O mundo horizontal dos bárbaros: breve ensaio sobre o aplainamento do globo

As ideias têm consequências — e muitas delas não são esquecidas antes de provocar alguns estragos. Um ensaio de Ricardo Mantovani sobre a rotundidade da Terra (!); sobre mitos, sobre o aplainamento do globo — e da inteligência —, sobre o terraplanismo ao redor do mundo e sobre o lugar do Brasil no mapa da plana Terra dos bárbaros.

por Ricardo Mantovani

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“Há diversos modos de conhecer, diversas ciências. Por exemplo, tanto o astrônomo como o físico podem concluir que a Terra é redonda”.

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Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica (I, q.1, a.1, sol. 2)

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“O bárbaro, por suas condições, tem verdadeira ojeriza da inteligência . . . Sua esquemática é fundada nos sentidos, e seu pensamento situa-se apenas nos dados da memória e no material oferecido pela fantasia.”

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Mario Ferreira dos Santos, Invasão vertical dos bárbaros (II)

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O Astrônomo de Vermeer, c. 1668

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Como anunciado, isto é um ensaio, quer dizer, apenas uma tentativa — aliás, bastante incipiente — de traçar algumas linhas que possam tornar mais tangíveis fenômenos ainda tão pouco explorados como o são o terraplanismo e o relativo sucesso de que goza em nosso país. Ora, tendo me eximido, logo de saída, de oferecer ao leitor análises exaustivas e conclusões peremptórias, convido-o a acompanhar a trajetória desta infame teoria desde seu nascimento até sua difusão entre nós. Começarei por indicar quais foram os primeiros autores a sustentar a rotundidade da Terra e a fortuna que tiveram suas teses até meados do século XIX, quando, disparatadamente, passam a ser questionadas pelo socialista e literalista bíblico Samuel Rowbotham: o verdadeiro papa do terraplanismo. Na sequência, alçaremos voo sobre o longo caminho que as ideias de Rowbotham percorreram até chegar ao universo brasileiro, onde foram honradas, dentre outras coisas, com inúmeros canais “especializados” no YouTube, com a tolerância de Olavo de Carvalho, com uma conferência nacional — a FLATCON BRASIL 2019 — e com a simpatia do então presidente da FUNARTE, Dante Mantovani.

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O arredondamento da Terra

A planicidade da Terra é, sem sombra de dúvidas, uma das crenças mais difundidas de todos os tempos. De fato, nunca deve ter ocorrido a nenhum de nossos ancestrais pré-históricos — entre uma fuga e uma caçada — que o planeta, quando considerado em sua totalidade, assemelha-se muito mais a uma maçã do que a uma savana: ideia bastante estranha às cosmologias primitivas de que se tem notícia. Aliás, nem mesmo o posterior — e, de certo modo, tardio — surgimento das primeiras grandes civilizações foi suficiente para mudar a opinião dos homens sobre o assunto. Pelo menos, não de imediato. Tanto mesopotâmios quanto antigos egípcios acreditavam que o mundo era plano e que, além disso, estava boiando num vasto oceano. Indianos e chineses — apenas para fazer menção a duas grandes civilizações orientais — tampouco deixavam de acreditar na planicidade da Terra: sendo que, se os primeiros descobriram a rotundidade de nosso planeta “já” no século V d.C., os últimos só foram abrir-se a tão ousada tese no século XVII, influenciados por seu comércio com o Ocidente.

Como de costume, a virada de tabuleiro viria com os gregos. Se a planicidade da superfície ainda subsistia no interior da filosofia de Anaximandro, Anaxímenes e Xenófanes — sustentada, é verdade, de maneira idiossincrática por cada um deles —, caberia à escola pitagórica propor a esfericidade do planeta por primeiro: ao que tudo indica, mais por sustentar que a esfera é a perfeitíssima da formas do que por conta de eventuais observações e experimentos.

Ora, isto não significa que todas pessoas educadas da época aceitaram, incontinente, a tese criada por Pitágoras ou, o que é possível, por algum de seus discípulos. Anaxágoras, Leucipo e Demócrito, por exemplo, continuaram sustentando a planicidade terrestre. Até aí, nada de estranho. Mesmo nos felizes casos em que uma teoria possui inúmeras evidências a seu favor, pode passar muito tempo até que seja (quase) unanimemente aceita. Por isso, evitarei tachar os citados filósofos de terraplanistas: termo cuja aplicação criteriosa reservo a indivíduos que se insurgem, mais ou menos refletidamente, contra a teoria da esfericidade do planeta — mesmo depois de esta ter sido confirmada reiteradas vezes, ao longo de séculos, quer por cálculos, quer pela experiência.

