por Kalebe Rangel
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Screvo meu livro à beira-magua.
Meu coração não tem que Ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.
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Só te sentir e te pensar
Meus dias vacuos enche e doura
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
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Quando virás a ser o Christo
De a quem morreu o falso Deus,
E a dispertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
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Fernando Pessoa, Mensagem, 1934
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I.
O mundo antigo do Crescente Fértil, contexto da Tanakh, ou Antigo Testamento, como conhecem os cristãos, tinha no azeite um importante elemento não só alimentar, mas principalmente cultural. Nesse mundo agrário e pastoril da Mesopotâmia e Meio Oriente, sua utilização não se restringia ao uso doméstico e culinário, ou então como item de perfumaria ou medicinal, mas tinha também um importante uso ritual. Entre os hebreus, mas não exclusivamente, o ato de ungir com azeite indicava uma separação cúltica e consagração que podia ir de objetos até pessoas separadas com funções e missões especiais, como eram os sacerdotes, reis ou profetas. Daí que se origina o termo Messias, em hebraico Mâshiâh (????????), que traduzido na Septuaginta para o grego Kristós (???????), designava o “Ungido”, i.e., o escolhido de Deus e por ele designado para o cumprimento de uma missão especial como seu enviado, sendo então uma autoridade divina, uma espécie de representante de Deus no meio do povo.
Ainda que se tenha a presença de ideais messiânicos no período tribal e pré-monárquico entre os hebreus, é no Rei Davi que temos o arquétipo do Ungido que, depois das sucessivas crises que culminaram nos exílios, formará os ideais messiânicos do judaísmo posterior que, juntamente à longa tradição do profetismo, representará a concretização de uma esperanc?a soteriológica materializada em um li?der ideal. Assim, ao mesmo tempo que a vinda do messias se projeta num futuro, inserido em um imaginário apocalíptico, também pode representar um ideal de restauração, ambos entendidos como a instauração de um reino de justiça e paz.
Essas são as bases da interpretação da missão de Jesus como messiânica que levarão os primeiros cristãos a o identificarem como o escolhido de Deus, o Messias ou Cristo, que foi enviado e trazia em si a coadunação das figuras real, sacerdotal e profética. Essa designação titular de Jesus como sendo “o Cristo” se torna então posteriormente um reconhecimento de sua própria identidade não só como messias, mas como Filho de Deus, o próprio Deus encarnado.
É desse modo que o messianismo pode ser entendido conceitualmente como a crença na vinda de um salvador escolhido e ungido por Deus que representa a implantação de um reino de paz e ordem divinas a partir de um telos que se concretiza numa irrupção sobrenatural que adentra na história e intervém em favor de um povo escolhido. Muitas vezes ligado a milenarismos, embora não necessariamente, percebe-se então um caráter utópico e trágico que revela uma ambivalência da esperança messiânica como resposta às mazelas do mundo. Contudo, o salvador, que é aquele que traz e inaugura esse novo éon, não deve ser visto meramente como um agente espiritual. Ele é também um transformador da ordem social e política, sua ação pode ser também verificada numa salvação terrena, na oposição aos “reinos pagãos” tidos como impuros vencidos pelo novo “Reino de Deus”; e é aí que se denota um fenômeno interessante.
A modernidade, que, a partir da secularização e da laicidade, supostamente cirscunscreveu a religiosidade ao âmbito privado dos indivíduos — compreensão altamente discutível, como abordam Charles Taylor ou Danièle Hervieu-Léger — fez com que a política, ao ser objeto de expectativas e func?o?es outrora da religião, pudesse experimentar uma espécie de “sacralização”, uma imanentização das expectativas religiosas que originou possíveis formas de “religiões seculares” (como diria Raymond Aron) ou “religiões políticas” (para Voegelin). É assim que fenômenos e ideologias políticas eminentemente modernos, ao contrário do que se possa pensar, podem ser compostos de elementos mítico-religiosos, profetismos e grandes escatologias representando verdadeiras soteriologias seculares expressas, e.g., em experiências que vão desde as grandes revoluções até os extremos das experiências históricas totalitárias, passando pelas várias formas de nacionalismos e autoritarismos.
Jacob Talmon, em The Origins of Totalitarian Democracy, identifica na Revolução Francesa a origem moderna do que denomina como democracia totalitária, que, se opondo à liberal, seria o momento em que o messianismo toma força política na constituição de um imaginário político que concebia uma natureza humana plenamente capaz de solucionar as mazelas sociais pela via política a partir de uma idealização e apreensão total da realidade pela razão. Figuras como Saint-Simon — que, para Talmon, era o “mais assombroso de todos os profetas e messias do século XIX” —, Saint-Just — que, como lembra Camus, postulava a “vontade geral” como o próprio Deus — ou então Babeuf (e seu igualitarismo radical da Societé des égaux) seriam todos arautos desse novo messianismo que livraria a humanidade do mal não mais pela intervenção histórica do divino, mas pela própria ação humana em sua dimensão política levada ao extremo.
