de 1930, o físico alemão Walther Bothe bombardeou películas de berílio e observou o surgimento de átomos de carbono e uma radiação tipo raios gama com alta energia. Em seguida, o casal Joliot-Curie repetiu o experimento de Bothe e obteve o mesmo resultado, mas levantaram a hipótese de que aquele raio gama de alta energia talvez pudesse produzir transmutação. Repetiram o experimento, colocando vários materiais na frente dos raios gama. Em 18 de janeiro de 1932, eles relataram que prótons eram ejetados de materiais ricos em hidrogênio, como a parafina, com energia da ordem de 5 MeV (cinco milhões de eletronvolt). Concluíram que esse resultado vinha da interação entre os raios gama energéticos e os núcleos de hidrogênio. Para que isso ocorresse, o raio gama deveria ter energia da ordem de 50 MeV, algo impensável para muitos cientistas da área.
Tão logo leu o artigo do casal francês, Chadwick relatou os resultados para Rutherford, seu ex-orientador, que, serenamente disse: não acredito nisso. Repita o experimento e explique o resultado supondo que em vez do raio gama, o que há é uma partícula neutra, com massa similar à do próton. Um mês depois, Chadwick publica seu artigo com resultados idênticos aos de Irène e Frédéric Joliot-Curie, mas com interpretação completamente diferente. Aquilo que se pensava ser um raio gama, era uma partícula neutra que seria denominada nêutron. Em seus cálculos, Chadwick mostrou que o nêutron teria energia da ordem de 4,5 MeV, suficiente para espalhar prótons com 5 MeV.
O casal Joliot-Curie usou o modelo nuclear da época para explicar seus resultados. De acordo com esse modelo, o núcleo era constituído de prótons e elétrons. No caso do berílio, seriam 9 prótons e 5 elétrons, de modo que o núcleo poderia emitir raios gama de até 70 MeV. No entanto, em 1932, esse modelo já era muito contestado pelas contradições de vários resultados experimentais. Para interpretar seu resultados Chadwick criou outro modelo, no qual o núcleo de berílio é composto de 4 prótons e 5 nêutrons.
Como afirmei no ensaio anterior, se o CNF usasse a mesma lógica da premiação de 1903, onde a primazia pela descoberta da radioatividade foi compartilhada por Becquerel e o casal Curie, Chadwick e o casal Joliot-Curie deveriam compartilhar a primazia pela descoberta do nêutron. Mas, não foi isso que aconteceu. Neste caso parece que a polêmica envolvendo os dois comitês (CNF e CNQ) foi mais séria do que o caso de 1903. Há uma história folclórica, que corre nas alamedas dos campi e nas animadas conversas de botequins, segundo a qual Rutherford teria viajado a Estocolmo para obrigar o CNF a dar o prêmio apenas a Chadwick, pois o comitê estava propenso a premiar o casal Joliot-Curie. Jamais vi essa bravata escrita em textos da literatura pertinente.
O que os documentos confiáveis [8] registram é o seguinte. Em 1934, Irène obteve 9 indicações para o PNF, Frédéric obteve 6, e Chadwick 7. O comitê não conseguiu se definir a quem premiar. O curioso é que Otto Stern obteve 15 indicações, entre as quais algumas de gente muito importante, como Niels Bohr, Max von Laue e Max Planck. Stern seria premiado em 1943. Neste caso, tudo indica que foi uma questão de atribuição à importância do tema. Ou seja, o CNF estava convencido da importância superior da descoberta do nêutron. Então, teria sido mais simples se o comitê tivesse seguido o procedimento de 1903, quando premiaram Becquerel e o casal Curie. Ao invés disso, não conseguiram superar o impasse e deixaram de conceder o PNF em 1934.
Não conheço na literatura uma discussão detalhada sobre essas polêmicas em torno das premiações em 1934 e 1935. Não sei qual a razão, mas naquele ano de 1934, Rutherford não participou da nomeação de candidatos ao PNF. Obviamente que ele era o mais influente defensor de Chadwick, mas não sei qual era sua argumentação contrária ao compartilhamento do PNF entre seu pupilo e o casal Joliot-Curie. Essa sugestão tinha sido apresentada em 1934 por Reinhold Fürth e Hantaro Nagaoka. Werner Heisenberg tinha feito a mesma sugestão, mas esqueceu de enviar a carta para o comitê. Em 1935 ele repetiu a sugestão.