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Heráclito, Demócrito e um…. globo. Donato di Angelo di Pascuccio, 1477

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Voltaremos a isto mais adiante. Por enquanto, fiquemos com os gregos. O leitor da República não pode deixar de notar a grande influência que as ideias cosmológicas dos pitagóricos tiveram sobre Platão, particularmente quando passa os olhos sobre a dança das esferas retratada no mito de Er — o armênio que, depois de doze dias, volta da morte para revelar a lógica que rege o Cosmos, tanto do ponto de vista ético quanto do ponto de vista físico. Ademais, Platão é taxativo quando, no Fédon (108e), pela boca de Sócrates, declara estar convencido de que a Terra é redonda, encontrando-se em estado de equilíbrio no centro da “abóbada celeste”.

Na segunda metade do século IV a.C. a esfericidade do planeta viria, finalmente, a se tornar um lugar comum entre os eruditos. Exatamente por esta época, Aristóteles produzia sua famosa obra sobre o céu, hoje mais conhecida por seu nome latino: De Caelo. Lá, o aluno de Platão elabora a tese segundo a qual os imperecíveis corpos celestes empreenderiam movimentos circulares eternos ao redor de uma Terra também ela circular — ainda que, é bem verdade, composta por materiais menos nobres do que o éter dos astros.

Vale notar que Aristóteles não alicerçou sua cosmovisão apenas em pressupostos metafísicos. No intuito de comprovar empiricamente sua tese, o filósofo já fazia menção a ocorrências que até hoje são invocadas para se argumentar a favor da rotundidade do planeta: o fato de os cascos dos navios que se dirigem para o horizonte desaparecerem antes dos mastros dos mesmos, a sombra circular que a Terra projeta sobre a Lua (notadamente durante o eclipse lunar) e o fato de, em diferentes latitudes, diferentes estrelas se nos tornarem visíveis e outras tantas se nos ocultarem.

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Aristóteles com um busto de Homero, Rembrandt, 1653

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Depois de Aristóteles, pouquíssimos autores greco-romanos ousaram questionar a esfericidade do planeta. Os únicos pensadores relevantes que o fizeram foram Epicuro e Lucrécio — uma vez que sua excêntrica física atomística exigia um mundo plano e em constante queda livre! Nunca ocorreu a Euclides, Aristarco, Arquimedes ou Eratóstenes propor um novo formato para a Terra. Ademais, este último, diretor da grande biblioteca de Alexandria, jamais se preocupou — ao contrário do que muitos pensam — em provar a rotundidade do planeta, mas tão somente em calcular seu diâmetro a partir das sombras projetadas pelo Sol, num mesmo dia, em localidades distintas: o que, diga-se de passagem, fez com grande precisão levando-se em conta os instrumentos de que então dispunha.

Mas como estas coisas ficaram com o advento do cristianismo? Na verdade — e, mais uma vez, contrariando o que muitos pensam — a enorme maioria dos autores cristãos nunca se rebelou contra a cosmologia aristotélica (chamada posteriormente de aristotélico-ptolomaica por conta das contribuições que, já no século II de nossa era, o matemático e astrônomo Ptolomeu faria ao sistema do autor do De Caelo).

Dentre os poucos escritores cristãos que, em nome de uma interpretação (que se pretende literal) de certas passagens bíblicas, negaram a esfericidade do planeta, encontra-se o africano Lactâncio. Nascido pagão, Lactâncio (245-325 d.C.), tão logo convertido ao cristianismo, usou do incrível domínio que tinha da língua latina para defender sua nova fé e rechaçar qualquer dado da filosofia grega que julgasse contradizê-la. O fato é que, no afã de, por assim dizer, ser mais cristão do que os cristãos que o batizaram, Lactâncio acabou não só negando, despropositada e inutilmente, a rotundidade da Terra, como também propondo teses teológicas que, após algum tempo, viriam a ser condenadas como heréticas.

Por vezes, os historiadores da ciência apontam são João Crisóstomo (347-407 d.C.), bispo de Constantinopla e um dos maiores nomes da Patrística, como sendo adepto do antigo “terraplanismo”. Entretanto, não me parece que isto seja verdade. Para provar sua tese, tais historiadores, quando se dão ao trabalho de revelar sua fonte, nos remetem à XIV homilia escrita pelo santo sobre a Carta aos Hebreus. Ora, lá são João Crisóstomo não faz referência ao formato do planeta sequer uma única vez, limitando-se a desafiar aqueles que afirmavam que o próprio céu era esférico e girava em torno da Terra. Perceba-se que desta provocação até a afirmação da planicidade do planeta há um longo caminho — caminho este que não temos qualquer base para afirmar que são João Crisóstomo tenha percorrido.

