Louvando as três imperatrizes: Poder e poesia na Rússia de Ana Ioânovna

Entre os anos de 1725 e 1762, a Rússia vive um período bastante peculiar entre os dois monarcas mais importantes na formação do Império que oficialmente se extinguiria com a Revolução de Fevereiro de 1917.

por Rafael Frate

Entre os anos de 1725 e 1762, a Rússia vive um período peculiar entre os dois monarcas mais importantes na formação do Império que oficialmente se extinguiria com a Revolução de Fevereiro de 1917. Entre a morte de Pedro, o Grande e a ascensão de Catarina, a Grande, vive-se na corte um ambiente de incerteza, insatisfação, revolta e consolidação de poder na figura do autocrata. O período, que o grande historiador Vassíli Kliutchévski nomeou como a “Era dos Golpes Palacianos”, foi um dos mais interessantes na atribulada história dos Románov. Uma era que se caracterizou por ratificar o projeto petrino, por incluir na linhagem imperial membros de outras famílias reais europeias e por introduzir na corte o inaudito fenômeno do governo feminino. Durante cerca de três quartos de todo o século XVIII o trono imperial russo teve uma mulher à sua frente, gerando uma série de questões positivas e negativas para o Império. Esse período entre Pedro I e Catarina II chamaremos aqui “a Era das Três Imperatrizes” e, neste texto, abordaremos um aspecto central na poesia russa praticada então: o louvor prestado a cada uma delas nas odes panegíricas solenes.

I.

Quando Pedro I morre, uma determinação sua tornará o ambiente político bastante delicado nos momentos de sucessão imperial, pois, como vimos no primeiro texto, o Imperador deserda seu filho, que acaba executado por estar envolvido em um complô reacionário contra o pai. Alexei Petróvitch Románov, nascido de Evdokia Lopúkhina, a consorte real rejeitada do Tsar Piotr Aleksiêevitch, foi desde a infância uma sequência de decepções para seu pai. O oposto do ímpeto, da energia e do vigor que foi Pedro I em sua habilidade na administração do poder e curiosidade com relação às novidades modernas, o tsariévitch, o herdeiro real, era um menino tímido, demasiadamente atrelado à família extremamente conservadora e religiosa da mãe rejeitada, pouco afeito ao estudo e aos negócios de estado e que acabaria por enveredar por um alcoolismo melancólico, por alhear-se totalmente das ordens e determinações do Imperador, seu pai, por romper um casamento real com uma princesa alemã após diversos episódios de violência doméstica e, enfim, por ser executado após horas de tortura para revelar os detalhes do complô do qual ele seria um dos líderes.

Com o herdeiro destituído da linha sucessória, cria-se uma situação sem precedentes na estrutura cortesã moscovita. Nunca um primogênito da família real russa havia sido deserdado pelo monarca anterior (morto sim, mas deserdado não) e, após a morte do primeiro Imperador da Rússia, uma crise sucessória ameaçava repetir o que cerca de 120 anos antes ficara conhecido por “tempo conturbado” (smútnoe vriémia). Após a morte de seu filho, Pedro não nomeara um sucessor e, ao morrer inesperadamente aos 52 anos, deixou no ar uma incógnita que podia afundar seu país mais uma vez em uma guerra civil: quem assumiria o trono do grande Pedro? Duas foram as facções que se apresentaram para nomear um sucessor. A primeira, liderada por duas tradicionais famílias de boiardos, os Dolgorúki e os Golýtsin, prontamente apoiou o filho de Alexei Petróvitch, neto de Pedro I, Piotr Aleksiêevitch, então com 10 anos de idade. Do outro lado, o grupo formado por “arrivistas”, homens novos criados por Pedro I, liderado sobretudo por Aleksândr Miênchikov, o ex-vendedor de pasteis (segundo as más línguas) do qual Pedro se afeiçoou, fazendo-o um dos homens mais poderosos (e corruptos) do Império. Esse grupo apoiava a também mulher nova, a obscura filha de camponeses que conquistou o coração do grande monarca e acabou se tornando sua consorte real, Marfa Skavrônskaia, ou, após o batismo na Ortodoxia russa, Catarina Aleksiêevna.

