Fernando Novais e o sentido da colonização

"Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)", cuja segunda edição foi recentemente lançada, é daqueles marcos teóricos que polarizam as paixões.

por Bruno Cava

Muitos não conhecem o livro, mas certamente estão familiarizados com as suas principais ideias, através dos livros escolares. Publicado na década de 70, nas seguintes viria a se tornar matriz da historiografia brasileira sobre a Colônia. O autor foi um dos três membros fundadores do famoso seminário uspiano no final dos anos 50. Os outros dois eram o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o filósofo José Arthur Gianotti. A conhecida contribuição desse grupo original: recepcionar a dialética materialista, a história-problema na ‘longue durée’ braudeliana, e as teorias globais da formação do capitalismo.

Fernando Novais, em edição do ‘Café Filosófico’

“Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)”, cuja segunda edição foi recentemente lançada, é daqueles marcos teóricos que polarizam as paixões. Como o título indica, é um estudo sobre a decomposição da colônia entendida como sistema, que vai do final do período pombalino até a abertura dos portos por D. João de Bragança.

Antigo Sistema Colonial, sigla ASC, é a primeira imagem bem acabada que sintetiza os três séculos e meio de América portuguesa. Todos temos pelo menos uma noção do que seja: o tripé formado por latifúndio, escravidão e monocultura/mineração, articulada dinamicamente para a produção de excedentes que, transportados a Portugal, rendiam aos patrícios lusos lucros comerciais faraônicos. O restante da economia em solo colonial girava ao redor desse eixo: a pecuária nordestina, o charque gaúcho, a praça mercantil no Rio de Janeiro, a economia de subsistência mantida por homens pobres livres.

Novais liga a explicação do ASC a um abrangente modelo explicativo então em voga, relacionado com a formação do capitalismo. A historiografia dos tempos modernos se debruçava sobre o período entre a crise geral do século 17 e a revolução industrial, ou seja, à passagem entre o feudalismo e o capitalismo tout court do século XIX. Isto se dava, por um lado, pela formação dos estados modernos, por meio da centralização do poder político nas monarquias absolutistas, por outro lado, pela lógica do capital mercantil, pelos lucros assegurados pelo comércio internacional.

Tal movimento de passagem tinha por centro de gravidade as potências europeias banhadas pelo Oceano Atlântico, colocando para funcionar para si duas periferias: o mercado atlântico da escravidão e o bolsão de servidão da Europa Oriental. A assimetria entre centro e periferias se refletia no pacto colonial: às colônias cabia exportar gêneros primários e importar manufaturas, num regime de monopólios e protecionismo, regulado desde a monarquia metropolitana. O resultado disso foi a geopolítica mercantilista, em que os estados atlânticos disputavam por primazia nos lucros do comércio.

Eric Williams

Atualizando uma tese mais antiga de Eric Williams, Novais afirma que o antigo sistema colonial propiciou, no final do século 18, uma importante fonte de acumulação para alavancar a industrialização europeia. O regime escravista-agroexportador que alguns historiadores consideravam a retaguarda da economia-mundo, na realidade, dava o sentido da modernização do sistema como um todo.

Contudo, essa mesma resultante do ASC é o que termina por precipitar a crise do sistema. A passagem da manufatura para a maquinofatura passou a exigir novos mercados consumidores para os produtos industrializados, o que inverteu o entendimento oficial da Inglaterra sobre a escravidão, o tráfico negreiro e o próprio pacto colonial. As tentativas lusas de conter a concorrência industrial inglesa por meio da manutenção dos monopólios (exclusivo colonial) apenas aumentou a pressão econômica de um contrabando que se generalizava.

Para tentar acompanhar o ritmo da virada industrialista que se prenunciava, o Marquês de Pombal (1750-77) investiu pesado na racionalização de investimentos e incentivos à agricultura, ao comércio e à manufatura. O governo português fez isso não apenas no território da metrópole, como também ultramar. Imaginava que metrópole e colônia podiam marchar juntas na direção do progresso, aumentando a arrecadação nas duas pontas.

Com isso, a ilustrada política pombalina provocaria ainda outra contradição: para melhor explorar a vastidão colonial, terminou por incentivar o seu desenvolvimento interno, o mesmo que iria contribuir na formação de uma elite local de negociantes pesos pesados, cada vez mais descontentes com a situação de desvantagem comparativa.

Tudo isso convergiu para a condição estrutural na qual a Independência se tornaria possível. Quando Portugal foi tragado pelo quadro instável das guerras napoleônicas e, a seguir, das revoluções liberais do começo do século 19, a colônia brasileira já reunia todos os elementos materiais, políticos e econômicos para dar o passo decisivo e pôr fim no ASC.

O modo como esse desenlace se deu, obviamente, estava em aberto para os agentes históricos. O modo como os homens fizeram história — no caso brasileiro, o desenlace da Independência foi o mais conservador possível — não elide o fato que o puderam fazer sob circunstâncias que não eram de sua livre escolha.

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Tornado ciência normal no país, o ASC tão bem sintetizado por Novais se tornou o alvo principal de ampla historiografia brasilianista que, a partir dos anos 1980, decidiu contestá-lo. Particularmente, uma escola de pensamento baseada na UFRJ atirou-se com incansável paixão na tarefa de, ponto por ponto, invalidar a teoria do ASC.