O caso mais curioso — e inquestionável — de “terraplanismo” entre cristãos pré-modernos está ligado ao nome de Cosme Indicopleustes (sec. VI), um mercador – e, depois, monge ortodoxo — que, como seu próprio nome deixa transparecer, ficou conhecido, dentre outros fatores, por suas viagens ao oriente (“indicopleustes” significa “aquele que viajou para a Índia”). Em seu Topologia Cristã, Cosme sustenta que o planeta seria plano, retangular e cercado por grandes muralhas que, chegando aos céus, confeririam à Terra um formato de tabernáculo — tal como aquele que, durante sua peregrinação pelo deserto, os israelitas montavam para a honra de Jeová. As ideias de Cosme, contudo, nunca tiveram qualquer influência, quer na Igreja do oriente, onde foi imediatamente confrontado por João Filópono, quer no Ocidente, que viu uma tradução de seus escritos para o latim somente no início do século XVIII.

Por fim, vale dizer duas palavras a respeito de uma passagem de A Cidade de Deus — Livro XVI, Capítulo 9 — que, não raro, é citada como pretensa prova da adesão de santo Agostinho à teoria da planicidade da Terra. Pois bem. Quem se debruça sobre a obra do bispo de Hipona sem qualquer prevenção não demora muito para notar que o que o incomoda não é, em absoluto, a rotundidade do planeta (que considera passível de demonstração), mas a suposta existência de antípodas. Afinal, pergunta Agostinho, dada a enormidade dos mares, como os descendentes de Adão poderiam ter chegado ao outro lado do mundo?

Eis um esboço tão breve quanto possível de nossa progressiva tomada de consciência da esfericidade da Terra — e da difusão dessa novíssima ideia entre os letrados de outrora. Desde sua elaboração pelos pitagóricos, a tese da rotundidade do planeta nunca deixaria de ser deferida — e, às vezes, burilada — pelos mais eminentes intelectuais: Platão, Aristóteles, Euclides, Aristarco, Arquimedes, Eratóstenes, Agostinho, Macróbio, Boécio, Isidoro de Sevilha, Beda, Abzeme (o erudito árabe), João de Sacrobosco, Tomás de Aquino, Jean Buridan, Dante Alighieri, Nicolau de Cusa, Copérnico e, juntamente com este último, todos astrônomos modernos e contemporâneos.

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Agostinho, por Philippe de Champaigne

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Demolindo um mito

O quê? Então não foi Cristóvão Colombo o notável herói que, lutando contra os preconceitos medievais e seus encarniçados defensores, provou, de uma vez por todas, a esfericidade do planeta? Ora, por tudo quanto vimos, não é difícil concluir que este não é bem o caso. A imagem de um Colombo racionalista, um destemido “caçador de mitos”, não é, ela própria, senão um mito, estrategicamente criado por adeptos do progressismo exacerbado do século XIX.

É inegável que Colombo teve algum trabalho para convencer seus futuros patrocinadores de que sua empreitada era factível. Isto, entretanto, não se deveu ao fato de Isabel e Fernando serem “terraplanistas”, mas sim à sua cautela para não desperdiçar os recursos de uma Espanha em vias de se reunificar (processo de chegaria a termo em 1492, com a tomada de Granada das mãos dos muçulmanos).

Aquilo que fazia a Coroa espanhola pensar duas vezes antes de investir em uma nova rota para o rentoso Oriente era somente isto: o receio — aliás, bem fundamentado — de que a distância entre as Ilhas Canárias e o Japão (ou seja, entre o ponto de partida e o almejado ponto de chegada da expedição) fosse muito grande, o que condenaria os navegantes à morte por falta de água e comida. Digo que o receio dos monarcas espanhóis era bem fundamentado porque, de acordo com o tamanho do globo aceito no tempo de Colombo (bastante similar ao tamanho que lhe atribuímos hoje), a distância a ser percorrida na viagem sobrepassaria, em muito, a autonomia das célebres caravelas.

O fato é que, para convencer o comitê formado no intuito de julgar a razoabilidade de sua empreitada (comitê, diga-se de passagem, laico — e não religioso como se costuma dar a entender), Cristóvão Colombo se apegou a uma série de dados que lhe convinham. Entre as medições da circunferência terrestre realizadas por Eratóstenes e por Ptolomeu, ficou com a deste último, precisamente por desembocar em cifras menores. Contudo, ao invés dos 180 graus de longitude que Ptolomeu atribuía ao mar, preferiu ficar com os 135 graus que lhe atribuía Pierre D’Ailly. Contra D’Ailly, no entanto, subtraiu outros 28 graus a seu percurso, argumentando que, de acordo com as viagens de Marco Polo, era de se crer que a Ásia se estendia mais a leste do que pensava o astrônomo francês…

Finalmente, após mais algumas acrobacias, Colombo conseguiu o assentimento (não muito convicto, é verdade) que de que tanto necessitava. Estimando haver uma distância entre as Ilhas Canárias e o Japão três vezes menor do que a que realmente há, não fosse o destino a oferecer-lhe todo um continente como boia de salvação, o grande desbravador e todos seus companheiros teriam se juntado à imensa fileira de homens que perderam suas vidas desafiando os mares.