O segundo grupo venceu e, com ele, a ideologia modernizadora petrina, colocando no poder, no primeiro golpe de estado palaciano do século, a Imperatriz Catarina, Consorte real de Pedro, o Grande. Nunca antes havia uma mulher assumido o trono de Toda a Rússia, nunca antes alguém de origens externas à nobreza boiarda, e muito menos alguém que não fosse propriamente da etnia eslava oriental. O processo terminou com um acordo em que, após sua morte, a Imperatriz passaria o trono ao neto de Pedro com sua primeira mulher, também chamado Pedro, filho de Alexei. Isso não demoraria muito a acontecer.

Catarina I ficaria dois anos no poder, durante os quais são realizados projetos importantíssimos que ficaram por ser concluídos com a morte de Pedro, entre os quais, a fundação da Academia de Ciências, efetivamente o primeiro centro de educação superior da Rússia. Ao mesmo tempo figuras como a de Miênchikov ditavam as políticas imperiais e engordavam ainda mais seus bolsos. Mas não ficaria assim por muito tempo, já que no dia 17 de maio (ou 6 no calendário Juliano adotado por Pedro) de 1727, a primeira Imperatriz de Toda a Rússia morre por conta de um abscesso pulmonar. O trono assumiria o menino de 15 anos, coroado no dia 25 de fevereiro (7 de março) de 1728. Um breve intervalo na Era do Poder Feminino.

No breve reinado de Pedro II as facções intensificaram sua luta. Na disputa para ver quem exerceria mais influência sobre o jovem monarca, o homem novo, Miênchikov ganha uma vantagem inicial nos ouvidos do jovem, mas é logo repelido pela facção nobre controlada pelos Dolgurúki e Golítsyn. O ex-vendedor de pastéis acaba como tantos outros arrivistas que tentaram controlar o Império Russo, exilado com sua família na Sibéria. Com o controle das facções nobres aparentemente assegurado, outra tragédia acontece: O Imperador contrai varíola e morre aos 17 anos, fato que romperia definitivamente a linha masculina direta dos Románov. Mais uma vez a sorte estava lançada e agora a monarquia russa, por meio de seu órgão deliberativo máximo, o Alto Conselho Oculto, teria de recorrer a parentes cada vez mais distantes do centro petrino. Quem sabe não seria a hora de abrandar autocracia russa? Talvez até o império pudesse virar uma monarquia constitucional…

Essa foi mais ou menos a ideia dos principais atores do Conselho que estiveram no leito de morte de Pedro II. Dmítri Golítsyn, um dos principais nomes da corte de Pedro, o Grande, propõe que se escolha um monarca distante, não diretamente envolvido com os assuntos do Estado. Desse modo, poderia surgir na Rússia um governo nos moldes do que se formava na Suécia após o colapso daquele império em 1718, com a morte do arquirrival de Pedro I, Carlos XII. A ascensão de sua irmã, Ulrika Eleonora, se dera apenas com uma constituição que acabaria com o absolutismo por lá. O mesmo poderia acontecer na Rússia, e pareceu bom a Golítsyn coroar uma sobrinha de Pedro, o Grande, filha de seu irmão Ivan, viúva do Duque da Curlândia e Semigália e agora regente daquele trechinho de terra que hoje forma duas regiões da Letônia. A Ana Ioânovna seria oferecido o trono, contanto que ela assinasse uma carta de condições que na pratica reduziria a figura do monarca a um acessório, transferindo todo o poder de deliberação estatal para o corpo de ministros.

Ana Ioânovna

Dmítri Golítsyn foi uma das figuras mais interessantes de seu tempo. Mandado para a Itália na época de Pedro I para completar seus estudos, tomou contato com as mais novas tendências políticas da época e foi uma das mentes politicamente mais agudas de seu tempo. Com seus planos, a Rússia esteve em seu momento mais próximo de se tornar uma monarquia constitucional, que de qualquer maneira continuaria presa das elites e das famílias boiardas mais poderosas, mas que talvez não precisasse de tão grande ruptura, quando a Rússia finalmente ganhasse sua problemática constituição em 1905. Quando Ana aceita os termos e assume o trono em janeiro de 1730, tudo parecia ir bem. Mas a sobrinha de Pedro, o Grande, e as facções da nobreza que se viram prejudicadas pelas propostas de Golítsyn tinham em mente algo diferente.

