Fazendo renascer o humano

A partir da disputa entre o florentino e o latim nos XIII e XVI na Itália, um ensaio de Emanuel França de Brito sobre fazer renascer o humano.

por Emanuel França de Brito

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Com o melhor entusiasmo humanista, Hans Castorp, protagonista de A Montanha mágica de Thomas Mann, classifica como “recentes” dois intervalos históricos nem sempre vistos como tão curtos: os cento e vinte anos que o separam da descoberta de Urano e os três mil anos que separam a nossa da civilização dos caldeus.[1] Já em Os três filósofos, de Giorgione, as figuras que personificam diferentes momentos da ciência transmitem uma imagem um pouco menos entusiasmada; isto é, um jovem no centro da pintura dá as costas a um árabe de meia-idade e a um ancião grego, que segura anotações astronômicas; um jovem que, sozinho, se vale de novos instrumentos diante de um cenário obscuro sem parecer se importar muito com os cálculos desmentíveis daqueles que o precederam.[2]

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Os três filósofos, Giorgione, c. 1506-1508

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Talvez seja nesse sentido que Massimo Cacciari diga que “homo é quem sepulta os mortos (humus-humare) . . . e o faz para mantê-los junto, para deles se lembrar com pietas religiosa . . . e para desenterrá-los sempre”.[3] Mas enquanto Castorp não se importa em eliminar a evidente distância do passado, mantendo renascidas junto a si a presença de velhas sombras, o jovem de Giorgione parece disposto a eliminá-las, levando a crer que essa exumação dos cadáveres de que fala Cacciari é feita não sempre que conveniente, mas apenas quando conveniente.

Outra maneira possível de se ler o passado, apagando ou recuperando o que interessa, é como o século XV escolheu ler um dos grandes poetas que há pouco o haviam precedido, o florentino Dante Alighieri. Para que cheguemos à relação que alguns importantes representantes do Humanismo estabeleceram com Dante será necessário fazermos duas considerações: em primeiro lugar, observar uma terminologia que pode diferenciar Humanismo e Renascimento, o grande movimento artístico que logo vem à mente quando se pensa na Itália do século de Giorgione; em segundo, observar o modo como um ser humano, dotado de livre arbítrio, escolhe renascer.

Se partirmos de algumas figuras ilustres que nos remetem a esses movimentos intelectuais e artísticos como Humanismo e Renascimento, podemos entender que se tratam de fenômenos contemporâneos entre si, um mais ligado ao campo retórico-filológico e outro ao campo estético-artístico; mas ambos são imbuídos de uma fervente atividade intelectual de ver o presente e o futuro a partir do antigo, de Atenas e de Roma, principalmente. E, se quisermos ser mais axiomáticos, poderíamos dizer que o espírito do Humanismo é o que anima o Renascimento, sem que os dois rótulos possam se dissociar completamente, ainda que o título de humanista seja usado até tempos mais recentes de forma mais ampla. Se localizarmos a origem desses movimentos na Florença no final do século XIV, percebemos que figuras que representavam essas duas correntes — como Filippo Brunelleschi, Donatello, Sandro Botticelli, Donato Bramante e Leonardo da Vinci — conviveram no mesmo tempo e lugar que, respectivamente, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Cristoforo Landino, Marsilio Ficino, Angiolo Poliziano, Giovanni Pico della Mirandola, Machiavelli— cada um deles envolvido com os estudos das artes ou das letras. Mas até mesmo essa dissociação entre artes e letras talvez não seja de todo legítima se considerarmos Leon Battista Alberti, que foi quem sempre esteve entre esses dois mundos, o retórico-filológico e o estético-artístico.

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Leon Battista Alberti

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Observando o termo Renascimento, chegamos à segunda consideração sobre o arbítrio individual, de como e em que passado renascer. Está claro que o que esse termo nos traz é a ideia de um retorno à vida, um renascer (intransitivo ou transitivo) de algo que poderia estar inerte, apagado. Tradicionalmente, a origem desse novo espírito humanista é considerada a partir da obra do poeta Francesco Petrarca, de uma relação íntima que ele havia estabelecido com autoridades antigas, como Cícero e Santo Agostinho, e que viria a se desenvolver como um novo olhar para a antiguidade clássica greco-romana que se contrapunha àquele da escolástica medieval. No campo das artes, tem a ver também com o novo gosto de tempero pagão que obras como o Davi de Donatello imprimiram na cultura da Florença do início do ’400: um nu masculino, frágil e erótico ao mesmo tempo,[4] modelo de figura humana que não era representado desde a queda do Império romano, e que resignificou e fez renascer de um modo novo aquilo que hoje chamamos de clássico.