O escritor americano Washington Irving seria o primeiro intelectual a distorcer sensivelmente os episódios que acabo de esboçar. No livro História da vida e das viagens de Cristóvão Colombo, de 1828, Irving descreve uma cena — fruto tão somente de sua fantasia — na qual Colombo, um humilde e obstinado navegador, defende a tese da rotundidade do planeta frente a uma junta de doutores que, atolados no pântano das crenças obscurantistas do catolicismo, reputavam despropositada sua empreitada.

Ora, o mito criado por Washington Irving — de um Colombo baluarte da Razão insurgindo-se contra um tribunal temeroso de que os marinheiros acabassem despencando das bordas da Terra — viria a se tornar parte do senso-comum (inclusive entre acadêmicos) já nas décadas seguintes, depois de ter recebido o impulso decisivo de John Willian Draper: autor de um best-seller (publicado em 1874) responsável por popularizar a ideia de que a ciência e a religião — particularmente a religião católica — não podem coexistir e que, portanto, encontram-se em guerra permanente. Deixo a cargo do leitor a tarefa de julgar o quanto as teses de Irving e Draper são, ainda hoje, influentes.

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Washington Irving

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O aplainamento do Globo

No século XIX o processo de desencantamento do mundo já se encontrava bastante avançado, pelo menos entre os indivíduos pertencentes à chamada “elite cultural” do Ocidente. Ora, a meu ver (e aqui compartilho mais uma impressão pessoal do que o resultado de um estudo pormenorizado) foi a crescente “perda de graça” de um mundo já quase totalmente esquadrinhado que levou um número considerável de intelectuais da época a aferrarem-se a teorias um tanto controversas.

Uns, por exemplo, tentaram reencantar a Terra afirmando que, sendo oca, comportava, em seu interior, plantas, animais e, quiçá, civilizações mais exóticas e interessantes do que todas de que se tinha notícia até então (a bibliografia relacionada à Terra Oca é muito ampla e diversificada, indo desde estudos científicos de um Edmund Halley, até a literatura de um Jules Verne). Eis um reencantamento não-transcendente, é verdade, mas, ainda sim, um reencantamento — e isto na medida em que reintroduzia no seio da realidade o Desconhecido: mais ou menos como ainda o faz a contemporânea ufologia. Outros, por sua vez, “combateram” o desencantamento do mundo (expressão de que me utilizo despretensiosamente) negando que a Terra fosse uma esfera em movimento — o que, no limite, significava dizer que não vivemos em um planeta, já que, como se sabe, o termo “planeta” significa “astro errante”. Nascia, assim, o terraplanismo moderno. Tentemos entendê-lo.

O pai do terraplanismo moderno foi o inglês Samuel Birley Rowbotham (1816-1884). Rowbotham teve uma trajetória intelectual no mínimo curiosa. Durante os primeiros anos de sua vida madura, o futuro terraplanista abraçou, com unhas e dentes, uma visão política esquerdista bastante extremada, chegando a gerenciar uma comuna ligada a Robert Owen. Posteriormente, tendo abandonado a dita comuna por conta de um escândalo, Rowbotham transforma-se em um palestrante socialista itinerante. Mais ou menos por esta época (primeira metade da década de 1840) o autor permite que sua vontade de revolucionar todas as coisas extravase o âmbito da política e incida sobre a medicina, publicando Biologia: um inquérito sobre a causa da morte natural — texto onde defende que o homem não morre por conta de seu envelhecimento, mas por causa de um processo de ossificação, passível de retardamento mediante uma dieta que, se devidamente observada,  presentearia os indivíduos com uma longevidade digna dos patriarcas de Israel.

Somente então Samuel Birley Rowbotham passaria a se dedicar àquilo que, bem ou mal, rendeu-lhe certa fama: a teoria da Terra Plana, trazida à luz em um panfleto de 1849 — intitulado Earth not a globe! — e, mais tarde, amplamente desenvolvida em Zetetic Astronomy: Earth not a globe! An experimental inquiry into the true figure of the Earth, um volumoso livro de 1865.

Rowbotham, que assina as obras mencionadas com o codinome de Parallax, justifica sua empreitada afirmando que a astronomia moderna — como, de resto, toda ciência moderna — possuiria um vício de base, a saber, seria pouco ou nada empírica, escondendo-se sistematicamente atrás de cálculos inextrincáveis e engessando-se com teorias pré-concebidas. Contra isto, Rowbotham propunha a astronomia zetética (ou seja, cética, perquiridora) que, avessa às inverossímeis conclusões de meia dúzia de doutores iluminados, se basearia na observação de fatos acessíveis ao mais simplório dos homens. Contra a falsa ciência de Copérnico e Newton surgia, assim, a “ciência de verdade” — expressão até hoje muito utilizada por terraplanistas ao fazerem menção a seus próprios experimentos e teorias. Tudo indica que estamos, aqui, frente a um fenômeno denunciado por Lionel Trilling em A mente no mundo moderno: o ressentimento do homem médio frente ao conhecimento daquele que dedica sua vida ao estudo. Contudo, não nos percamos em hipóteses que, neste ponto, só nos desviariam de nosso assunto principal.