Ao chegar à Rússia no dia 20 de fevereiro de 1730, apoiada pelas facções da nobreza que queriam manter o status quo, Ana Ioánovna rasga a carta de condições que fora obrigada a assinar e continua, na melhor tradição de Ivan IV, o terrível e Pedro I, o Grande, o absolutismo na Rússia. O Alto Conselho é dissolvido, alguns dos membros são mandados para a Sibéria, e Golítsyn acabaria em uma masmorra de S. Petersburgo, onde morre logo depois. Agora, outras esferas de influência conduziriam o Estado russo, em sua maior parte formado de alemães a partir do contato com Ana quando  ela fora regente da Curlândia. O principal destes seria o famigerado Ernst von Biron, amante da Imperatriz e figura mais poderosa da corte em seu reinado. Começava a chamada Birônovschina, que no decorrer da década seria um momento em que as grandes famílias boiardas cederiam cada vez mais espaço às odiosas e ao mesmo tempo fundamentais influências estrangeiras culminando na peculiar identidade russa novecentista à qual somos pouco mais familiarizados.

II.

Mas voltemos às nossas questões literárias. Lembremos, [como dito no ensaio anterior, <https://estadodaarte.estadao.com.br/a-nova-lingua-russa-a-primeira-geracao/>] que essa foi a década de estreia de dois dos poetas da primeira geração, Trediakóvski e Lomonóssov. O primeiro retorna à Rússia em 1733 como o primeiro embaixador das últimas tendências do fazer literário na França. Com isso entenda-se sobretudo Boileau, o poeta de Luís XIV, que tinha se colocado, não sem muita querela, como uma das maiores autoridades literárias contemporâneas. Boa parte de sua poesia e de seus textos faz reflexões e prescrições sobre a própria poesia e, com a pompa e influência como poeta oficial do mais famoso monarca absolutista da história, Boileau era a figura ideal para se seguir em um contexto político-literário que imitaria cada vez mais o esplendor da monarquia francesa. A fama de Boileau como légistateur du Parnasse era o que se precisava para ditar as regras poéticas do momento em que a monarca apertava cada vez mais o estado a seu seio. Ainda que não fosse grande no sentido de seu tio, a Imperatriz Ana Ioânovna exigiria uma adulação igual.

Boileau é importante principalmente pelas regras que expõe em sua Art Poétique, que, como já dito, seria intensamente traduzida e emulada pelos primeiros poetas russos. Mas a grande parte dos espécimes mais importantes da poesia que foi produzida nessa época, não vêm diretamente de um modelo de Boileau. A ode panegírica solene, um gênero praticado pelo francês, ainda que extremamente criticado em seu contexto, foi central na poesia russa da primeira geração. Um gênero poético escrito para louvar grandes figuras do Império, sobretudo o monarca, por conta de uma ocasião solene a ocorrer em sua vida, como vitórias militares, ascensões ao trono, casamentos reais, nascimentos de herdeiros. Os três pioneiros a praticaram à exaustão, sendo o principal gênero poético de Trediakóvski e Lomonóssov. Um desses poemas do último entrou para a história como o primeiro poema escrito na forma atual da poesia russa moderna. Voltemos a ele em alguns momentos.

Antes falemos da primeira ode panegírica produzida nessa geração, ainda na métrica anterior à reforma de Lomonóssov. Trata-se da Ode sobre a Tomada de Gdansk, composta por Trediakóvski em 1734. É uma emulação direta da Ode sur la prise de Namur, composta em 1693 por Boileau como ilustração do que seria para o Francês o estilo pindárico. As duas odes celebram uma vitória militar, consistindo tecnicamente, portanto, em um epinício. Ambas as odes foram publicadas acompanhadas de uma ilustração teórica do que deveria ser uma ode. O francês escreveu as obras em um contexto polêmico, na famosa Querela dos Antigos e Modernos, para justificar a imitação de Píndaro, poeta atacado pour les modernes como um balbuciador de bobagens. No caso de Boileau, a ode, que ele já havia exposto em sua Art Poétique como a poesia que, elevando até o céu seu voo ambicioso, / ocupa-se em seus versos da relação com os deuses (II. 59-60), foi composta para provar um ponto. No caso de Trediakóvski, para importar um modelo.

A Ode sobre a Tomada de Gdansk é quase que uma tradução do poema do francês. O que muda é que, em vez de Luis XIV vencendo uma batalha pouco significativa numa das muitas guerras em que o Rei Sol se envolveu, temos Ana Ioânovna vencendo uma batalha ainda menos significativa contra os polacos em um dos muitos conflitos de que o Império de Pedro, o Grande, foi ator no decorrer do século. Ambas começam com a mesma invocação às musas, ambas terminam com o louvor desmedido de um monarca absoluto (ainda que a de Boileau contenha uma alfinetada em seu rival moderno, Charles Perrault). Consideradas a forma em que escreve e sua matéria, é uma obra bem pouco original da parte do russo. E ainda que originalidade em sua época não fosse uma característica poética central, ela, por esse motivo, foi completamente esquecida. A ode panegírica solene ainda teria que esperar cinco anos até chegar na forma final que se repetiria pelo decorrer do século e que fundaria, enfim, a poesia russa moderna.

