por Rafael Baliardo
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É parcialmente atribuída às mortes, no século XIV, de Ibn Al-Jatib e Al-Yudami — os últimos grandes historiadores da Espanha muçulmana — uma longa e inconveniente lacuna na chamada historiografia árabe-granadina. O vácuo de documentação e fontes diretas sobre o assunto persistiria até o início do século XVII, quando o sábio A?mad ibn Mu?ammad al-Maqqar? (1577-1632) empregou esforços na pesquisa dos eventos desdobrados no antigo Emirado Nacérida de Granada, domínio que vigeu entre 1238 e 1492 e que correspondia às atuais províncias espanholas de Granada e Málaga e uma parte dos territórios de Córdoba, Sevilha e Xaém.
Natural de Tremecén, localidade situada no noroeste da Argélia, próximo à fronteira com o Marrocos, Al-Maqqar? foi um dos vultos fundamentais para o estudo não só dos reinos cristãos e da presença muçulmana na Península Ibérica, mas da trajetória dos judeus espanhóis até sua expulsão em 1492. O compêndio de sua lavra sobre a história da Andaluzia tornou-se uma referência longeva que orientou estudiosos do tema até meados século XX. A hebraísta e historiadora andaluza María Antonia Bel Bravo recupera, por exemplo, na obra Sefarad – Los Judios de España (Sílex, Madri, 2006), o arrevesado labirinto que pesquisadores tem de defrontar ao considerarem a singular experiência judaica na Península Ibérica, especialmente, fenômenos como o da diáspora dos judeus granadinos a partir de 1492 rumo à África muçulmana.
Embora a Península Ibérica — a Sefarad (nome que a tradição normativa religiosa reconhece na Bíblia hebraica, ou o Antigo Testamento, como correspondente à Ibéria) — compreenda uma matriz cultural invulgar, a presença dos judeus nos diferentes Estados peninsulares teve um traço multíplice. A Galícia, ou Galiza, válida como contraponto justamente por não ter sido ocupada majoritariamente pelos mouros, como o Sul, foi outro epicentro judaico dos mais importantes na região e, ao mesmo tempo, é incomparável em inúmeros aspectos com os demais domínios católicos. Como assinala José Ramón Ónega em Los Judios en el Reino de Galicia (Editora Nacional, Madri, 1981), a influência étnica dos judeus no Noroeste ibérico, a finisterre peninsular, está tão entranhada que suscita mesmo a contestação, em algum nível, do orgulhoso mito da herança céltica entre os galegos.
Mesmo do ponto de vista judaico, a experiência ibérica fomenta réplicas e objeções. Bastou apenas, em junho de 2007, o celebrado crítico literário Harold Bloom publicar uma resenha sobre a obra The Dream of the Poem: Hebrew Poetry from Muslim and Christian Spain (950-1492), no The New York Review of Books, que não tardaram a surgir discordâncias voltadas a algumas de suas suposições sobre o assunto. Ao enumerar, em seu texto, o que reconhecia como as sete grandes diásporas dos judeus pelo mundo (Babilônico-persa, Alexandria helênica, Itália renascentista, a Ibérica, no Leste europeu, do Império Austro-Húngaro/Alemanha e a norte-americana), Bloom levou um puxão de orelha, no próprio The New York Review of Books (Was Spain so Bad?, novembro de 2007), do veterano Gabriel Tortella, economista e historiador espanhol, pelas premissas supostamente “imprecisas e enganosas” nas quais o americano teria se amparado ao avaliar a extensão histórica do antissemitismo na Espanha.
E Portugal? E sobre os judeus sefaraditas (ou sefarditas dependendo da grafia) de origem lusitana? Com o édito de expulsão sancionado por D. Manuel I quatro anos depois dos espanhóis, em 1496, e o antecedente e posterior catálogo de desumanidades desencadeadas contra os judeus por séculos, a história da presença judaica naquele país gravita como um espectro amargo. A herança sefaradita não só deixou marcas duráveis em Portugal, como levou a influência e cultura lusitanas para lugares como os Países Baixos e a Turquia. Um dos presidentes do país, Jorge Sampaio (1996-2006), é notoriamente de origem sefaradita, com a linhagem matrilinear remontando a judeus migrados do Marrocos para os Açores há mais de 200 anos.