O fato é que Rutherford conseguiu convencer os comitês de física e química a premiarem, em 1935, respectivamente Chadwick pela descoberta do nêutron, e o casal Joliot-Curie pela descoberta da radioatividade artificial, ou, dito de outro modo, pela síntese de novos elementos radioativos. Em defesa de Chadwick ele escreveu uma carta com quatro páginas, endereçada ao Comitê de Física, com o seguinte parágrafo final [9]:
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Todo o trabalho de Chadwick é caracterizado pela originalidade do método, precisão da medição e julgamento na interpretação dos resultados. Ele desempenhou um papel notável na abordagem pioneira à propriedade dos núcleos e à transformação dos elementos.
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Não sei se Rutherford estava se referindo aos equívocos de interpretação do casal Joliot-Curie quando mencionou precisão da medição e julgamento na interpretação dos dados. Embora ao final tenha tido sucesso na sua sugestão, parece que isso não veio sem estresse. Por exemplo, no CNQ o casal Joliot-Curie obteve apenas três indicações, uma delas do próprio Rutherford. Outros candidatos tiveram mais indicações: Walther Norman Haworth teve cinco indicações, Paul Karrer e Robert Robinson, quatro cada um. Os dois primeiros dividiram o PNQ de 1937, e Robinson foi premiado em 1947.
No Comitê de Física a sugestão de Rutherford também deve ter enfrentado alguma oposição. É bem verdade que com 12 indicações, Chadwick era o preferido do comitê. Contudo, Rutherford era o único físico de renome a defender a premiação unicamente a Chadwick. Outros sete cientistas de menor expressão o seguiram. Entre as seis indicações de compartilhamento do prêmio entre Chadwick e outros candidatos, podem ser destacados: Louis de Broglie, Heisenberg e Maurice de Broglie que indicaram o compartilhamento entre Chadwick e o casal Joliot-Curie, e Bohr que indicou o compartilhamento entre Otto Stern e o casal Joliot-Curie.
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Voltemos ao PNF de 1903. Se fossem apenas pelas indicações, provavelmente Marie Curie não estaria entre os premiados. O CNF, sob influência de membros da ACP, tendia a indicar apenas Becquerel e Pierre. Elisabeth Crawford acha que sua indicação se deve ao esforço do matemático sueco Magnus Gösta Mittag-Leffler, membro do CNF. Mas, se o CNF inicialmente hesitou em premiar Madame Curie, a imprensa mundial não se cansou em elogiar seu sucesso científico, transformando-a em uma figura lendária. Na verdade, o PNF de 1903 transformou a imagem pública da ciência. É provável que muito dessa imagem midiática do início do século 20 esteja representada nesse filme recém-lançado, Radioactive, que ainda não tive a oportunidade de assistir.
É curioso que a imprensa não menciona Becquerel em suas matérias. Tudo concentra-se no casal Curie, ou na pessoa da Madame Curie, eventualmente com algum exagero [7]:
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Finalmente encontramos o movimento perpétuo, o sol eterno, a força suprema e inesgotável, graças ao gênio criativo de Monsieur e Madame Curie, a quem o Prêmio Nobel cairá como uma luva.
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Em 1906 Pierre é atropelado por uma carruagem e morre instantaneamente. Marie continua a pesquisa sozinha, dirigindo um grande grupo de pesquisa, e vai progressivamente sendo reconhecida pela comunidade científica internacional. Em 1911, é uma das 20 personalidades da comunidade científica internacional convidada para o primeiro congresso Solvay, em Bruxelas. Logo depois é laureada com o PNQ, pela descoberta dos elementos rádio e polônio, pelo isolamento de rádio, e pelo estudo da natureza desse notável elemento e seus compostos. Esse prêmio é quase como uma homenagem a toda a vida científica de Marie Curie. É provável que esse sentimento para sempre tenha tomado conta da comunidade científica. O ano de 2011 foi designado pela UNESCO como o Ano Internacional da Química, para celebrar o papel das mulheres na química e o centenário do Prêmio Nobel de Química de Marie Curie.