Entre os experimentos que comprovariam a planicidade da Terra, Rowbotham tinha especial predileção por aquele que realizara no canal Old Bedford. Localizado no Condado de Cambridge, o canal artificial, devido à quase completa imobilidade de suas águas e à sua retidão, seria perfeito para refutar (ou confirmar) a suposta esfericidade do planeta. Ora, como viria a afirmar reiteradas vezes, uma vez dentro do canal, Rowbotham teria sido capaz de, com a ajuda de um telescópio, visualizar um objeto posicionado a quase 10 quilômetros de seu posto — o que, levando-se em conta a pequena estatura do artefato (se tratava de uma bandeira presa a um mastro de 1,5 metro), seria totalmente impossível caso realmente vivêssemos em uma bola.

Partindo de experiências como a realizada no canal Old Bedford — que, quando reproduzidas por outros estudiosos, apresentaram resultados avessos aos de Rowbotham — e de uma leitura literal (para não dizer pueril) de inúmeras passagens bíblicas, o criador da astronomia zetética elabora uma cosmologia muito similar à dos antigos hebreus, aderindo, inclusive, à tese de que o planeta teria menos de seis mil anos — teoria que, já naquele tempo, era desacreditada pelo uniformitarismo de James Hutton, John Playfaire e Charles Lyell.

De acordo com Parallax, a Terra seria um disco, com aquilo que chamamos de Polo Norte em seu centro. Ademais, o que costumeiramente é tido como sendo a Antártida não seria um continente, mas sim uma grande parede de gelo que limitaria os oceanos, percorrendo toda a borda da Criação. O disco terrestre restaria fixo, tendo o Sol e a Lua sobre si, os quais, movendo-se circularmente, completariam suas revoluções a cada vinte e quatro horas. Aliás, no que diz respeito ao Sol e à Lua, é importante frisar que Parallax não os considerava sólidos: ambos seriam apenas “luzes”, muito menores e mais próximas de nós do que supõe a vã ciência moderna. Quanto às estrelas, estas não seriam senão “centros de ação”, cuja função precípua seria derramar produtos químicos sobre a Terra.

Parallax, como é de se imaginar, não foi levado a sério pela Academia — afinal, sua teoria, além de não dar conta de explicar numerosos fenômenos astronômicos já muito bem compreendidos à época, não passava de um amontoado de hipóteses ad hoc, negando o universo previsível de Newton em nome de um cosmos mágico, bastante avesso a leis gerais.

O pai do terraplanismo chegou, contudo, a fazer algum sucesso nos meios populares. Suas palestras ao redor da Inglaterra parecem ter atraído uma plateia considerável, quer por causa da habilidade retórica de Parallax (amplamente desenvolvida na época em que fora pregador socialista), quer por se inserirem no panorama mais amplo de uma grande polêmica de então — a relação entre ciência e religião —, quer, finalmente, por adularem o ego do público que, segundo o autor, não mais precisaria se dobrar ao falso saber dos soberbos especialistas. Seja como for, é inquestionável que Samuel Birley Rowbotham não morreu sem deixar para trás alguns fervorosos discípulos.

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Zetetic Astronomy, de Rowbotham

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A Terra Plana ao redor do planeta

Entre os primeiros seguidores de Rowbotham encontra-se seu próprio editor, o inglês Willian Carpenter, que, tendo se mudado para Baltimore em 1879, tornou-se um dos primeiros divulgadores do terraplanismo em solo americano. Carpenter, cujo gosto por excentricidades já se manifestara em seu flerte com a hipnose, o mesmerismo e o vegetarianismo (este último muito menos aceito à época do que hoje em dia), viria a publicar suas próprias obras sobre Terra Plana, tais como Theoretical Astronomy Examined and Exposed e One Hundred Proofs the Earth is Not a Globe.

A leitura das obras de Carpenter deixou uma forte impressão em John Hampden, um “filhinho de papai” que largou seus estudos universitários para apoiar as causas que lhe pareciam urgentes. Dedicou-se, inicialmente, a propor uma reforma da Igreja Anglicana que, a seu ver, deveria se dobrar completamente ao protestantismo. Ora, a segunda causa que ocuparia a mente um tanto desocupada de Hampden seria, precisamente, a defesa do terraplanismo.

