Mentiras de bronze e almas natimortas

Para Marcio Magalhães de Andrade, "há muito mais entre a praça pública e as nossas respectivas vidas e trajetórias". "Ao contrário do que imaginavam os revolucionários de outrora e os de hoje", porém, "mentiras ou meias verdades de bronze não são totens capazes, por si só, de formar novas almas.".

por Marcio Magalhães de Andrade 

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Mostrar a verdade não é suficiente. É preciso apoderar-se da imaginação do povo para que ele ame a verdade. Assim pensam os marqueteiros de toda sorte, incluindo os mantenedores e derrubadores de estátuas dos dias de hoje; assim pensava o Conde de Mirabeau, nobre orador que atuou nos anos iniciais da Revolução Francesa.

Mirabeau

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Em 1990, o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho publicou o instigante e saboroso A Formação das Almas, livro que aborda as construções e disputas em torno do imaginário da República no Brasil. Os conflitos simbólicos, travados durante o Segundo Reinado (1840-1889) e o início da República (a partir de 1889), traziam munições de vários cantos do planeta, mas era na França setecentista que tínhamos nossa maior provisão.

Para os revolucionários franceses do século XVIII, a educação pública era fundamental para formar almas. Bureau de l’Esprit foi o nome dado à seção de propaganda do Ministério do Interior criada em 1792. Até então — conta-nos o historiador norte-americano Robert Darnton — livros circulavam, com algumas restrições, ao lado de mexericos, boatos, piadas, canções, cartazes, folhetos, cartas e jornais. Havia um circuito próprio de informações para o que o autor chamou de Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária, indicando que os canais paralelos e não-oficiais sempre tiveram seu espaço. Como ainda eram inconcebíveis o rádio, o cinema, a televisão e as redes sociais da Internet, um sistema de comunicação inovador deveria ser capaz de superar a realeza e as instituições religiosas com seus rituais, festejos e procissões repletos de símbolos e mensagens.

A Revolução Francesa pariu a ideia de universalizar a educação por meio de instituições e obras de caráter público. Deveriam cumprir esta missão as escolas, bibliotecas e monumentos. Mas não somente eles: em Paris, 1400 ruas receberam novos nomes, pois os antigos faziam referência a reis, rainhas e santos. Assim, a Place Louis XV foi chamada Place de la Révolution antes de ser transformada na Place de la Concorde. Obcecados pela ideia de mudança, os revolucionários franceses não pouparam nem a “abelha-rainha” (que passou a ser chamada de “abelha poedeira”) nem as peças do xadrez e as cartas do baralho (que não mais poderiam mencionar representantes da realeza e da Igreja Católica). Como seria um xadrez sem reis? Para estes e outros exemplos, sugiro O Beijo de Lamourette, mais um livro balzaquiano produzido por Darnton.

No Brasil, os Ecos da Marselhesa se fizeram mais vívidos a partir do século XIX. Faço aqui referência ao título do livro também publicado em 1990 pelo já falecido historiador Eric Hobsbawm. Nesta obra, o autor enfatiza o domínio exercido pela Revolução Francesa na linguagem e simbolismo da política ocidental até, pelo menos, a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Bom exemplo é a profusão de bandeiras tricolores que passaram a representar Estados recém-independentes ou unificados no mundo.

Em território brasileiro, a primeira grande escultura pública que pode ser vinculada à tradição estabelecida pelos revolucionários foi uma homenagem a D. Pedro I. Inaugurada em 1862 no então Largo do Rocio (ou Praça da Constituição), no Rio de Janeiro, a obra esteve enredada em disputas e polêmicas por décadas, desde a sua concepção. Atribuída a João Maximiano Mafra, teria sido idealizada por Manuel de Araújo Porto-Alegre mas foi executada na França por Louis Rochet.

A inauguração da estátua na capital do Império foi marcada por muitas críticas, feitas por pessoas do mundo das artes, além de liberais e simpatizantes da República. A censura mais contundente e emblemática veio do mineiro Teófilo Otoni, que chamou a estátua de “mentira de bronze”. Um poema composto pelo também liberal Pedro Luís Pereira de Souza seria distribuído no dia, mas os folhetos foram apreendidos pela polícia. O mesmo poema sobreviveu e foi publicado em Ouro Preto, em 1888. Na província do Ceará, O Araripe também publicou, no dia 6 de setembro de 1862, um soneto intitulado “Mentira de Bronze”:

A vil adulação, o servilismo

Disputam entre si a primazia,

De esculpirem no bronze a tirania

Em nome do ferrenho absolutismo!

