por Augusto de Carvalho
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Um princípio elementar e fundador da modernidade, que a filosofia chamou de historicidade, conjuga três aspectos estruturais da consciência humana sobre a realidade, todos de ordem temporal: não somos onipresentes, logo, não somos oniscientes, pois nossa potência espiritual é restrita. Uma vez que a existência humana está sempre sujeita ao jugo da finitude, estamos permanentemente enredados em intervalos, fixados pela morte, o fim, e sobretudo pelo nascimento, o início.
Tudo isso pode aparentar certa obviedade. Todavia, são axiomas que encobrem antigos problemas filosóficos, inaugurados pela pergunta sobre a multiplicidade ou a unidade da existência, declarada como um dilema fundamental na aurora da Filosofia, no poema de Parmênides de Eléia. Para o pensamento moderno, as obras de Friedrich Nietzsche e Michel Foucault são provas dessa ambiguidade própria ao caráter histórico da existência, já que ambos frequentemente se confundem quanto ao valor da historicidade, ora advogando sua relevância para o devido entendimento das particularidades — ou da multiplicidade — de todo e qualquer evento ou fenômeno, ora contestando sua universalidade — ou unidade. Não obstante, o princípio da historicidade se tornou um programa intelectual deliberado, cuja meta era e ainda é a secularização da tradição ontológica, por meio da depuração de seus traços metafísicos, supostamente irreais. Isso, entretanto, não desfez as discrepâncias lógicas que o conceito carrega, ao contrário, mantém tais obstáculos teóricos uma interrogação atual a ser respondida.
Desse processo, é central a elevação da historicidade do humano ao patamar de preceito metafísico, que institui um projeto intelectual de modernização da ideia de existência, o qual ata toda experiência humana ao coeficiente historiológico: tudo é histórico, ao passo que a identidade de todo e qualquer fenômeno repousa em e se explica pela sua história. Não por acaso, o termo historicidade surge no século dezenove, entre os conceitos cunhados por G. W. F. Hegel, na época do questionamento dos fatores hipoteticamente teológicos da realidade e da afirmação da historiografia como o modo secular privilegiado de elaboração da experiência humana. A via histórica, em seu sentido moderno — ainda em vigor —, portanto, serve antes de mais nada para se conhecer a historicidade de tudo aquilo que existe, o que, consequentemente, nos faz reconhecer nossa própria historicidade.
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Se é verdade que tudo possui um termo, um fim que determina em suficiente medida o seu significado, ocultado desde seu início e revelado no momento grave e conclusivo do ocaso, a condição histórica da existência, contudo, representa mais do que isso. A rigor, somente através da morte se pode determinar uma forma concreta para a existência, ela adquire um caráter finito, conforme a conhecida fórmula de Martin Heidegger, estabelecida em Ser e Tempo (1927), o ser é para a morte, tanto em relação a sua finalidade inultrapassável — a morte é o destino comum de tudo que existe — quanto em relação ao sentido estrito e ontológico do significado daquilo que existe, da ciência do ser enquanto ser, da ontologia tal qual o antigo adágio aristotélico. Franz Rosenzweig já havia dito o mesmo que Heidegger, logo na abertura de A Estrela da Redenção (1921), obra que se inicia sentenciando que da morte, do medo da morte surge todo conhecimento universal. Quer dizer, porque a morte é o limite permanente da existência — humana e não-humana —, a interrupção categórica de toda possibilidade, consequentemente, não podemos elaborar nenhum conhecimento efetivo sobre sua natureza. E, assim como nota Vicente Ferreira da Silva em um de seus Ensaios filosóficos (1948), caso o objetivo seja compreender o sentido e o significado da historicidade, a morte, então, é o obstáculo a ser superado. Ao contrário do corolário do Tractatus de Ludwig Wittgenstein, de se calar diante do inefável, Ferreira da Silva afirma que é precisamente ante a impossibilidade de se conhecer a morte que ela se torna, por conseguinte, o início de todo conhecimento. A morte, o fim, paradoxalmente, é o início do conhecimento.
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O decreto da superação da morte como propedêutica do ato de conhecer não se refere a nada além que um fenômeno existencial particular da gnoseologia, já há muito analisado pela tradição filosófica: todo conhecimento é basicamente de ordem ideal. Apesar da necessidade de meios materiais, linguísticos e referenciais para se concretizar, a natureza básica do conhecimento é o seu sentido e significado, conceitos de teor manifestamente ideal — o que reflete uma ciência arcaica, organizada por Platão, qual seja há fatores anímicos ou psicológicos, ideais, que compõem a realidade da mesma maneira que os aspectos telúricos, imediatos e concretos da experiência. Não me refiro à canônica doutrina das ideias platônicas e suas normativas pitagóricas — aos mistérios iniciáticos da metempsicose humana —, mas à simples conclusão de Platão sobre a existência das ideias, cujo atributo essencial é não se sujeitarem necessariamente às leis físicas da fatal corrupção material que, no limite, leva à morte. Há elementos existenciais que superam a morte, sobrevivem à corrupção da matéria, nomeados como ideias — análogos da psiché, da anima, ou dos modernos conceitos de mente e consciência. Em diálogos como Fédon e Mênon, Platão primeiro observa que as ideias podem continuar a existir de modo indiferente à morte de quem as elaborou ou reelaborou, instituindo assim novos inícios, ao termo, ad infinitum. As ideias possuiriam uma vida própria, elas amadurecem e envelhecem, transformam-se, e evidentemente, por vezes, desaparecem. Mas quando desvanecem, isso nunca ocorre pelo simples motivo da morte física e material de quem as carregou. Afinal, não é imprudente afirmar que podemos conhecer ideias que antecedem a nossa existência individual, excedem a experiência concreta e imediata, extrapolam os limites do intervalo de tempo entre o nascimento e a morte humana; pois conhecemos as ideias de Ferreira da Silva, Hegel e até mesmo Platão, algumas delas, por exemplo, vivas há mais de dois milênios. As ideias são, por isso, do ponto de vista de sua natureza, infinitas, pois não se submetem ao aspecto finito do tempo.