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O David de Donatello, c. 1430-1469 (Museo Nazionale del Bargello)

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É senso comum, portanto, atribuir a Petrarca o lugar de primeiro escritor a expressar as questões psicológicas que irão inaugurar o período de fértil meditação filológica, artística e filosófica que chamamos de Humanismo, cuja ruptura com o mundo medieval seria inerente para a noção que temos de moderno. Mas há também quem acredite, como Auerbach, que isso não teria sido possível sem que a obra de Dante tivesse tornado realidade “a essência cristã-figural do homem” e a destruído “na mesma realização, rompendo a moldura do quadro pela potência da imagem”.[5] É como se o homem pós-Dante, como Petrarca, com todos os seus medos, inseguranças, dificuldades e impossibilidades, reescrevendo e desinterpretando Dante, pudesse ter se libertado da busca obrigatória pelo divino e pelo bem comum justamente pelo fato de Dante já ter alcançado essa visão suprema e radical de Deus, exposta de maneira didática na sua Divina Comédia  — visão que, sabemos, se imortaliza depois que Dante enumera e representa o mal humano em prol do coletivo, tarefa realizada em concordância com seu projeto de fundar uma língua de alta comunicação poética, filosófica e doutrinária.

Essa libertação de Petrarca passa pela escolha sobre a língua a valorizar na sua expressão literária. Petrarca elege o latim para as obras mais queridas, entre elas o seu poema épico África; a mesma língua que Dante havia cuidadosamente proposto aposentar, reconhecendo nela todos os méritos passados e presentes, mas querendo dar espaço para que algo novo se criasse. O latim, nesse sentido, era uma língua elevadíssima dentro da tradição, mas que se limitava a comunicar “altos conceitos” apenas aos literatos. E o projeto mais incisivo de Dante, desde a sua juventude, foi justamente em prol de uma língua natural, “vulgar”, como a sua florentina: a língua da Vita Nova, do Convívio, da Divina Comédia, que comunicava aos iletrados, alfabetizados apenas na língua prática do comércio e do dia a dia. E se não é a língua do De Vulgari Eloquentia, da Monarquia e de alguns outros textos poéticos ou epistolares, era porque seu público alvo nessas obras era outro que não o povo comum, sedento de conhecimento e que precisava ser salvo através desse mesmo conhecimento.

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Petrarca por Altichiero, c. 1370-1380

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Nesse sentido, podemos nos perguntar com Cacciari: “Qual civilidade seria uma civilidade se a mãe língua não fosse ilustrada e não iluminasse? Não se estabelece um colóquio se não à luz de um vulgar que saiba se construir latinamente. Quem será o seu artífice? Deus doa a faculdade de falar (e esse seu dom se relaciona estritamente ao da liberdade); a natureza faz com que se torne língua. Mas tal colóquio é arte. Quem é o seu fabro? É o poeta, que batendo e rebatendo na sua própria bigorna, a língua matriz, tira dela o vulgar ilustre. O poeta funda; o gramático ordena e interpreta”.[6]

No séc. XV italiano, o grande poeta era ainda Dante, que havia arrebatado seus contemporâneos com o imenso poema da Divina Comédia. No entanto, o modelo de intelectual incontestável passa a ser Petrarca, a julgar pela língua latina que continuava imperando entre os homens de cultura. Serão necessários ainda alguns séculos para que os gramáticos se permitissem “ordenar e interpretar” a língua florentina “natural” que Dante buscava elevar.[7] Podemos falar da pouca circulação dos tratados políticos e linguísticos de Dante, mas incontestável também é o enorme alcance e legibilidade da Divina Comédia que, nas palavras de um intelectual contemporâneo a Dante, Giovanni da Virgilio, estava jogando pérolas aos porcos ao discutir política, filosofia e teologia em uma língua inferior ao latim, destinada a um público que não tinha a capacidade, a seu ver, de entender nada.