Manuscrito original da Ode sobre a Tomada de Khotin de 1739, o primeiro poema russo moderno

Em 1739, o brilhante jovem que fora mandado em intercâmbio para a Saxônia escreve para sua instituição, a Academia de Ciências de São Petersburgo, uma carta a respeito da poesia russa e uma dessas odes solenes. Sobre a carta de Lomonóssov, já falamos [aqui]. Resta falar sobre este poema tão importante para as letras russas. A Ode em Abençoada Memória da Soberana Ana Ioânovna por Ocasião da Vitória sobre os Turcos e Tártaros e da tomada de Khotin no ano de 1739 foi mais um epinício, como o de Trediakóvski/Boileau e aquele de Prokopóvitch, escrito pouco mais de três décadas antes. Como se vê pelo longo título, é um poema laudatório, composto por ocasião de um feito do monarca, preferencialmente para ser declamado perante um público cortesão seleto. Lomonóssov se notabilizaria por esses poemas, demonstrando, pela primeira vez em russo, uma elocução poética verdadeiramente russa, com o mínimo de eslavonicismos, em uma forma poética perfeitamente adequada para a composição em qualquer nível elocutório. Detenhamo-nos em algumas estrofes deste primeiro por um momento.

I.
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XI.
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I.
O enlevo repentino à mente captou
Carrega ao cimo da alta montanha,
Onde soprar o vento aos bosques olvidou;
No fundo vale há apenas o silêncio.
Atenta a algo a fonte cala,
Aquela a manar eternamente
Que desce com alarido morro abaixo.
De louros lá pende uma coroa,
Rumor se apressa lá a todo canto;
Distante fumo esvai-se pelos campos.
(…)

XI.
Das nuvens que estão ao seu redor
A ribombar os raios reslpandecem,
E, pressentindo a Petrina vinda,
Nos campos tremem os carvalhos.
Quem com ele tão terrível olha ao sul
Vestido em volta com trovão temível?
Seria o que pacificou Kazan?
Águas do Cáspio, frente a vós
Selim orgulhoso abalou-se,
Enchido o campo de pagãs cabeças.

XII.
A Herói disse o seguinte lá Herói:
“Não foi debalde que eu e tu lutamos,
Não foi baldada a empresa minha e tua,
Para que a Rússia o mundo inteiro assombrasse.
Por nós o nosso reino se expandiu
A norte, leste e oeste,
Ao sul é Ana soberana,
Tendo coberto aos seus com tal vitória”.
A bruma recaiu, heróis com ela;
Não os veem olhos, o ouvido não escuta.

Como se vê, é uma poesia completamente estranha a nossos gostos atuais, ainda mais se lida apenas em uma pobre tradução informativa. A questão é que, afora o nível empolado e bajulatório, em russo esse poema já soa familiar a todo aquele que pelo menos leu um pouco de Púchkin. Além disso, a hábil atualização de lugares comuns e a acurada carpintaria versificatória fazem dele, do ponto de vista formal, um grande poema independentemente do que medianamente venhamos a achar.

O poema abre com uma tópica antiga bastante teorizada por Boileau: a do arrebatamento poético que carrega o poeta aos cimos do monte, que, por sua vez, consegue ter visão total da extensão do espaço e tempo. O monte em questão aponta para o Hélicon, a morada das musas, que tem, pelo menos desde a Teogonia de Hesíodo, do séc. VII a.C., o ponto de partida para um poema elevado. Nele não se chega sem a ajuda da inspiração divina e o vostorg, o enlevo de Lomonóssov, é o componente que faltava à poesia russa chegar aos píncaros que Trediakóvski peticionara em nome dela a Apolo, na epístola que discutimos no texto anterior. A mesma inspiração cuja falta, na expressão de Boileau, é o mesmo que Febo ficar surdo e Pégaso refugo. O enlevo lomonossoviano junto com uma forma adequada é o que o polímata adicionará à imitação das grandes autoridades literárias já trabalhadas por Trediakóvski e os outros fundadores. Só com ele a fonte que emana eternamente cala atenta à produção de uma poesia verdadeiramente relevante. Esta fonte é uma das mais famosas do Hélicon, chamada Hipocrene, aquela que o cavalo Pégaso fez brotar com o toque de seu casco.