Perpetue-se em bronze o despotismo!

Perdure no Brasil a oligarquia!

Não vingue a liberdade! É uma utopia!

Assim ordena e quer o Filhotismo!

Queira muito embora o mundo inteiro

Proclamar eterna a liberdade,

Cá no Brasil se quer Pedro primeiro!

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Alerta, alerta ó brava mocidade!

Alerta, alerta ó! povo brasileiro!

Vai volver o Brasil a Iniquidade!

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Curioso é encontrar em jornais da época a expressão “mentira de bronze” como sinônimo de estátua, que poderia ou não guardar relação com a verdade esperada dos fatos. No caso da homenagem a D. Pedro I, a iniciativa era considerada ainda mais ofensiva e grave por ser o local da estátua bem próximo ao sítio onde fora erguido o cadafalso que pôs fim à vida de Joaquim José da Silva Xavier. Como aceitar tamanha deferência ao neto da mulher que mandou executar Tiradentes?

Havia alguns anos que a literatura se ocupava da trajetória deste personagem, que ganhava simpatias, sobretudo dos republicanos. Jornais de 1872 circularam propostas de abertura de subscrição para o financiamento de uma estátua condizente com o que seria a verdade histórica, ou seja, um monumento a Tiradentes. Contudo, o homenageado do ano foi José Bonifácio de Andrada e Silva, tido como o patriarca da Independência. A ele ergueu-se uma escultura em bronze no Largo de São Francisco de Paula, também no Rio de Janeiro, no dia 7 de setembro. Mas não nos espantemos: também Bonifácio não foi unanimidade. Alguns periódicos passaram a denunciar o que seriam então duas mentiras de bronze.

(Acervo Arquivo Nacional)

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As ferrenhas disputas entre D. Pedro I e Tiradentes continuaram mesmo após a Proclamação da República. Uma primeira vitória importante do mártir mineiro ocorreu em 1890, com a mudança de nome da praça, que deixou de ser da Constituição para chamar-se Tiradentes. Neste ano também tornou-se feriado nacional o dia 21 de abril, juntamente como o dia 15 de Novembro.

Entusiasmados com os avanços, republicanos jacobinos propuseram, em 1893, a derrubada da estátua de D. Pedro I. Em um periódico intitulado Tiradentes (Ano XII), lia-se:

“Uma festa a Tiradentes não será, para os republicanos, uma completa reivindicação, enquanto existir na praça, que tem o nome do protomártir da liberdade brasileira, aquele trambolho de bronze, afrontando os brios nacionais.

Seja, portanto, unânime, neste dia, o grito dos brasileiros – Delenda Statua”.

No Rio de Janeiro, Sampaio Ferraz, à frente do Clube Tiradentes, organizou festejos que previam a cobertura da estátua de D. Pedro I com um coreto. Apesar da autorização inicial, o prefeito Barata Ribeiro, também jacobino, voltou atrás após receber críticas nos jornais. O coreto foi demolido e a estátua do imperador permaneceu.

Um monumento a Tiradentes só foi erguido na capital federal em 1926, em frente ao recém-construído palácio que também homenageia o mártir mineiro e que funcionou como Câmara dos Deputados até 1960. Durante do Estado Novo (1937-1945), peças de teatro que exaltavam Tiradentes tiveram apoio oficial. Em 1965, já no governo dos militares, uma lei declarou Tiradentes patrono cívico da nação brasileira e mandou colocar retratos em todas as repartições públicas. Teria sido Joaquim José da Silva Xavier um exemplo de unanimidade?

Há muito mais entre a praça pública e as nossas respectivas vidas e trajetórias. Ao contrário do que imaginavam os revolucionários de outrora e os de hoje, mentiras ou meias verdades de bronze não são totens capazes, por si só, de formar novas almas. Mas são ótimos pretextos para escarafuncharmos o passado de tempos em tempos.

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(Reprodução)

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