Portugal, assim como a Espanha, aprovou recentemente legislação para estender o direito de requerer cidadania a estrangeiros que consigam comprovar que descendem de judeus expulsos do país em virtude das práticas do Santo Ofício ocorridas há séculos. No caso espanhol, a esmiuçada burocracia e demais exigências tornam a prerrogativa quase pro forme, dado a empreitada genealógica necessária para se levantar a documentação. Mais flexíveis, os portugueses têm concedido cidadania a estrangeiros que fazem incursões à Torre do Tombo, o arquivo central do governo com acervo remontando à Idade Média, para estabelecer liames que corroborem ou deem suporte documental à papelada e narrativas familiares. É o caso de brasileiros que descendem de judeus migrados de lugares como a Turquia ou Grécia, cuja cultura familiar remonta a sefaraditas de origem lusitana, em alguns casos com termos em línguas ladina e portuguesa incorporados por avós ou bisavós ao léxico afetivo e familiar mesmo antes de terem ido viver no Brasil.
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Amataldo la luzica / Si se echará (Apagada a vela / Ele dormirá)
Arrancados da Terra é a obra mais recente do jornalista cearense Lira Neto, que se tornou autor de biografias e relatos históricos fundamentados em um denso empenho de pesquisa, como a trilogia sobre o presidente Getúlio Vargas. Lira Neto, dessa vez, aplicou seu distinto talento para apresentar um relato eclético e plurivalente envolvendo diversos personagens e passado em diferentes países e circunstâncias históricas. A empreitada, que lhe ocupou por anos e nasceu de um projeto embrionário sobre o conde neerlandês Maurício de Nassau, explora para o leitor a história dos judeus sefaraditas de origem portuguesa que viveram uma diáspora triangular. Perseguidos em Portugal sob a ameaça da conversão forçada, tortura, morte e desterro, criaram uma próspera comunidade em Amsterdã e, de lá, fundaram a primeira congregação e sinagoga das Américas, em Pernambuco, durante a ocupação neerlandesa, desdobrada entre 1630 e 1654. Com a reconquista do Nordeste brasileiro pelo Império português, parte desses judeus teria migrado para outro entreposto comercial da Companhia das Índias Ocidentais, Nova Amsterdã, na futura ilha de Manhattan. Lá fundariam a primeira comunidade judaica na América do Norte, a partir de um episódio seminal cercado por uma aura mítica e marcado por lacunas documentais, mas que acabou incorporado pelos norte-americanos, especialmente os nova-iorquinos, em sua narrativa de construção heroica dos Estados Unidos. O “triangular” aqui é a analogia com o ponto de chegada, sempre uma nova Jerusalém de ocasião assente sobre os rumos temporais da era colonial, que, ao fim, tornar-se-á, em algum momento, mais um ponto de partida.
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A obra, que acaba se revelando um interessante exercício de estilo, adota a mesma estrutura de outros livros de Lira Neto — um texto introdutório explorando um aspecto particular que acaba por ilustrar o tema de toda a obra, seguido pelo esforço de síntese de uma profusão de dados por meio do tratamento literário da narrativa. No caso do primeiro volume de Getúlio, Lira Neto formulou o prólogo com a chegada, em tom épico, mas farsesco, dos hidroaviões italianos à Baía de Guanabara, em janeiro de 1931. Ou, ainda, recorreu a um fio condutor no primeiro capítulo, calcado em um incidente ocorrido com Getúlio Vargas na infância, quando ele quebra acidentalmente um quadro com o retrato de Júlio de Castilhos, na casa da fazenda Itu. Getúlio se esconde no alto de um umbuzeiro pelo resto do dia, por toda a noite e durante um pedaço da manhã seguinte, levando os pais ao desespero e anulando assim o que parecia um inevitável castigo físico. O autor relaciona o evento com a tolerância de Vargas para ambiguidade e sua capacidade, já adulto, de não se posicionar até que a crise pareça encaminhada.
Em Uma história do samba, o primeiro volume de um projeto ainda inacabado, o prólogo desdobra-se a partir do encontro de Villa-Lobos com Zé Espinguela, como semente da ideia audaciosa de se reviver a tradição dos cordões carnavalescos no Rio, eco da empresa de se construir um apresto de política cultural pelo Estado Novo. Já em Arrancados da Terra, o fragmento introdutório se ocupa de descrições detalhadas da abundante fauna e flora da ilha de Manhattan e o contraste entre o ambiente natural conhecido pelos judeus pioneiros e a exacerbação urbana que se sucedeu.
