por Rogério P. Severo
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Algumas marcas do cristianismo em nossa cultura estão visíveis por toda a parte — em igrejas e templos, em procissões e festas populares, nos calendários e nos nomes próprios. Outras, no entanto, enraizaram-se e difundiram-se tão completamente que deixaram de ser discerníveis. Funcionam em nós como óculos por meio dos quais vemos a realidade, sem que eles próprios recebam o foco de nossa atenção. Nas últimas décadas, à medida que as águas do cristianismo recedem, algumas das estruturas mais arcaicas da nossa visão de mundo cristã reemergiram, mostrando seu aspecto particular e contingente, e ao mesmo tempo a importância inegável que têm para pessoas como nós, que vivemos em países como o Brasil. Esse é o tema principal do livro Dominion: the making of the Western mind (Londres: Little, Brown & Co., 2019), do historiador britânico Tom Holland. Ainda não traduzido para o português, o livro contém um panorama da evolução do cristianismo e seus desdobramentos nas culturas seculares contemporâneas. Os direitos humanos, a valorização da igualdade e da liberdade, a ideia de que os mais fracos e vulneráveis são intrinsecamente dignos e merecedores de proteção, o casamento consensual, a nossa moral sexual, a indignidade da escravidão e a ideia de progresso — tudo isso, segundo Holland, decorre de duas ideias cristãs: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós são um só em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28) e “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mateus 20:16)...
Essas duas ideias arraigaram-se tão profundamente na nossa cultura que tendemos a não vê-las como especificamente cristãs. Em vez disso, a sua manifestação cristã tende a parecer-nos como uma encarnação particular de uma algo mais universal e culturalmente neutro. A tese central de Holland é que isso é falso. Trata-se de uma inversão gestada pelo iluminismo, e da qual somos herdeiros. Aquilo que era primariamente cristão foi descolado de sua base especificamente religiosa e metafísica e reapresentado em termos leigos, seculares, ou racionais. As manifestações religiosas dessas ideias foram então criticadas como estreitas e obscuras. Mas, argumenta Holland, essas críticas não fariam sentido se não tivessem sido formuladas num ambiente já saturado de cristianismo. A crítica à idolatria e à corrupção das instituições religiosas promovidas pelos iluministas apenas repetiu o padrão argumentativo e moral de protestantes contra católicos, que por sua vez repetiu o padrão manifesto por cristãos medievais contra pagãos. A ideia básica é a mesma: há uma ilusão obscura que está sendo cultuada (um falso deus, um ídolo) e uma instituição que explora os mais fracos. Contra a obscuridade e a exploração, busca-se a luz universal da razão e a dignidade intrínseca de todos os seres humanos. Gregos e romanos antigos não entenderiam essas ideias, como tampouco muçulmanos, hindus ou chineses. Nós não apenas as entendemos, mas as formulamos em uma miríade de doutrinas e ideologias que disputam a hegemonia cultural no interior de nossa tradição. Liberais e socialistas, ateus e religiosos, os movimentos feminista, negro e gay (mesmo nas suas versões “woke” dos últimos anos), tanto quanto os movimentos antiaborto e contra o casamento homossexual são todos herdeiros das ideias e valores básicos do cristianismo, diuturnamente celebrados em canções populares de amor e em histórias e filmes de heróis hollywoodianos. Boa parte das querelas que assolaram o ocidente nos últimos séculos, segundo Holland, são como disputas de seitas no interior do cristianismo. Um samba de uma nota só, por assim dizer; ou variações sobre um mesmo tema.
O autor relata que a ideia para o livro surgiu de seu crescente estranhamento daquilo que percebeu em culturas não cristãs antigas e medievais, sobre as quais escreveu diversos outros livros (dois deles, Fogo persa e Milênio, já traduzidos para o português). A mentalidade antiga ou islâmica, ele sustenta, é estranha e incompreensível para nós de um modo que a mentalidade cristã medieval não é. Não havia nas culturas não cristãs do mundo antigo e medieval nenhuma doutrina de direitos humanos, a escravidão era largamente aceita e praticada, os casamentos não eram monogâmicos, as mulheres não eram vistas como iguais aos homens em nenhum sentido relevante, não havia nenhuma ideia de progresso moral ou social, e o amor e a bondade, que hoje cantamos em prosa e verso, eram vistos como fraquezas. A democracia ateniense, diferentemente do que pode parecer, não se baseava em direitos individuais, como acontece nas democracias modernas. Os relatos históricos, a literatura e a mitologia da antiguidade consagram valores e práticas que hoje tomaríamos como francamente abomináveis. Holland descreve em detalhes o horror (para nós) das práticas de crucificação de criminosos, prisioneiros e escravos, a prática corriqueira de homens livres romanos de terem relações sexuais com quem quisessem e como quisessem (que hoje chamaríamos de estupro), a glorificação da morte de estrangeiros e inimigos como uma manifestação de poder e força (que hoje veríamos como genocídio). Heróis e deuses do mundo antigo destacavam-se pelos ardis e pela capacidade de se imporem, exatamente o oposto do padrão heroico que herdamos da cristandade medieval: o do herói que se sacrifica pelos mais fracos (o cavalheiro medieval, tanto quanto Robin Hood ou os super-heróis do cinema contemporâneo), o herói que encarna o amor sacrificial cristão, a capacidade de colocar-se a serviço do bem da pessoa amada, mesmo que isso implique autossacrifício. É o autossacrifício amoroso que dá sentido à vida do herói medieval e moderno, e não a sua excelência nas artes marciais ou suas conquistas materiais. Nada disso faria muito sentido a um grego ou romano antigo, ou a um muçulmano ou hindu. E no entanto, é tão natural para nós que chegamos a achar que não se trata de uma peculiaridade cristã.
