por Caio Vioto
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Trazido para o debate acadêmico na década de 1960, pelos cientistas políticos norte-americanos Gabriel Almond e Sidney Verba, o conceito de cultura política é largamente utilizado no debate público, mas pouco compreendido. Almond e Verba, ao compararem diferentes países, procuravam estabelecer qual “cultura”, ou seja, quais tipos de hábitos, relações sociais, ou “cultura cívica”, conforme chamaram, eram mais afeitos a uma cultura política democrática, tendo os EUA como paradigma.
A nova história política francesa, por sua vez, a partir de autores como Serge Berstein e René Remond, considerou o modelo usado pelos americanos muito fechado e teleológico, mas se interessou por utilizar e reformular o conceito. Com isso, a cultura política passou a ser entendida como um conjunto de crenças e relações políticas, num determinado contexto, para além das ideologias e doutrinas; isto é, para compreender o que se pensa sobre política num determinado lugar e numa determinada época, não basta olhar para os grandes sistemas doutrinários — como o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo, a social-democracia —, mas para a forma pela qual cada situação política, principalmente no âmbito nacional, mobiliza seus símbolos, afetos e representações políticas de uma maneira mais concreta, a partir do que já existe naquele contexto. Podemos partir logo para um exemplo envolvendo o Brasil: o varguismo.
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Depois dos 15 anos da Era Vargas, a ideia de um projeto de desenvolvimento nacional capitaneado pelo Estado influenciou a esquerda e a direita nas décadas seguintes. A melhor ilustração disso é que tanto Jango quanto os militares que o derrubaram eram herdeiros políticos de Getúlio. Por sua vez, o varguismo não nasceu da iluminação daquele que foi, talvez, o maior personagem da história republicana brasileira, mas é oriundo do castilhismo riograndense, do início da Primeira República. Este, por seu turno, fora influenciado pelas ideias positivistas francesas, que chegaram ao Brasil em fins do Império, principalmente no âmbito do Exército, e assim por diante. Não cabe aqui fazer genealogias até o “pecado original”, mas ilustrar que as ideias políticas — e as ações decorrentes delas — não surgem apenas de caprichos doutrinários dos políticos, mas são resultado de um contexto no qual estão inseridos, de modo que, por vezes, situação e oposição comungam de muitas orientações em comum, dado que estão submetidas às mesmas influências.
Da mesma forma, evidentemente, as doutrinas “importadas” também têm seu papel, como no caso do positivismo e do varguismo. No entanto, essas ideias não são assimiladas de maneira automática, muito menos são “distorcidas” ou “mal-entendidas” pelos locais. O que acontece é que as influências dos principais centros são adaptadas às questões políticas nacionais, à política concreta, do cotidiano, dando origem ao que chamamos de cultura política.
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Para ficarmos apenas no período republicano, vamos mencionar algumas passagens históricas que ilustram como algumas ideias têm mais facilidades do que outras para se adaptarem ao clima político brasileiro. Isso não quer dizer, no entanto, que a história se repita — como já mostramos neste espaço, isso não acontece —, mas que existem algumas regularidades que condicionam o pensamento e a ação dos atores políticos ao longo do tempo.
Umas das ideias que não se adaptaram bem às nossas idiossincrasias foi o liberalismo, aqui entendido em sentido amplo. Como sinônimos de liberalismo podemos falar em ortodoxia econômica, fiscalismo, reformismo etc. Não importa aqui a palavra, nem a doutrina pronta e acabada, mas sim entender por que determinadas agendas são mais difíceis de serem colocadas — ou de continuarem — em prática.
A República no Brasil foi proclamada, por este prisma, sob influência híbrida do liberalismo e do positivismo. O último, com forte influência no Exército, deu a tônica dos primeiros anos, inclusive emplacando o lema da bandeira nacional. Parte das oligarquias, principalmente em São Paulo, porém, não era afeita a trocar o comando do Rei pelo comando de um Marechal. Sendo assim, a Constituição de 1891 estabeleceu que o Brasil seria uma República federativa e presidencialista. O federalismo talvez tenha sido a bandeira fundamental que unificava o movimento republicano, em suas diversas vertentes. Uma das principais críticas ao Império era que os estados possuíam pouca autonomia e força política, algo que desagradava as oligarquias em franca ascensão econômica, especialmente pela exportação de café. O presidencialismo — importado do modelo norte-americano — foi de difícil equalização política por aqui, dado que as oligarquias mais fortes desejavam que o Presidente fosse um representante de seu estado.
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Os três primeiros governos civis da República foram paulistas. Além do fato de estarem testando um modelo político novo por aqui, tinham que lidar com embaraçosas questões econômicas: a crise do encilhamento, responsável pela inflação; a crise fiscal, que vinha, pelo menos, desde a Guerra do Paraguai; e a crise dos preços internacionais do café, principal produto de exportação.