A passagem contrapõe-se ao epílogo: o desembarque, sob tonalidades lendárias, de vinte e três judeus — homens, mulheres e crianças desterrados do Recife — no porto de Nova Amsterdã, precária colônia neerlandesa situada na ilha vendida (provável, mas não comprovadamente) pelos índios canarsee à Companhia das Índias Ocidentais. De lá, voltamos ao ponto de origem da narrativa, as atrocidades impostas aos judeus e cristãos-novos no contexto discricional dos autos de crimes contra a fé na Portugal ainda sob os ecos da Idade Média e da Contrarreforma. O mérito dessa primeira parte está no enfoque não ostensivo, mas evidente, na relação entre o formalismo penal da burocracia da Inquisição e a tenacidade do criptojudaísmo dos marranos, termo injurioso de origens incertas que qualifica os cristãos-novos que mantinham clandestinamente a fé judaica, mesmo forçados à conversão pública ao cristianismo.
A menção ao instrumento da delação premiada, para além de contrapontos com a atualidade, deixa isso bastante claro. Cônjuges se autoincriminando e filhos entregando os pais sob o suplício da tortura física extremada, mas também em troca de indulgências e abrandamento das penas pelos carrascos. Para além do inegável sadismo, a tortura era manualizada nos inquéritos do Santo Ofício, com o objetivo de esgotar os réus mais resistentes que, depois de negarem repetidas vezes os crimes de professar o judaísmo em segredo, eram levados, por fim, ao desespero da dor física, confessando deslizes como o de guardar o sábado, jejuar em datas-chave ou ainda ser capaz de balbuciar alguma benção ou oração em hebraico. A “teimosia” do torturado não só era antecipada pelos manuais dos inquisidores, como a obstinação e paciência do carrasco consideradas virtudes a serem aperfeiçoadas com estudo e prática.
Eis o ponto a se considerar como o mais relevante da reconstrução apresentada por Lira Neto na parte inicial de sua obra. Apesar de sustentada pelo arbítrio, a Inquisição não prescindia totalmente do formalismo legal. O réu tinha a prerrogativa de convocar testemunhas favoráveis e também a franquia da interposição protocolar de recursos — contraditas —, o que não representava muita coisa. Mesmo depois de encerrado o processo do auto de fé, o cidadão seguia assediado por uma burocracia opressora e redundante. Além de mutilados, tomados de sequelas físicas e de arruinados financeiramente, os cristãos-novos e os marranos tinham de lidar com transtornos psíquicos e enfermidades provocadas pelo pesadelo que lhes era imposto. Uma vez livres, eram também obrigados a trajar o sambenito, marca da vergonha, o que os levava a ser hostilizados em público.
Nesse contexto, a personagem destacada pelo autor é o vendedor de pregos judeu Gaspar Rodrigues Nunes, que, depois de ter a vida e a família despedaçadas pela Inquisição, reaparece em Amsterdã sob o nome de Joseph ben Israel. É louvável o empenho do autor em recompor a escassa documentação relacionada à personagem. Apesar de Gaspar Rodrigues ser emblemático para o sentido do livro, discordo aqui de comentários repetidos na imprensa de que ele é a personagem mais significativa de toda a obra.
A versão de Lira Neto para o rabino Menasseh ben Israel, filho de Gaspar Rodrigues Nunes, é o molde traslado e mais completo de Arrancados da Terra, se não historicamente, pelo menos no plano da retórica do autor. Na literatura rabínica da era moderna, Menasseh ben Israel é conhecido pelos seus esforços, em um primeiro momento, de conciliar passagens explicitamente discordantes do texto bíblico e, posteriormente, por se tornar uma efígie no âmbito da mística judaica, ao pretender conformar a ortodoxia rabínica com preceitos de caráter cristão, o que lhe trouxe inúmeras dores de cabeça e instabilidade ao longo da trajetória como editor, erudito e figura proeminente da comunidade sefaradita em Amsterdã.
Menasseh ben Israel cultivou relações com o estadista Hugo Grotius (pai do Direito internacional) e o pintor Rembrandt. Foi ainda um dos primeiros tutores do filósofo Benedito de Espinosa e manteve correspondência com a rainha Cristina, da Suécia. Nada de se estranhar para o contexto da renascença dos Países Baixos, cultura em ascensão paralelamente à decadência do Império português. Portugal, o reino que deu o pontapé para a era do expansionismo europeu, nunca mais se recuperaria do desaparecimento de Dom Sebastião nas areias de Alcácer-Quibir, fato cardeal na psicologia dos portugueses. Depois da crise sucessória que repercutiu no vexame de se submeterem à União Ibérica, os lusitanos viram o império se converter em um país de aldeões, vivendo sob a promessa arquetípica de restaurar a grandeza de outras eras.