Assim, em sentido amplo, o messianismo político designaria tanto a crença messiânica quanto movimentos messiânicos que se propõem a implementar uma verdade política única e exclusiva postulada em esquemas de realidades perfeitas, pré-ordenadas e harmoniosas para os quais os homens são levados irremediavelmente e que estão obrigados a chegar a partir da atuação de uma liderança carismática. A política, nesse sentido, seria vista como um meio de realização das idealizações e de uma filosofia completa acerca do ser humano, da história e da sociedade que só chegará a seu objetivo quando esta filosofia reine de uma maneira absoluta em todos os campos da vida.
Contudo, ainda que a Revolução Francesa ou o contexto de crises do Esclarecimento tenham sido o plano do qual emerge essa forma moderna de “messianismo totalitário”, para compreender a relevância desse imaginário na cultura política brasileira é preciso antes destacar um outro tipo de messianismo que não perpassa necessariamente a mística da revolução ou das soteriologias sociais dos séculos XIX e XX.
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II.
Os portugueses — messiânicos desde seu primeiro rei, Dom Afonso Henriques —, do milagre da Batalha de Ourique, em 1139, deram origem ao Sebastianismo, centrado na figura de Dom Sebastião e no mito de sua futura aparição para salvamento do Reino de Portugal (em decorrência de seu suposto desaparecimento e do corpo não encontrado na emblemática Batalha de Alcácer-Quibir, ou Batalha dos Três Reis, em 1578). Essa seria a expressão de uma crença messiânica que, tendo como pano de fundo os se?culos de convive?ncia entre judeus, árabes e católicos na Peni?nsula Ibe?rica, concentrava na figura mi?tica do rei salvador as esperanc?as de redenc?a?o e libertação das desgraças do presente, projetando para o futuro a volta daquele que iria por fim libertar os portugueses do julgo castelhano e conduzi-los à glória a eles destinada.
O mito originado na derrota do Reino Português em Alcácer-Quibir tem seus precedentes na hagiografia de São Sebastião, canonizado no século IV após seu martírio, originando diversas interpretações e sentidos. Desse modo, o mito de Dom Sebastião, o Desejado, foi a gênese de uma crença que não só influenciou a história política portuguesa em seus séculos imediatamente posteriores, como nas tensões sob o domínio espanhol, mas foi persistente, como, v.g., em seu forte renascimento na época bonapartista. As Trovas de Gonçalo Bandarra, composta por vários escritos místicos, tiveram imensa difusão popular vindo a ser interpretadas ao longo do século XVII como verdadeiros escritos proféticos sobre o regresso messiânico de Dom Sebastião e o futuro glorioso do Grande Reino de Portugal.
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Sob a égide da missão da Companhia de Jesus, Padre Antônio Vieira, o “Imperador da língua portuguesa”, teve por inspiração precisamente as trovas bandarristas para sua doutrina milenarista que apregoava a restauração e independência portuguesa com a volta do Encoberto para comandar o Quinto Império, na compreensão de que Portugal era escolhido de Cristo para levar aos outros povos sua mensagem. No clássico “Sermão a São Sebastião”, pregado no mesmo ano de sua ordenação ao presbitério, em 1634, na Igreja que leva o nome do Santo, em Salvador da Bahia, o Padre clamava:
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[O] ilustríssimo e invictíssimo confessor de Cristo, São Sebastião. Oh! divino bem-aventurado! Oh! divino encoberto! No céu vos celebra a Igreja Triunfante descobertamente bem-aventurado; na terra vos festeja a Igreja Militante bem-aventurado, mas encoberto; assim vos chamo.
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Para além da beleza magistral do discurso do sacerdote, fica alva a força do mito do sebastianismo e a potência de efervescência social de suas disposições. O orador — fazendo referências pela semelhança onomástica tanto ao Santo Romano quando ao Rei Desejado, o Encoberto — interpreta o mito a partir de arquétipos bíblicos como o de José e do profeta Jonas, como tipos de Cristo, e ainda de figuras como Jó, Davi e do próprio Cristo, que encaminharão o sermão do Padre que culminará ao clamor panegírico a São Sebastião: “Santo Glorioso, por meio de Vosso amparo conseguiremos a bem-aventurança encoberta desta vida, até que por meio da vossa intercessão alcancemos a bem aventurança descoberta da outra. Ad quam nos perducat.”
É através da pregação do Padre Antônio Vieira que esse imaginário messiânico se difundirá por todo o Norte brasileiro, no que hoje conhecemos como Nordeste, e influenciará as crenças no sertão ao ponto relevante de ter ligações diretas com Canudos e a figura de Antônio Conselheiro — tão rica quanto enigmática, que, em torno do estigma meio caricato, meio difamatório de Euclides da Cunha, protagonizou um do eventos mais centrais e cruéis da história nacional. As predicas de Antônio Conselheiro, que para o escritor republicano, refletiam o “turvamento intelectual de um infeliz” ou de um “gnóstico bronco” era a expressão da “religião mestiça” que denotava a crença messiânica: o “símile [d]o misticismo político do Sebastianismo” que persistia nos serto?es do Norte. A tendência messiânica do “rebelado arrematia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reinado de delícias prometido”.