Essa tese de Holland não é nova. Podemos encontrá-la em diversos outros historiadores recentes, que vêm apontando as origens cristãs de diversos aspectos da nossa mentalidade atual. Por exemplo, Rodney Stark argumentou (em For the glory of God) que a revolução científica moderna foi um produto dos desenvolvimentos internos ao cristianismo do final da idade média, do mesmo modo que os movimentos modernos pela abolição da escravidão tiveram sua origem em comunidades cristãs, especialmente a dos quacres. Brian Tierney (em The idea of natural rights) argumenta que nossa ideia contemporânea de direitos é um desenvolvimento do direito canônico do século XII. Kyle Harper sustentou (em From shame to sin) que a primeira revolução sexual não aconteceu na década de 1960, mas na idade média. Movimentos feministas recentes, como o “me too”, não fariam sentido a não ser num contexto em que a moral sexual é restritiva e em que se espera que as pessoas, sobretudo os homens, sejam capazes (e devam) conter os seus impulsos sexuais. A novidade do livro de Holland, e também o seu mérito, está em generalizar essas diversas análises particulares, mostrando que há uma espécie de visão de mundo ou imaginário cristão que molda o nosso modo de pensar e viver não apenas nos países onde a maioria da população é cristã, mas em todos os países nos quais houve ou está havendo um processo de secularização. O cristianismo, ele sustenta, alcançou seu incrível domíno primeiramente por meio de conversões (de povos pagãos) e, mais recentemente, pela secularização das sociedades. A ideia de que há um conjunto de leis humanas que são universais e às quais as diversas religiões particulares têm de se conformar, por exemplo, é uma ideia tipicamente cristã (à qual, aliás, os fundamentalistas islâmicos hoje em dia se opõem). O próprio conceito de religião, e as ideias a ele associadas de liberdade de prática e culto e de separação entre Estado e igreja, são criações do cristianismo. Aquilo que hoje chamamos de judaísmo não era na antiguidade uma religião, como tampouco o eram o que hoje chamamos de hinduísmo, budismo, taoísmo ou religiões africanas ou indígenas. Essas tradições e povos originalmente não se concebiam como tendo religiões. Mas nós, que vivemos em sociedades seculares contemporâneas, não hesitamos em usar a palavra “religião” para descrever isso que nos parece natural e universal: todos os povos têm as suas respectivas religiões e todos têm o direito de exercê-las! Para nós é difícil imaginar que as coisas possam ser diferentes...
Mas elas podem ser diferentes. Um exemplo claro disso são as ideologias fascistas e nazistas do século vinte. Essas ideologias negam tanto a ideia de que “judeus e gregos” são iguais quanto a ideia de que os “últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”. São ideologias que afirmam a identidade de um povo acima dos demais e que têm desprezo pelas manifestações de fraqueza ou vulnerabilidade. São, nesse sentido, a antítese daquilo que há de mais central ao cristianismo.
O livro de Holland mostra o caráter historicamente contingente (portanto não universal nem necessário) do cristianismo, mas ao mesmo tempo exibe a incrível atração que ele exerce sobre todos nós, mesmo em sociedades largamente seculares. Isso que hoje palpavelmente percebemos como um recesso e aparente enfraquecimento do cristianismo nas sociedades contemporâneas é largamente um produto do seu próprio desenvolvimento. Há um padrão que se repete nessa história e que agora experimentamos em escala global. Os cristão medievais criticaram a idolotria pagã. Os protestantes criticam a idolatria católica. Os iluministas e ateus criticaram a idolatria cristã. Nesses três movimentos, o mesmo ciclo se repete, induzindo uma concepção progressivamente mais rarefeita do sagrado. Até que, por fim, de tão rarefeita, a ideia do sagrado parece desmanchar-se no ar. Esses ciclos, no entanto, não são estranhos ao cristianismo, mas produtos de sua lógica interna, que desde o início anuncia o seu final apocalíptico. A história cristã assim descreve um arco que repete o da vida do Jesus histórico: nascimento, crescimento, morte e ressurreição. E do mesmo modo que foi traído por um discípulo por ele mesmo escolhido, assim também foi no interior das culturas cristãs que surgiram os movimentos mais fortemente ateus e seculares.
É difícil não experimentarmos hoje um certo sentimento apocalíptico, a sensação de que algo chegou ao fim. No entanto, quase ninguém se atreve a dizer o quê. Ficamos então sem saber em que se apoiar. Em épocas desse tipo a reflexão tende a voltar-se para os fundamentos. O belo livro de Tom Holland pode ser visto como uma contribuição para uma resposta ainda não encontrada para os anseios e preocupações mais profundos e básicos de nosso tempo. Um livro altamente recomendável para todos os que compartilham dessa mesma sensibilidade.
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[Gostaria de agradecer a Flavio Williges, Bárbara Vianna, Ricardo Mendes, Mariana Vasconcellos e Luis Fernando Barzotto pela leitura caridosa e pelos comentários críticos a uma versão anterior desta resenha.]