A Holanda de Menasseh, uma das sete províncias unidas dos Países Baixos no esforço de secessão contra o monarca Filipe III da Espanha, era o Estado calvinista, cosmopolita e multicultural que estabeleceu, de forma quase exótica, mas não desinteressada, o exercício estratégico e politicamente controlado da liberdade de credo. Amsterdã era uma metrópole asseada, próspera, liberal nos costumes e sem guetos ou judiarias. Sob essa aparente vanguarda, eclodia, evidentemente, o embate entre as linhas ortodoxa e arminiana dos clérigos calvinistas, a engenharia política para o financiamento da Companhia das Índias Ocidentais e, no ambiente judaico, as tensões entre os sefaraditas neerlandeses e os recém-chegados cristãos-novos, reinseridos na cultura amputada. Havia ainda o estranhamento permanente entre a classe mercantil judaica e os calvinistas mais severos, que tentavam estender o corpo de normas hostis aos judeus e limitar aquelas que mantinham as prerrogativas destes.
O Menasseh ben Israel recomposto por Lira Neto parece, contudo, mais próximo do mundo fragmentado herdado do exílio do pai. A citar, o contexto familiar inseguro e a instabilidade social e econômica, embora o autor não se prive de recuperar os episódios em que a personagem galgue posições na hierarquia dos sefaraditas de Amsterdã, ascenda socialmente e que ilustrem sua evolução intelectual. Menasseh é ainda a única figura central de Arrancados da Terra que não sai em exílio, desde que, ainda criança, chega com a família de sobreviventes da Inquisição aos Países Baixos. Sim, ele expande suas atividades comerciais, interessado no açúcar brasileiro, torna-se patrono e pioneiro do que seria a comunidade moderna de judeus na Inglaterra, ao estreitar laços intelectuais e editoriais na Grã Bretanha, e vive sob a expectativa de ir viver no Brasil, frustrado com as desavenças intelectuais entre seus pares, sobretudo com o cabalista Isaac Aboab da Fonseca, seu grande adversário e quem acaba migrando para o Recife e sendo investido como o rabino da Kahal Zur Israel, primeira congregação e sinagoga fundada no Novo Mundo, em 1636.
Porém, jamais deixa Amsterdã. Isola-se progressivamente da intelligentsia sefaradita e abraça o misticismo ao preconizar a estranha crença de que o paradeiro de algumas das dez tribos perdidas de Israel poderia se situar em algum ponto da vastidão da floresta amazônica. Sua obra mais contundente a percutir tais concepções é “Esperança de Israel “, em que especula sobre a tese de que o retorno do Messias, mashiah, depende da dispersão total dos judeus pelo mundo. Ou seja, torna-se paradoxalmente um proselitista da diáspora sem deixar Amsterdã. Lira Neto assinala a ideia de que “Esperança de Israel” possa ter feito eco ao milenarismo não-sebastianista do Padre Antonio Vieira em “Esperança de Portugal”. Na melhor tradição diplomática do jesuíta português, o próprio Menasseh dedicou a edição latina de “Esperança de Israel” ao Parlamento britânico, em 1650, como esforço em apoiar a causa de se estabelecer um assentamento de judeus na Inglaterra, já que estes estavam banidos daquele país insular desde 1290.
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Sueño vos soñavax / Y vo lo soltaria (O sonho que sonhaste? / Direi o que significa)
A arriscada diplomacia dos Estados independentes dos Países Baixos era naturalmente transposta para as colônias ultramarinas conquistadas à bala pela Companhia das Índias Ocidentais. Não foi diferente com as capitanias açucareiras do Brasil. Quando se extingue o armistício entre os espanhóis e os neerlandeses, cresce a pressão dos últimos sobre as possessões da Espanha no Caribe e no Atlântico Sul. Este é um período intermediário da história. Portugal, nação de ponta da era colonial, cai desprovida de soberania diante da União Ibérica. Os espanhóis lutam para manter a condição de maior potência do mundo, e os Estados Gerais dos Países Baixos estão prestes a suplantá-los. Nesse interim, Inglaterra e França, que iriam virar o jogo mais adiante, são, por sua vez, ainda forças menores, mas não desprezíveis entre as nações expansionistas.