O relato do autor após o “espetáculo diário da morte” que culminara com o falecimento de Antônio Conselheiro é ainda mais emblemático a partir dos olhos daqueles que sucumbiram diante sangrento episódio do arraial de Canudo. Euclides da Cunha retrata que sobre a derrota “relataram-na depois, ingenuamente, os vencidos”:
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Antônio Conselheiro seguira em viagem para o céu […] resolvera dirigir-se diretamente à Providência. O fantástico embaixador estava àquela hora junto de Deus. Deixara tudo prevenido. […] Porque o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos, descendo — gládios flamívomos coruscando na altura — numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o Dia do Juízo…
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III.
Além da compreensão dos movimentos messiânicos ou das comunidades messiânicas, é também relevante entendermos o que podemos chamar de “mentalidade messiânica”, pois os movimentos messiânicos ou milenaristas trazem consigo uma carga axiológica particular composta por representações míticas e simbólicas que formam uma matriz ideológica coletiva que pode servir de substrato para uma ação política concreta e ordenada. Essa sustentação provinda do universo simbólico que origina a mentalidade messiânica que dirige a esperança depositada na transformação a partir dos movimentos e seus messias.
No caso brasileiro, esse imaginário de que se resume na expectativa de um Messias, considerado como um redentor ou salvador enviado para trazer a vitória do Bem sobre o Mal, corrigir as imperfeições do mundo e permitir o advento de um Paraíso Terrestre como um destino político a ser cumprido está presente largamente em nossa cultura.
Desde o profetismo entre os Guaraní, visto no discurso dos karai, que apontavam à necessidade de se abandonar a terra maldita, a sociedade tal como era, para aceder à “Terra sem Males”, à sociedade da felicidade divina; até os movimentos como a Revolta dos Mucker no Rio Grande do Sul (1869), Juazeiro do Padre Ci?cero (1872-1934) ou o Contestado dos monges Joa?o e Jose? Maria (1912-1916), nota-se esse imaginário messiânico que pode ser visto como um elemento fundamental da cultura brasileira.
O Brasil já nasce sob o signo da utopia. Lembremos a colonização — em que os portugueses, como lembra Darcy Ribeiro, “compuseram uma teologia alucinada e messiânica”,[1] na qual acreditavam cumprir a divina missão de cristianização do mundo e do estabelecimento do Reino de Deus nas terras ignotas; a luta dos incontáveis escravizados oprimidos deste lado do Atlântico, que lembravam de sua liberdade em África e por ela peleavam na fundação de seus quilombos como comunidades de libertação e esperança, que originou um “messianismo perdido”[2] na linguagem de Bastide a partir da contribuição dos Bantos em nossa cultura; ou então a proclamação da República e sua jornada positivista de trazer ordem e progresso à nação que estava perdida. Todos esses eventos podem ser interpretados sob a forma de ideais marcadamente messiânicos.
Talvez essas formas de messianismos arraigados na cultura brasileira nos ajudem a entender como o Brasil se vê sempre marcado por certa propensão não só a seguir personalidades carismáticas, mas esperar soluções miraculosas, salvações e salvadores que nos tirarão da atual condição de privação e nos introduzirão a um porvir deleitoso.
Os muitos messias e sebastiãos, que se propõem a personificação da salvação, não são difíceis de serem imaginados. Nossa longa tradição populista é marcada por supostas paternidades daqueles em condição de pobreza, vassouras miraculosas e outros tantos milagres propostos, supostos caçadores que depois revelam ser a caça, homens que dizem não ser mais humanos mas ideias, ou então messias que não fazem milagres e só blasfemam imprecações profanas. Os exemplos são muitos e apontam a uma parte inegável de nossa história, mas também deixam claro como o messianismo pode ser uma chave pra entendermos o Brasil e interpretamos nossa condição, inclusive atual.
Além de uma matriz religiosa chave para compreensão do Brasil e de toda sua amálgama cultural, esse messianismo é também uma significativa força da ordem do político quando a fé na política o torna o veículo de realizações concretas e históricas de expectativas messiânicas. Ainda que haja outros canais de manifestações das insatisfações, padecimentos e consternações terrenas, seu poder de assumir um caráter político e massivo deve ser pensado e analisado principalmente por suas condic?o?es de surgimento; na?o so? de movimentos de massa, mas — como revela a histo?ria do se?culo XX — sua capacidade de, na sacralização da política e absolutização de ideais, também de um veículo da emergência de lideranças autoritárias e perigosas que de messias podem ter o discurso e até mesmo o nome, mas em nada são salvadoras. Ao contrário, estas podem sim ser enganadoras e destruidorass de toda civilidade, pois o grande perigo é que dos credos salvacionistas, dos belos discursos e impulsos enobrecidos, possa se fazer nascer o terror da opressão das tiranias.
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Notas:
[1] Cf. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 58.
[2] Cf. BASTIDE, Roger. Le Messianisme rate?. In: Archives de sociologie des religions, n° 05, 1961, pp. 31-37.
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