As contestações se deram em múltiplas frentes. Se o ASC baseava-se na tríade latifúndio, escravidão e monocultura, a Nova História proliferou monografias e juncou dados empíricos e tabelas para mostrar como o latifúndio era estatisticamente exceção, diante de um cenário de propriedades pequenas e médias com um número bastante inferior de escravos em relação aos grandes canaviais. Mostrou como a escravidão não admitia a simplória dicotomia opressor/oprimido, com uma longa escadaria de níveis intermediários, entre forros pardos e negros, ou entre homens livres pobres nas mais variadas posições subalternizadas na estrutura produtiva.

‘Moagem da Cana na Fazenda Cachoeira, em Campinas’, Benedito Calixto, 1830

Demonstrou, ainda, como o mercado interno era diversificado e especializado, como ia muito além da subsistência e como, no final do Setecentos, atingiu massa crítica e tomou a dianteira enquanto centro dinâmico da economia brasílica e fonte endógena de acumulação de capitais. Multiplicou protagonistas locais, negociantes de grosso trato, sitiantes, posseiros, grileiros, mineiros, pequenos e médios empreendedores, uma cauda longa de agentes históricos espalhados em processos sociais específicos e particulares, além de escravos que, malgrado sendo casos excepcionais, puderam ascender socialmente e desfrutar de uma mobilidade inimaginável no escravismo clássico.

Liderada pelo revisionismo furioso do historiador carioca João Fragoso, essa quebra de paradigma do ASC foi mais além, para introduzir em seu lugar outro modelo explicativo, o Antigo Regime nos Trópicos (ART), título de um livro de 2001. Se o ASC se inseria na explicação sobre a formação do capitalismo, agora o ART buscava reenquadrar o funcionamento da colônia na lógica feudal, inspirada pelo medievo tardio, a segunda escolástica e a hierarquia social de baixa mobilidade. Não mais a formação dos dinâmicos estados modernos, mas a manutenção dos antigos privilégios e tradições, numa releitura do absolutismo que dissolvia o poder político numa rede descentralizada e arcaizante. Não mais Hobbes e Colbert, mas Aristóteles relido pelo tomismo contrarreformista: suum cuique tribuere (cada qual no seu lugar natural).

As descontinuidades eram assim costuradas, as crises aplainadas e as várias polarizações aos poucos dissolvidas e redistribuídas. Mesmo as lutas dos inconfidentes, conjurados e insurrectos se acomodavam no interior da luta pela redefinição de posições sociais no status quo da monarquia pluricontinental, sem pô-la em risco, enquanto as rebeliões escravas redimensionadas nos termos da busca de melhorias na própria condição, sem com isso subverter a ordem posta. A quebra do paradigma recusava o paradigma da quebra, tão característico do tempo do seminário uspiano e dos febris anos 1960, em meio ao ciclo de 68, às lutas anti-neocoloniais e aos ardores das teorias anticapitalistas.

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Vinte anos adentro no século XXI, com o relançamento de “Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)”, é possível uma visão panorâmica e mais nuançada sobre os grandes embates da historiografia brasileira. Talvez menos do que disputa de paradigmas, como seus ferozes prosélitos fizeram parecer, estava em jogo um deslocamento de abordagens. Em vez da teoria da dependência, do desenvolvimento impossível e do tempo do mundo de Braudel; a teoria da interdependência, do desenvolvimento associado e do tempo depois do fim da história. Em vez da história econômica e da dialética marxista-hegeliana, a história das culturas políticas.

A virada havia sido feita em nome do zelo pelo empírico e do rechaço às grandes narrativas, com suas totalidades estanques e círculos viciosos esquemáticos, que terminavam se sobrepondo a qualquer dado particular ou fragmento singular. Isto aconteceu em meio a um movimento tectônico das ciências sociais e históricas que acompanhou a queda do muro de Berlim e o abandono de perspectivas omnicompreensivas, teorias macho-positivistas de tudo. A reação da escola paulista foi o usual empedernimento: tudo que não é a minha dialética é o neoliberalismo, ou seja, o pós-moderno, ou seja, FHC. O que não é nós tem um tucano pousado no ombro…

No entanto, passados quase 20 anos da publicação seminal do ART, organizado por João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, ficou o sabor de que esse foi um paradigma denegatório o qual, ao despejar a água suja, terminou por jogar fora o bebê.

Seriam ASC e ART dois paradigmas (ou abordagens) incompossíveis, nenhuma complementaridade, nenhuma possibilidade de um sistema de mediações? Existiria ânimo conciliatório capaz de reconstruir um modelo explicativo que leve em conta tanto a história econômica da formação do capitalismo quanto a vasta pesquisa historiográfica, com sólida base empírica e rigor acadêmico, realizada no afã programático de deslocar, refutar ou mitigar o ASC?

Um trabalho evidentemente de fôlego, para além das conjunturas. Uma historiografia que, ao mesmo tempo, abraçasse as sínteses de grande alcance e longa duração e o pós-moderno, o limiar da dissolução das grandes narrativas, o disforme do sentido da formação. “Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)”, que o historiador já com 86 anos viu consolidar-se como um clássico, ressurge em nova edição para desafiar a esta tarefa.

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