A pesquisa de Lira Neto não se obsequia de referir a base política que sustenta a tolerância dos neerlandeses com os judeus dos Países Baixos e, mais tarde, com os colonos brasileiros insatisfeitos com o jugo espanhol no Brasil. Um dos esteios da estratégia para se tomar as capitanias brasileiras do controle da União Ibérica foi justo a garantia de liberdade de culto estendida da Metrópole. A tarefa de Arrancados da Terra não é inédita ao se voltar para a temática da história dos sefaraditas de origem lusitana em Pernambuco. Entre uma vasta bibliografia, cabe citar uma obra mais recente, De Recife para Manhattan – Os Judeus na Formação de Nova York (Planeta, 2018), de Daniela Levy, pesquisadora associada ao grupo de Anita Novinsky na Universidade de São Paulo. Embora menos cuidadosa do que o trabalho do autor cearense, a obra de 2018 recupera os estatutos que regiam não só o templo e a congregação de Zur Israel, no Recife, mas a sinagoga da Cidade Maurícia, como também apresenta um breve, mas elucidativo relato dos primórdios da comunidade sefaradita em Nova York, ponto em que Lira Neto abandona sua narrativa biográfica, deixando para o leitor, acertadamente, uma aura incompleta de recomeço de ciclo histórico.
Os judeus luso-neerlandeses tentaram ancorar, mais uma vez, sua busca pela terra prometida no projeto civilizatório que a Companhia das Índias Ocidentais ergueu na confluência entre o Capibaribe e o Beberibe, diante do Atlântico. Na costa brasileira, tentaram repetir, entre os diques e canais em derredor dos arrecifes, a “pátria de anfíbios” da metrópole na Europa, nas palavras de Antonio Vieira, como recupera Lira Neto. Afinal, em relação aos demais compatriotas, os neerlandeses judeus tinham uma vantagem linguística. O português não era a língua franca, mas o idioma do enclave, mantido em alguns dos ritos, na vida comunitária e no contexto afetivo e familiar em Amsterdã. Algo cabal para os negócios e a nova vida na costa do Nordeste.
Para além do galarim da engenharia neerlandesa, desdenhosa da simplicidade da arquitetura colonial lusitana aplicada com pragmatismo àquele entreposto açucareiro, mais uma vez o inclemente destino do jogo colonial abateu-se sobre a empreitada. A ruína financeira sobreveio com o fim dos gastos militares no novo armistício com a União Ibérica; a restauração da Coroa portuguesa em 1640-41 deu esperança aos colonos luso-brasileiros que viviam sob o governo de Maurício de Nassau, e a euforia estampada nos gastos perdulários e na ambição de explorar o açúcar não pôde evitar o colapso burocrático, uma epidemia de inadimplência na economia local, a fome, a doença e, por fim, a reconquista do território pelos portugueses.
O relato biográfico encerra especulando sobre o destino dos judeus sefaraditas que tiveram de abandonar o Recife, notadamente a notícia escassa do destino do navio Valk, que deixou o Brasil em fevereiro de 1654 e teria desaparecido no mar das Caraíbas em função de ventos fortes. O que segue esbarra na documentação exígua e em registros controversos. Atacados por piratas, resgatados por uma fragata com bandeira francesa e detidos na Jamaica, território então sob domínio espanhol, por agentes do Santo Ofício, vinte e três pessoas entre o total de passageiros teriam alterado os planos de regressar à Europa e resolveram contratar os serviços de um outro navio, o francês Sainte Catherine, para levá-los a um entreposto neerlandês ao norte, a Nova Amsterdã, na futura Nova York.
Uma vez lá, esses vinte e três pioneiros teriam estabelecido a primeira comunidade judaica na América do Norte. Curiosamente, Nova York tornou-se o principal núcleo Ashkenazi no mundo, após o desmantelamento da Europa na Segunda Guerra. De tal forma, o modelo de judeu contemporâneo tornou-se assim a imagem do judeu norte-americano com origens no Leste europeu, seja nos estereótipos culturais, na fonética dos sobrenomes e mesmo na língua, o iídiche, mais conhecido do que o ladino. Não deixa de carregar certa ironia, portanto, o fato de a história do judaísmo nos EUA ter começado com um pequeno grupo de neerlandeses Sefarad.