Humanistas como Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Niccolò Niccoli e Manuele Crisolora atuaram como continuadores da obra de Petrarca na passagem do séc. XIV ao XV, num verdadeiro espírito renascedor para descobrir, estabelecer, copiar e arquivar novos códices, sobre os quais embasar pesquisas. Mas como se não bastasse o (restrito) estudo e difusão da língua latina como veículo para o conhecimento, surge também o interesse pelo grego, que irá alimentar toda uma nomenclatura das novas ciências da época, tal como o inglês faz hoje.

Mas é preciso ressaltar que as descobertas de Poggio devem ser vistas também num sentido divulgador e democratizante, ainda que a poucos, em latim e grego. Alguns dos textos descobertos por Poggio já eram conhecidos por estudiosos à época, mas Poggio difunde nada menos que obras de Cícero, Quintiliano, Valério Flacco, Estácio, Vitrúvio, Lucrécio, entre outros. Tudo isso, sem manter o nível pedante e elitista que rodeava seu universo cultural, mas no espírito divulgador e civilizador. Por conta desse grande apetite por novas obras, o séc. XV faz renascer a ciência e a técnica dos antigos não mais filtradas em modestos compêndios, manuais ou versões parciais, como acontecia na Idade Média que precede Petrarca, mas em documentos mais fiéis que permitem que o pensamento se desenvolva e tome o seu rumo.

Assim, a língua elitista que comunicava a poucos ainda se mostrava extremamente presente. Os círculos culturais do século do Renascimento se expressam tanto em latim como em língua “vulgar”, mas ao “vulgar” ainda não havia sido dado o devido destaque. Seriam necessárias ainda algumas décadas para que surgisse outro texto verdadeiramente revolucionário em língua “natural” florentina, o Príncipe, de Machiavelli (1513). E não por acaso, o texto aparece no campo da ciência política, talvez pela urgência em se comunicar não só com os eruditos, mas principalmente com aqueles governantes iletrados que tinham o poder de fazer algo “pelo bem comum”. Durante a composição do Príncipe — como o autor irá contar numa carta ao seu amigo Francesco Vettori naqueles anos de exílio político[8] — Machiavelli se liberta das roupas sujas da lavoura diária e veste roupas limpas, com as quais se senta pra conversar com os antigos e deles receber “amorosamente” o alimento que lhe dará forças para observar e escrever sobre o presente. É nesse contato que parece se estabelecer uma nova — mas nunca tanto duradoura — paz entre pensamento e palavra.

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O Dante de Signorelli, na capela da Madonna di San Brizio

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Notas:

[1] MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 428.

[2] GIORGIONE (Giorgio da Castelfranco). Os três filósofos. Óleo sobre tela, 1506-1508. Viena, Kunsthistorisches Museum. Sobre essa interpretação da obra, cf. NARDI, Bruno. “I tre filosofi del Giorgione”. In: Saggi sulla cultura veneta del Quattro e Cinquecento. Org. Paolo Mazzantini. Pádua: Antenore, 1971.

[3] CACCIARI, Massimo. La mente inquieta: Saggio sull’Umanesimo. Turim: Einaudi, 2019, p. 29. Tradução nossa, grifos do autor.

[4] DONATELLO (Donato Bardi). Davi. Bronze, 158 cm. 1440 c. Florença, Museo Nazionale del Bargello.

[5] AUERBACH, Erich. “Farinata e Cavalcante”. In: Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores. 5a Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 175.

[6] CACCIARI. Op. cit., p. 20 (grifos do autor).

[7] Exceção para a Grammatichetta vaticana, de Leon Battista Alberti. Provavelmente do fim dos anos 30 do séc. XV, a obra é conhecida como Grammatichetta (dim.) pela sua brevidade, e vaticana por estar num códice conservado na Biblioteca Apostólica Vaticana (Vat. Reg. 1370).

[8] MACHIAVELLI, Niccolò. “Lettera a Francesco Vettori (S. Casciano – Albergaccio, 10/12/1513)”. In: Lettere a Francesco Vettori e a Francesco Guicciardini (1513-1527). Org. Giorgio Inglese. Milão: Biblioteca Universale Rizzoli, 1989.

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