Enamorado de sua nova bandeira e extremamente confiante, Hampden resolveu oferecer um prêmio pecuniário para qualquer um que conseguisse refutar os resultados do experimento realizado por Rowbotham no canal Old Bedford (e, consequentemente, conseguisse refutar o terraplanismo). Pois bem. Para a infelicidade de Hampden, o desafio foi aceito e vencido pelo grande Alfred Russel Wallace — aquele que, simultaneamente a Charles Darwin, chegou, por conta própria, às mesmas teses que este último registraria nas páginas de A origem das espécies. É bem verdade que, depois de um longo processo jurídico, o dinheiro ganho por Wallace acabaria voltando para Hampden, que alegou ter retirado a oferta antes de o eminente naturalista levar a cabo seus experimentos no famigerado canal. O litígio, todavia, não terminou sem render a Hampden um período na prisão: frustrado e desmoralizado, o playboy terraplanista havia ameaçado de morte seu adversário.

Não obstante, a teoria da Terra Plana não deixaria de conquistar cada vez mais adeptos. Já em 1893 (portanto, apenas nove anos após a morte de Rowbotham), a Inglaterra veria surgir a primeiríssima organização terraplanista: a Universal Zetetic Society, fundada pela aristocrata e polemista cristã Elizabeth Anne Mould Blount. Lady Blount, como ficou conhecida, também foi responsável pelos primeiros periódicos especializados, publicando, por anos a fio, a The Earth is not a globe Review e a Earth: a monthly magazine of Sense and Science.

Como se isto já não bastasse, o terraplanismo de Rowbotham encontraria uma incrível caixa de ressonância na Igreja Católica Apostólica, fundada em 1896 por John Alexander Dowie, um escocês avesso à medicina moderna, que proibia seus fiéis de comerem porco e assoviarem aos domingos. Bem-sucedida, a igreja de Dowie chegou a criar sua própria cidade no estado americano de Illinois, Zion (Sião), de onde seriam banidos quaisquer elementos que seus líderes considerassem perniciosos à fé: tal como o foram considerados os aparentemente inofensivos globos terrestres utilizados nas aulas de ciências.

Com efeito, o grande responsável pelo desenvolvimento do terraplanismo em Zion foi Wilbur Glenn Voliva. Tendo substituído Dowie na liderança da Igreja Católica Apostólica, Voliva, habilidoso administrador, lograria abrir uma rádio confessional, tornando-se, em 1923, o primeiro pregador com uma estação própria. Seu programa diário podia ser escutado em todo norte e em algumas partes do centro dos Estados Unidos. Nele, além de calcular (e recalcular) a data do Apocalipse, Voliva atacava a teoria da evolução e a astronomia moderna, cuja cosmologia substituía pelo modelo de Rowbotham, ao qual ousava dar uns toques pessoais. A Terra, por exemplo, não acabaria na parede de gelo que, “erroneamente”, chamamos de Antártida: para além dela estaria localizado o Inferno. O certo é que, antes de Voliva, a teoria da Terra Plana nunca havia sido apresentada a tantos e com tanta insistência. O terraplanismo fincava suas raízes na América de uma vez por todas.

Infelizmente, não posso esquadrinhar aqui todo progresso do terraplanismo ao longo do século XX. Muito poderia ser dito da International Flat Earth Research Society, fundada, em 1956, por Samuel Shenton. Muito poderia ser dito dos singulares argumentos presentes no livro Heaven and Earth, publicado, em 1957, por Gabrielle Henriet. Certamente renderia algumas páginas a exposição dos ditos e feitos de Charles K. Johnson, criador da International Flat Earth Research Society of America — e primeiro homem público a sustentar que as viagens espaciais não passavam de uma farsa. Contudo, encaminhando-me para o final deste tópico, me limito a chamar a atenção dos que me leem para o fato de que nada foi tão “benéfico” ao terraplanismo quanto o surgimento da Internet.

A respeito disso, basta que se diga que, já em 2004, havia algumas dezenas de milhares de terraplanistas e simpatizantes interagindo, diariamente, em um fórum de discussão online criado por Daniel Shenton, um jovem americano natural do estado da Virgínia. Ora, atualmente, quem ousa pesquisar a expressão “Flat Earth” no Google é surpreendido com avassaladores 709.000.000 de resultados — número duas vezes maior do que o registrado quando pesquisamos “Aristotle” (Aristóteles) e três vezes maior do que o indicado quando pesquisamos “Plato” (Platão). O YouTube, por sua vez, tem sido um perfeito oásis para as ideias terraplanistas. Se é verdade que a enorme maioria dos youtubers defensores da Terra Plana praticamente se limita a reproduzir as teses centenárias de Samuel Rowbotham, eles “compensam” sua falta de originalidade com um estonteante número de inscritos. Note o leitor que, quando somamos os inscritos dos dois maiores canais terraplanistas brasileiros, chegamos à vertiginosa cifra de quase um milhão de internautas…

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Samuel Shenton e alguns globos

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O lugar do Brasil no mapa da Terra Plana