Sua conferência Nobel, proferida em 11 de novembro de 1911, é um extraordinário e comovente testemunho de quem sempre esteve à frente de uma área de pesquisa contemporânea, ainda em sua adolescência [10]:
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Há 15 anos a radiação de urânio foi descoberta por Henri Becquerel, e dois anos depois o estudo deste fenômeno foi estendido a outras substâncias, primeiro por mim, e depois por Pierre Curie e por mim. Esse estudo rapidamente levou à descoberta de novos elementos, cujas radiações eram semelhantes à de urânio, porém mais intensas. Denominei radioativos todos os elementos que emitiam esse tipo de radiação, e a nova propriedade da matéria revelada nessas emissões, denominei radioatividade.
[…]
Desde então, vários cientistas dedicaram-se ao estudo da radioatividade. Permita-me relembrar um deles […] Rutherford, que veio a Estocolmo em 1908 para receber o Prêmio Nobel.
[…]
Antes de abordar o assunto desta palestra, devo lembrar que as descobertas do rádio e do polônio foram feitas por Pierre Curie em colaboração comigo. Também somos gratos a Pierre Curie pela pesquisa básica no campo da radioatividade, que realizou sozinho, ou em colaboração com seus alunos.
O trabalho químico para isolar o rádio no estado de sal puro e caracterizá-lo como um novo elemento foi feito especialmente por mim, mas está intimamente ligado ao nosso trabalho comum. Sinto, portanto, que interpreto corretamente a intenção dos Academia de Ciências ao assumir que a atribuição desta elevada distinção a mim é motivada por este trabalho comum e, portanto, presta homenagem à memória de Pierre Curie.
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O que mais além do Nobel?
Aos 44 anos e dois PN debaixo do braço, Marie ocupava, como poucos, posição destacada no Olimpo da ciência, mas não era mulher de ficar por aí à toa, apenas satisfeita com os louros da glória. Desde sempre Marie esteve comprometida com sua responsabilidade social. Ainda adolescente ministrava aulas clandestinas em polonês, discutindo a cultura de seu país, às escondidas do regime russo que controlava a Polônia com mão de ferro. Com o advento da I Guerra Mundial, resolveu instalar equipamentos de raios-X em caminhonetas e foi para a frente de batalha trabalhar com médicos e enfermeiras, ao lado de sua filha Irène, recém-saída da adolescência. Irène será sua dedicada aprendiz, e sucessora como diretora do Institute du Radium, criado em 1909.
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Sua filha mais nova, Ève, não seguiu a carreira científica de seus pais e de sua irmã. Resolveu ser escritora, pianista/concertista, crítica musical e jornalista, mas possibilitou que a família fosse, pela sexta vez premiada com o Nobel. Em 1965, seu marido, Henry Richardson Labouisse Jr., recebeu, em nome da UNICEF o Prêmio Nobel da Paz.
Algum leitor poderá alegar que deixei de abordar o caso de amor de Marie Curie e o ex-aluno de Pierre, Paul Langevin, entre 1910 e 1911. Para contornar a possibilidade de que o assunto se transformasse em anticlímax no contexto deste ensaio, seria necessário um espaço muito maior do que o aqui recomendado. Em um curto espaço nada poderia acrescentar ao que consta na literatura que aqui apresentei, especialmente os livro de Françoise Giroud [2] e Susan Quinn [3].
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Notas:
[1] E. Curie, Madame Curie (Gallimard, Paris, 1938).
[2] F. Giroud, Marie Curie (Martins Fontes, São Paulo, 1989).
[3] S. Quinn, Marie Curie. A Life (Addison-Wesley, Reading, 1995).
[4] R. de A. Martins, Becquerel e a Descoberta Da Radioatividade: Uma Análise Crítica (Eduepb / Livraria da Física, Campina Grande, 2012).
[5] A. Villani, C. A. dos Santos, J. M. F. Bassalo, and R. A. Martins, Da Revolução Científica à Revolução Tecnológica: Tópicos de História Da Física Moderna e Contemporânea (Livraria da Física, São Paulo, 2019).
[6] R. de A. Martins, Cad. Catarinense Ensino Física 7, 27 (1990).
[7] E. Crawford, La Fondation Des Prix Nobel Scientifiques 1901-1915 (Belin, Paris, 1984).
[8] Nobel-Prize-Org, Nobel Prize Organ. (2020).
[9] A. Brown, The Neutron and the Bomb. A Biography of Sir James Chadwick (Oxford University Press, Oxford, 1997).
[10] M. Curie, Radium New Concepts Chem. (1911).
[11] N. Loriot, Irène Joliot-Curie (Éditions Presses de la Renaissance, Paris, 1995).
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Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.
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