As duas outras estrofes são um ponto bastante interessante para a questão da imitação poética e para a poética de Lomonóssov como um todo. Creio ser possível dizer para este e para outros casos das odes lomonossovianas que ele pega um exemplo de disposição que remete diretamente a Píndaro. Este mítico poeta escreveu, como já dissemos, epinícios, ou seja, odes em louvor a vencedores dos Jogos Olímpicos antigos, as quais nos chegaram quase que integralmente. Geralmente, elas continham em sua estrutura uma abertura grandiloquente, os louvores do vencedor com a apresentação de uma espécie de uma ficha técnica própria, a narração de um mito como forma de comparação do vencedor com heróis e deuses antigos e um fechamento mais ou menos contido. Todas essas partes vinham entremeadas por máximas sapienciais mais ou menos obscuras.

Pois bem, Lomonóssov estrutura suas odes de uma forma parecida, principalmente se levarmos em conta questão da narração mítica passada como forma de sustentar a glória presente. Só que para Lomonóssov o que será narrado virá da história gloriosa da Rússia. O principal herói a ser louvado é, naturalmente, Pedro, o Grande, o fundador do glorioso Império Russo, e, nesta específica ode, a narração mítica do tempo passado petrino é complementada pela aparição de outro famosíssimo monarca, um dos maiores responsáveis pela expansão da Moscóvia em direção dos Urais e depois da Sibéria, Ivan IV, o Terrível. Aparecendo do trovão vem Pedro, que expandiu o Império para o oeste complementando o trabalho de Ivan, que o fizera não somente para leste, mas também para norte, com a fundação do primeiro porto moscovita, Arkhângelsk, já dentro do Círculo Polar Ártico. Ao verem a gloriosa vitória da Imperatriz Ana sobre os turcos na região do que hoje é fronteira entre a Ucrânia e a Romênia, no sul portanto do império, os grandes predecessores russos se satisfazem. Ela está à altura deles.

É claro que isso não passa de uma desbragada hipérbole. A tomada de uma fortaleza que não faria diferença alguma para o império, em mais uma das inúmeras guerras que foram travadas contra os otomanos e que não mudariam muita coisa até as conquistas de Catarina II, era um mero pretexto para a produção de uma poesia que tinha agora o essencial: a plena inspiração e forma para brotar. Que servisse por enquanto de instrumento oficial de bajulação.

III.

Ana Ioânovna fica dez anos no poder. Durante seu reinado os caprichos que desempenhou, consolidando o poder monárquico absoluto e instalando vários nobres alemães nas posições de destaque da corte, causaram ódio e aversão na nobreza tradicional russa, a mesma que acreditou conseguir limitar os seus poderes monárquicos com instrumentos constitucionais. Antes de morrer, ela constitui como herdeiro um bebê, o filho de sua sobrinha, neta de seu pai, o irmão de Pedro, o Grande, que por um breve período reinara com ele em conjunto como Ivan V. A sobrinha em questão era filha da filha mais velha de Ivan V, Elizabeth Ivânovna Románova, dada em casamento por seu tio Pedro I ao Duque de Mecklenburg-Schwerin, onde passou o resto de seus dias. A sobrinha em questão, Elisabeth Katharina Chistine von Mecklenburg-Schwerin, vivia na Rússia desde 1733, tendo se casado lá com outro alemão, filho do duque de Brünswick-Wolfenbüttel, e teve com ele um filho que foi adotado como sucessor pela Imperatriz Ana pouco antes de ela morrer.

O bebê imperial Ivan

O enrosco sucessório no Império Russo parecia mais complicado do que nunca. A influência germânica na corte de Ana Ioânovna era cada vez maior, e o símbolo máximo da barafunda tinha nome próprio: Erns Johann von Biron, amante da Imperatriz e factual primeiro ministro do Império. Filho de um pajem do duque da Curlândia, Biron foi para a Rússia ainda nos tempos de Pedro, o Grande, tentar a sorte nas altas esferas do poder imperial. Primeiro tentou, sem sucesso, se envolver com o séquito da mulher de Alexei, o então herdeiro imperial; depois ao voltar para Mitau, a capital do Ducado da Curlândia, se envolve na corte da Duquesa Ana, aí sim consolidando sua posição. Quando a duquesa vira imperatriz, Biron é um dos homens mais influentes no ouvido da mulher mais poderosa da Rússia. Tudo o que se passa no império é controlado por ele, e quaisquer desavenças são punidas com o máximo rigor. Biron condenou diretamente à morte centenas de nobres e plebeus por desavenças que chegavam a meras ninharias. Cerca de 30000 pessoas foram exiladas para a Sibéria durante o tempo em que esteve no poder. Impostos cada vez mais altos estrangulavam a vida do russo médio. A situação ficava insustentável.