No dia 17 de setembro de 2019, Olavo de Carvalho fez a seguinte declaração em sua conta no Twitter: “Para mim essa questão de terra plana é como qualquer outra: ninguém tem certeza de p* nenhuma. As pessoas sensatas se divertem com a investigação, os neuróticos se ofendem com a pergunta”. Não é minha intenção, aqui, tachar de “terraplanista” o mencionado professor. Tampouco pretendo analisar qualquer uma de suas teses. Quero, ao invés disso, tão somente frisar que uma afirmação deste tipo, quando publicada por um indivíduo influente como Olavo, não é esquecida sem antes provocar alguns estragos. Perceba-se que, nela, o escritor dá a entender que os cientistas não têm certeza do que quer que seja e que, além disso, é sinal de sensatez e, quiçá, de saúde mental, duvidar de tudo — ou, pelo menos, duvidar daquilo que o próprio Olavo duvida. Me pergunto (apenas de maneira retórica, pois conheço muito bem a resposta) se seria tratado com tanta benevolência alguém que levantasse, mesmo que brevemente, a menor dúvida a respeito de uma das inúmeras “verdades” que o professor, semana após semana, profere em seu curso online de filosofia.

Mas justiça seja feita: quando Olavo teceu suas benevolentes declarações a respeito da empreitada terraplanista, declarações essas que não se resumem à transcrita acima, a Internet já estava, desde há muito, repleta de brasileiros entusiastas do modelo de Rowbotham — ainda que o nome do criador da Terra Plana raramente passasse por seus lábios (situação que não mudou muito desde então).

Grosso modo, os canais terraplanistas do YouTube podem ser divididos em duas grandes categorias. Há canais que, pretendendo-se “científicos”, fazem profissão de não recorrer a argumentos religiosos para fundamentar suas teses — apesar de, obviamente, os youtubers a frente de tais canais não serem, eles mesmos, cientistas: fato que, aliás, enfatizam com orgulho, uma vez que isto garantiria sua “independência”, sua “isenção”. Por outro lado, há canais que, diversamente dos primeiros, parecem não ter qualquer preocupação em dar uma roupagem científica para sua opinião, fazendo referência direta, desde o início de seus arrazoados, a tal ou qual versículo das Escrituras que, pretensamente, asseguraria a planicidade de nosso lar. Não posso deixar de ressaltar, contudo, que esta divisão dos partidários da Terra Plana em dois grupos não deve ser levada a ferro e fogo, já que, eventualmente, os terraplanistas “científicos” acabam fazendo menção a passagens bíblicas que sacramentam suas hipóteses e, por seu turno, os terraplanistas “religiosos” acabam recorrendo a determinados experimentos que corroboram sua visão de mundo.

Vale ressaltar, também, que os partidários brasileiros da Terra Plana, talvez mais do que os de outra nacionalidade, manifestam, constantemente, a sensação de estarem sendo observados e perseguidos, seja pela Igreja Católica Apostólica Romana (segundo dizem alguns, a grande Meretriz do livro do Apocalipse!), seja pelos militantes de um plano centenário que pretende escamotear Deus (no qual Copérnico, Newton e Einstein exerceriam um papel central), seja pelos líderes da chamada Nova Ordem Mundial — às vezes identificados como comunistas, às vezes como grandes capitalistas, mas, em todos os casos, como soldados do próprio capeta.

Tal síndrome persecutória se fez bastante sensível no período preliminar à FLATCON BRASIL 2019, ao menos para mim que, além de ter ido ao “histórico” encontro, acompanhei boa parte das discussões que o antecederam – inclusive por meio do incansável grupo de WhatsApp oficial do evento. A intensa troca de mensagens observada no grupo ao longo dos meses que precederam a conferência — ocorrida em 10 de novembro – foi, toda ela, marcada por uma preocupação obsessiva com a segurança do evento que, tal como se propalava, corria sérios riscos de sofrer atentados terroristas — isto, claro, em decorrência de sua notável relevância para a história do conhecimento em nosso país. Tais mensagens desassossegadas só não eram mais numerosas (sobretudo nos derradeiros dias antes do evento) do que as que se dedicavam a louvar a grandeza do Criador e a inteligência de Olavo de Carvalho e de alguns terraplanistas mais destacados. Ademais, ao longo dos três ou quatro meses em que fui membro do referido grupo (que sempre se manteve com mais de duzentos participantes), as mensagens “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” pulularam numa constância nada desprezível.

Se é verdade que a FLATCON BRASIL 2019 não foi exatamente um sucesso — deixando vazios muitos assentos do teatro Liberdade (localizado na zona central da cidade de São Paulo) —, o próprio terraplanismo não estava fadado a sair tão cedo dos holofotes da mídia brasileira. Isto porque Dante Mantovani, então presidente da Fundação Nacional de Artes, postou, não muito após o evento, a seguinte declaração em uma de suas redes sociais: “Terrabolistas são ótimos em fazer piadinhas acerca da auto-evidente planicidade da superfície terrestre, mas são absolutamente incapazes de apresentar um único argumento ou prova da delirante esfericidade da Terra. O mais próximo que chegam de um argumento em favor da bola giratória são as imagens de computação gráfica feitas pela agência de desinformação e propaganda da Guerra Fria, a NASA, cujos próprios autores já vieram a público dizer que é tudo fake.”

