por Rafael Kruchin
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Hoje completam-se exatos 60 anos do julgamento de Adolf Eichmann, oficial da SS responsável pelas deportações de judeus aos campos de concentração, capturado em Buenos Aires e levado a Jerusalém para um dos mais conhecidos julgamentos de um nazista depois do Tribunal de Nuremberg. Hannah Arendt, filósofa e judia alemã, fez a cobertura do caso em 1961 para a revista The New Yorker, gerando forte reação na opinião pública. Sua interpretação do julgamento ganhou ainda mais notoriedade com o livro Eichmann em Jerusalém, no qual ela desenvolve sua teoria sobre a banalidade do mal. Sobre o conceito, em carta escrita em 20 de julho de 1963 a seu amigo Gershom Scholem, também filósofo judeu-alemão, ela diz:
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“Eu de fato penso atualmente que o mal nunca é ‘radical’, que ele é apenas extremo e não possui profundidade nem qualquer dimensão demoníaca. Ele pode proliferar e devastar o mundo inteiro precisamente porque ele se espalha como fungo sobre a superfície. Ele desafia o pensamento, como eu disse, porque o pensamento procura alcançar alguma profundidade, ir às raízes, e, no momento em que lida com o mal, ele se frustra porque não há nada. Isto é ‘banalidade’. Apenas o bem tem profundidade e pode ser radical”.
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Em outras palavras, a ideia de Hannah Arendt é que, diferente do que muito comumente se pensa, regimes totalitários não se sustentam por lideranças desumanas e demoníacas, mas em grande parte por oficiais burocratas, obedientes, que, mais do que monstros, são pessoas que pensam a partir de clichês. Assim, segundo a filósofa, a importância de compreender o papel da obediência no regime nazista se dá porque é na administração burocrática que é possível um indivíduo que age se afastar da responsabilidade de suas ações.
O exemplo mais bem acabado dessa visão é a própria resposta de Eichmann às acusações: “com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não-judeu — nunca matei nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu ou um não-judeu; simplesmente não fiz isso”. A partir do momento em que ele enxerga que a responsabilidade pela deportação dos judeus é de quem delegou a ordem, e não se via responsável pelo que se passava nos campos, não se entendia como culpado.
É justamente a partir dessa noção, derivada de sua observação do julgamento e das atitudes do réu durante o processo, que Arendt concluiu que o acusado era uma pessoa “qualquer”, e não uma figura desumana. O que os promotores israelenses estavam tentando demonstrar, que o responsável pelas deportações era uma pessoa monstruosa, sádica e pervertida, para ela não serviria para explicar as ações de Eichmann e outros oficiais SS.
A análise de Hannah Arendt deixou grande parte da opinião pública e da comunidade judaica perplexa. Como a filósofa ousava dizer que um oficial nazista não seria algo como um monstro pervertido? Estaria ela fazendo escusas a ele? As acusações renderam criticas tamanhas que não foram poucos aqueles que tentaram jogar Arendt no ostracismo. Mas a tese, umas das mais referenciadas para pensarmos a atuação dos oficiais nazistas, em nada intentava relativizar seus crimes contra a humanidade, mas sim mostrar sob quais condições assassinatos em massa podem ocorrer.
Hoje, a lição de sua tese sobre Eichmann serve para todos nós. Para protegermos os direitos humanos e os valores democráticos, não devemos enfrentar apenas os líderes que nos parecem bestiais e demoníacos, mas sim todos aqueles que, mais rasos do que profundos, podem fazer o mal se disseminar como um fungo pela superfície.
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