Quando Ana Ioânovna morre em 1740, Biron assume como regente da criança imperial, Ivan VI, de apenas um ano de idade. Demoraria muito até ele chegar à maioridade e os que restaram na corte não estavam mais dispostos a suportar o chamado jugo alemão. Biron tinha que sair e rápido. A oportunidade veio quando ele ameaçou extraditar a sobrinha de Ana Ioânovna, com seu filho, para Mecklemburg, assumindo de vez o trono russo de maneira totalmente ilegítima como imperador. A Guarda Imperial fundada por Pedro, o Grande, teve de usar suas possibilidades pretorianas. Três semanas depois da morte da Imperatriz, ele é acordado no meio da noite por um marechal também alemão da Guarda Imperial. Com sua destituição, assumiria como regente a mãe do herdeiro imperial Elizabeth Catharina, chamada, após sua conversão para a Ortodoxia Russa, Ana Leopôldovna. O odioso alemão seria condenado pouco depois à morte por esquartejamento, mas receberia um indulto da nova regente. Sua sentença foi comutada pelo exílio vitalício na Sibéria. Ele não morreria lá, mas nunca mais desempenharia mais nada no poder imperial russo.

Restava a sobrinha neta de Pedro, o Grande, que também era alemã e teria de ficar na regência imperial ainda um longo período até seu filho atingir a maioridade. Mas seria difícil. O ambiente político era cada vez mais germanófobo, e, levando-se em conta as outras opções sucessórias, o Bebê Imperial não tinha uma situação muito confortável. A principal das opções era nada menos que a filha de Pedro, o Grande, Elizabeth Petróvna, e não demoraria até que sua reivindicação ao trono ganhasse força frente à Guarda Imperial. No dia 06 de dezembro de 1741 (25 de novembro, Juliano), a regente é acordada no meio da noite pela própria Elizabeth com a notícia de que está deposta. Ana Leopôldovna é presa em um calabouço perto de Riga, onde viveria os quatro anos restantes de sua vida. O bebê imperial é mandado para um calabouço secreto de onde jamais sairá, só sendo morto aos 20 e poucos anos por ordem de Catarina II, mais uma alemã que chegaria ao poder imperial russo por um golpe palaciano. Mas isso é outra história.

Começavam aqui os vinte anos da Era de Elizabeth Petróvna, momento importantíssimo para o Império como um todo. É esse o momento em que Lomonóssov brilhará como ninguém nas letras e ciências russas. Desse período nos ocuparemos em nosso próximo texto e, para terminarmos este, deixemos algumas linhas com duas obras bastante desconhecidas. No ano em que o bebê imperial “reinou”, o polímata compôs duas odes em louvor do pequeno imperador. São odes que foram salvas da damnatio memoriae promovida na era elizabetana, que trago aqui como ilustração de um ponto.

Os Primeiros Troféus de Ivan VI e o Dia da Coroação de Ivan VI são duas odes panegíricas solenes bastante obscurecidas pela recepção subsequente. No XIX foram consideradas de valor inferior e foram relativamente reabilitadas apenas na era stalinista pelo grande filólogo Pável N. Biérkov. São odes estranhas se comparadas ao o resto da produção lomonossoviana, principalmente pelo fato de o laudando ser uma criança. Aqui temos uma linguagem de ternura e delicadeza muito pouco vista no corpus poético do elevado cisne russo. Diminutivos, palavras de carinho, representação de brincadeiras dividem o espaço com o tom exaltado de caçadas extraordinárias nas quais o pequeno imperador nem presente estava. Essa mistura elocutiva, tão estranha ao resto da obra do polímata, seria o elemento que faria a grandeza de Púchkin cerca de 80 anos depois.

Lomonóssov, em seu enlevo infindável, usou uma ocasião política que certamente acabaria mal para pôr em prática um experimentalismo que ele próprio abandonaria depois quando se tornasse o Vate de Elizabeth. O polímata mais uma vez mostrava uma visão poética não apenas inspirada e adequada às matérias que tinha, mas visionária em um experimentalismo que ditaria, na Rússia, a tendência poética de nossa modernidade.

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