Através desse diagnóstico sobre a infinitude das ideias, torna-se menos hermética a obscura afirmação de Heráclito, no fragmento B 45 — de acordo com o padrão de Diels-Kranz —, não se encontra os limites do espírito humano. A consciência, a alma ou o espírito são ilimitados, isto é, infinitos, sem forma determinada, pois a vida das ideias, seu equivalente, não possui um término exato ou definitivo. O ponto final da existência orgânica ou material, a morte, o fim autoevidente e esperado da existência humana, não impede que ideias sobrevivam, não restringe a continuidade existencial infinita de dados intelectuais, na medida que são transmitidos, de intelecto a intelecto, de alma a alma, de espírito a espírito, de ideia a ideia. Essa convicção, presente em ambientes intelectuais diversos, repensada e representada por Aristóteles e Plotino, Ibn S?n? (o Avicena) e Moses ben Maimon (o Maimônides), N?g?rjuna e D?gen, Henry More e William Blake, Fernando Pessoa e Mário Ferreira dos Santos, a despeito de seus diferentes pormenores onto– e teo– lógicos, procura apenas demonstrar que as ideias participam da eternidade, não por serem absolutas ou indestrutíveis — ao contrário, são frágeis e contingentes —, mas por possuírem a potência de serem eternas, de não se submeterem de pronto à mortalidade física, de continuarem a existir apesar das exigências da morte, do fim. É uma sabedoria comum e não exclusiva da Filosofia, que do ponto de vista antropológico e histórico, pertence ao complexo genérico e amplo da ancestralidade, tão habitual entre as múltiplas perspectivas culturais. A exemplo de Yukio Mishima, que em uma carta de abril de 1946 a Yasunari Kawabata, salienta que essa natureza primeva do fator ideal da existência possui como resultado a eternidade, pois as ideias estão em constante e eterna transformação, sem saber quando parar. De modo semelhante, reconhecendo, enfim, a parte ideal da existência como a essência do significado infinito da historicidade, Jacob Burckhardt, em uma de suas preleções — postumamente publicadas sob o título Contribuições à História Universal (1905) —, constata que todo acontecimento histórico possui um aspecto espiritual [ideal], por meio do qual ele participa da eternidade. Pois o espírito [a ideia] é passível de mutações, mas não de transitoriedade.
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Assim, se por um lado a finitude é uma característica natural e orgânica da vida, a infinitude é igualmente uma propriedade metafísica da existência que transcende os seus limites imediatos e aparentes. Se há um fim, há igualmente um início, o qual permanece como arcano teológico, antes de um desafio para a explicação científica moderna, e que encontra uma razão no exame da virtude ilimitada das ideias. Uma vez que a finitude e a infinitude são ambas qualidades fundamentais do que se chama historicidade da existência, dado que não há início sem fim, ou fim sem início, não se estabelece uma causa geral para a realidade, mas a matéria inicial ganha uma procedência de teor ideal. Tal fato nos remete ao predicado menos visível da historicidade, ou mesmo da história: a vida infinita das ideias. Porque se, à primeira vista, o caráter histórico de certo fenômeno ou evento é sinônimo de um contexto, logo, da finitude, condicionado principalmente pelo fim de determinado processo, ele é igualmente a expressão da possibilidade de conhecermos conjunturas das quais não participamos imediatamente, mas que são passíveis de serem conhecidas devido à sua outra natureza, infinita, ocasionada não pela morte, pelo fim, mas originada pelo início, índice da (des)continuidade e perseverança das ideias. É axiomático que somente através da vida, do início, há morte, há fim. Não é tão claro, contudo, que apenas através do fim haja início — algo estranhamente incoerente e redundante, sutilmente esclarecido na introdução de M/T e a História das Maravilhas da Floresta (1986), de Kenzabur? ?e:
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Para pensar a existência de uma pessoa é necessário traçar um plano que não se contenta em partir de seu nascimento, mas remonta há muito mais tempo; e não se interrompe no dia de sua morte, mas se estende além.
A vida de uma pessoa no mundo não deve se reduzir ao seu nascimento e morte. Ela nasce na grande sombra do círculo pessoal que a engloba e, após sua morte, tem-se ainda algo que subsiste e sobrevive.
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