Desculpe-me o leitor, mas não vou analisar as linhas de Dante Mantovani. Limito-me a frisar que, alguns dias depois da postagem, a declaração dantesca foi tirada do ar. Aliás, à guisa de conclusão, friso também que, ainda à época, o maestro veio a público por meio de seu canal no YouTube, não para verdadeiramente se retratar de suas infames teses, mas para rejeitar desajeitadamente a pecha de terraplanista e reiterar sua admiração por Olavo de Carvalho. Como já se disse, as ideias têm consequências — e muitas delas não são esquecidas antes de provocar alguns estragos.

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Aplainamento da inteligência?

Seria temerário se, depois de ter me dedicado apenas alguns meses ao estudo do assunto, pretendesse apresentar as causas profundas de um fenômeno tão inaudito e inexplorado quanto o terraplanismo. Não vou me esquivar, no entanto, de apontar algumas trilhas que, caso bem exploradas, talvez deem conta de explicá-lo devidamente.

Como aventado mais acima, creio que o nascimento da teoria da Terra Plana, com Samuel Birley Rowbotham, pode ser pensado no bojo de uma (contra)tendência histórica mais ampla, própria ao século XIX, que, em linhas gerais, redundou em variadas tentativas de “reencantamento” do mundo — da qual o terraplanismo seria, ao lado do “terraoquismo” e dos rebentos bem conhecidos da New Age, apenas mais uma manifestação.

Por outro lado, como também já adiantei, me parece inegável que o sucesso do terraplanismo é devedor de um fenômeno apontado por Lionel Trilling em A mente no mundo moderno, qual seja: o ressentimento do “homem médio” contemporâneo que, avesso à qualquer tipo de hierarquia, se nega a reconhecer o valor do conhecimento que não possui e que, por isso mesmo, considera como simples imposição de um grupo de homens ardilosos — homens estes que os terraplanistas brasileiros costumam chamar, com um sorriso propositalmente mal dissimulado nos lábios, de “doutores”.

Finalmente, no tocante à difusão do terraplanismo no Brasil, creio ser impossível compreendê-la sem colocarmos o “movimento” lado a lado com um fenômeno que com ele parece manter algumas afinidades: o bolsonarismo (termo cuja melhor definição reservo a colegas mais preparados para a tarefa). Ora, traço este paralelo não só porque o terraplanismo é visto com simpatia por duas pessoas ligadas, ideológica e factualmente, ao governo de Jair Bolsonaro — como o são, sem sombra de dúvidas, Olavo de Carvalho e Dante Mantovani —, mas por considerá-los ambos, terraplanismo e bolsonarismo, como manifestações do mesmo evento: a invasão vertical dos bárbaros. O bárbaro (nos termos de Mario Ferreira dos Santos) ou o homem-massa (tal como o chama Ortega y Gasset) é o tipo humano que, apesar de se beneficiar largamente das inúmeras conquistas de um longo e sinuoso processo civilizatório, desconhece e despreza tudo o que tornou possível sua própria existência e que, precisamente por isso, constitui um perigo para si mesmo e para os que estão à sua volta. Desconhecimento e desprezo por tudo aquilo que, ironicamente, o tornou possível: eis algo que, a meu ver, caracteriza tanto o terraplanista que se utiliza da Internet para maldizer a ciência moderna quanto o bolsonarista que, depois de eleger democraticamente seu presidente, vai às ruas para pedir o fim da democracia, isto é, para pedir o fim do direito de ir às ruas…

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Detalhe de Os Embaixadores, do jovem Holbein, 1533

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Bibliografia especializada em Terra Plana:

EGAN, J. Flat Earthers Around the Globe. eBook: Independently Published, 2018.

GARWOOD, C. Flat Earth: The History of an Infamous Idea. eBook: Thomas Dunne Books, 2008.

MCLACHLAN, S. Flat Earth: A History of Strange Tales, Bizarre Beliefs, and Conspitacy Theories about the Earth’s Surface. eBook: Charles River Editors, 2019.

RUSSELL, J. El Mito de la Tierra Plana. Barcelona: Stella Maris, 2014.

SHADEWALD R. Worlds of Their Own: A Brief History of Misguided Ideas: Creationism, Flat-Earthism, Energy Scams, and the Velikovsky Affair. Indiana: Xlibris, 2008.

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Bibliografia recomendada:

BETHELL, T. Manual Politicamente Incorreto da Ciência. Campinas: Vide Editorial, 2017, (notadamente o capítulo “Mitos duradouros”).

ORTEGA Y GASSET, J. A rebelião das massas. São Paulo: Vide Editorial, 2016.

SANTOS, M. A invasão vertical dos bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012.

TRILLING, L. A mente no mundo moderno. São Paulo: É Realizações, 2015.

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