A necessidade de lidar com a questão monetária e fiscal dificultava ações no sentido de intervir em favor da lavoura cafeeira que, principalmente a partir de São Paulo, pressionava para que o governo federal tomasse as rédeas do problema, visto que, além do café ser um “problema nacional”, os Presidentes do período eram também cafeicultores paulistas. Após um governo turbulento de Prudente de Morais, Campos Sales assume a presidência e coloca em prática uma política fiscalista, que ia contra os interesses cafeeiros. Seu sucessor, Rodrigues Alves, continua a agenda, embora a crise do café se agrave, bem como as pressões na sociedade e no Congresso para ações mais enérgicas de “defesa do café”, como se falava na época. Ao fim e ao cabo, mesmo com as resistência do Presidente, o Congresso, no final de 1906 (também o último ano de mandato presidencial), aprova o Convênio de Taubaté, que marca a intervenção do governo federal na economia cafeeira de modo que, a partir daí até a Revolução de 1930 (e também após), várias políticas de “defesa e valorização do café” vão ser postas em prática. O curioso é que o Convênio, assinado já no outro mandato pelo mineiro Afonso Pena, foi apoiado por Campos Sales e seu implacável Ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, que durante seu governo resistiram duramente à intervenção. A justificativa foi o fato de que, supostamente, os outros países também intervinham em suas economias, “defendendo” seus produtos, de forma que o Brasil estaria apenas se adequando a uma prática corriqueira no “mundo civilizado”.
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Saltando quase 60 anos à frente, o golpe de 1964 ocorre sob a justificativa de restauração da ordem, frente um cenário político polarizado e inerte, e do enfrentamento da crise econômica, com baixo crescimento, alta inflação e descontrole fiscal. O primeiro governo militar, de Castelo Branco, inicia uma agenda de reformas chefiada pelos Ministros Roberto Campos e Octávio Bulhões. Nesse período é criado o Banco Central, a inflação diminui e inicia-se um processo de reequilíbrio do orçamento. Também foi instituído o Decreto-Lei nº 200/1967, que redimensionou o serviço público federal, criando a administração indireta (autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas etc.), que permitia ao Estado gerenciar diversos setores sem executar as atividades diretamente e contratar funcionários via CLT, sem vínculo com o serviço público estatutário. O curioso é que muitas premissas do Decreto derivavam da Comissão Amaral Peixoto, projeto de reforma administrativa do governo Jango. Da mesma forma, os governos militares não abandonaram o projeto de “desenvolvimento nacional”, tentado não só por Jango, mas por todos os sucessores de Vargas. No entanto, em grande parte, foi essa estratégia que levou à inflação, ao endividamento e aos problemas econômicos que travavam a economia no início da década de 1960. Depois de um interregno “liberal”, “reformista” ou “fiscalista”, a partir do governo Costa e Silva, os militares pisaram no acelerador, na tentativa de induzir o desenvolvimento, sob a crença de que, para crescer, era preciso tolerar a inflação alta. Ao mesmo tempo, as reformas administrativa e fiscal saíram da agenda. O projeto de desenvolvimento obteve sucesso nos primeiros anos, os do “milagre econômico”, mas em meados da década de 1970 o país não conseguiu resistir ao choque do petróleo e os problemas antigos voltaram, mas sem o crescimento de outrora. Seguiu-se, daí, a “década perdida” e a escalada da hiperinflação.
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Somente nos governos Itamar e FHC, com o Plano Real, o país conseguiu controlar a inflação e dar início a reformas fiscais e administrativas. Em 2002, Lula foi eleito garantindo que não mudaria os rumos da política macroeconômica. Conseguiu cumprir a promessa até a crise de 2008, período a partir do qual, com as contas públicas em ordem e a inflação controlada, o governo resolveu agir não só para debelar a crise, mas retomou os ideais de “desenvolvimento nacional”, do “Brasil potência”, presentes em todos os governos entre 1930-1980, e aumentaram a participação do Estado na indução do crescimento econômico, principalmente a partir do governo Dilma, grande entusiasta desse modelo de desenvolvimento. A Nova Matriz Econômica, no entanto, apresentou tímido crescimento nos anos iniciais, e trouxe, mais uma vez, alta inflação e descontrole fiscal.
Após o impeachment, por irresponsabilidade fiscal, e a retomada da agenda de reformas por Temer, Bolsonaro foi eleito em 2018, se comprometendo a continuar as reformas e, mais do que isso, dar uma guinada liberal, sob o comando do “Superministro” Paulo Guedes. O passado corporativista e estatista do presidente — que quando deputado foi contra o Plano Real, contra as privatizações, contra a reforma da previdência, entre outros posicionamentos semelhantes — acabou falando mais alto e as promessas “liberais” de campanha parecem cada vez mais distantes, com Guedes isolado e vendo a “debandada”, nas palavras dele próprio, de figuras-chave de sua equipe.
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Todos os casos resumidamente mencionados mostram algumas regularidades, que marcam a cultura política brasileira em sua relação com reformas de cunho fiscal ou liberal. Geralmente, depois de um longo período de estagnação e descontrole, pautas de reformas ascendem à agenda política, gerando uma mobilização inicial de candidatos ou governantes. No entanto, após tentativas e medidas incipientes, as reformas vão sendo paulatinamente abandonadas e há uma tendência à retomada de pautas corporativistas e desenvolvimentistas. Esse fenômeno não é devido a mudanças de convicções por parte dos políticos, nem representam necessariamente um “estelionato eleitoral”, mas é resultado da cultura política, de um conjunto de crenças enraizadas não somente entre os políticos, mas em toda a sociedade. Independente da ideologia e dos projetos manifestos por qualquer governo, a cultura política atua como um senso comum que permeia todo o espectro político, de maneira difusa, e pode vir à tona nas primeiras dificuldades enfrentadas. Ainda que não seja um determinismo histórico, a cultura política é um forte condicionante, que não muda somente a partir do voluntarismo dos políticos ou de “guinadas” nas agendas eleitorais e composições ministeriais.
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