Finalmente, Lira Neto trata em seu epílogo das incertezas que rondam o episódio quase mítico e da dificuldade de corroborá-lo com fontes primárias. É relatado que os vinte e três viajantes quase não puderam desembarcar, porque o governador calvinista de Nova Amsterdã, Peter Stuyvesant, com sua perna de pau e têmpera de protestante, não queria mais maltrapilhos infestando uma colônia já reduzida a um povoado precário e insalubre. Hoje, rodovias e autoestradas nos estados de Nova York e Nova Jersey levam o nome de Peter Stuyvesant, para o desconforto de algumas comunidades e entidades judaicas na região. É relatada também a história de que os quase lendários vinte e três viajantes não tinham recursos para pagar pela viagem, e alguns deles foram responsabilizados, já em Nova Amsterdã, pelo calote, sendo então presos e se vendo com um caminho infindável de provações na nova terra.
O autor cita um pronunciamento do presidente Barack Obama que se refere ao marco temporal da chegada de 1654 como evidência de que o episódio é dado por certo nos EUA. Antes disso, contudo, o relato dos viajantes chegados do Brasil já era tomado por narrativa histórica pelos norte-americanos. Em 2004, foram celebrados com alarde os 350 anos de presença judaica nos Estados Unidos, com base no dia em setembro de 1654 que os vinte e três judeus sefaraditas egressos do Recife teriam desembarcado então na Nova Amsterdã.
Os americanos cultivam o hábito de traçar genealogias de navios de imigrantes desde o Mayflower, a embarcação que trouxe os puritanos originais para Massachusetts em 1620. A história do desembarque de 1654 está inscrita hoje nessa mesma tradição. A rede PBS, em 2008, transmitiu com sucesso de audiência um documentário intitulado “Os judeus americanos”, dirigido e produzido pelo renomado cineasta David Grubin, que narra os 350 anos de história dos judeus em terras norte-americanas. Além do documentário iniciar com o desembarque de 1654, são ouvidos, no filme, descendentes de judeus sefaraditas pioneiros, como David J. Nathan e seu avô, Edgar J. Nathan III, neto e filho respectivamente de Edgar, J. Nathan (1891-1965), proeminente político da cidade que foi procurador-geral de Nova York e subprefeito do distrito de Manhattan. Os Nathan têm como ancestral Abraham de Lucena, sefaradita egresso da Europa que chegou aos EUA numa segunda leva de judeus, nesse caso, amplamente documentada.
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Y la pasión me mata / Muchigua mi dolor (E a paixão me mata / Intensifica minha dor)
Desde a fundação no sul da ilha de Manhattan até ser transferida em definitivo para a sede atual (o edifício neoclássico localizado no Upper West Side, em frente ao Central Park), Shearith Israel trocou de endereço cinco vezes. A sinagoga mais antiga dos EUA ainda funcionando no mesmo local desde a construção é também de origem sefaradita e foi concluída em 1763, no estado de Rhode Island: a sinagoga Touro. Assim foi chamada por causa do seu idealizador, Isaac Touro, e é notória por dois outros motivos, além do fato de os ritos ocorrerem entre as mesmas paredes há 257 anos. A arquitetura exterior simples, a fachada sem indicações de ser um templo religioso, contrasta com o interior, pensado para repetir o estilo das sinagogas sefaraditas de Amsterdã, tal qual a vida clandestina de um marrano. A outra razão é a visita de George Washington, ocorrida em agosto de 1790, quando o primeiro presidente dos EUA, respondendo às boas-vindas dos congregados, afirmou que, na América, não era suficiente apenas tolerar a presença dos judeus, porque eles, com a Independência do país, eram cidadãos como quaisquer outros, dispondo das mesmas garantias. Ironicamente, Isaac Touro, neerlandês de origem lusitana, era lealista da colônia britânica e terminou seus dias exilado na Jamaica.
Lira Neto ocupa-se, ao final, de ponderar en passant sobre a ideia de que, apesar da comunidade judaica do Recife ter sido descontinuada, há quem reconheça que alguns hábitos dos judeus acabaram diluídos na cultura popular nordestina. A tese é defendida principalmente pela pesquisadora Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo, e ganhou alguma notoriedade após o lançamento do documentário A Estrela Oculta do Sertão, de 2005, realizado pela fotógrafa Elaine Eiger e a jornalista Luize Valente. Os críticos de tal premissa apontam a falta de estudos substanciais sobre o tema e identificam exageros que decorrem de ideias semelhantes, como atribuir a qualquer sobrenome português que tenha árvores ou animais na grafia a ascendência de cristãos-novos.
Biógrafos que aprenderam a dominar o ofício lançam mão de um certo virtuosismo, delineado na melhor tradição do gênero. Mais especificamente, trata-se do estilo de uma didática esclarecida que não se exime do exercício de redispor a linguagem ao enunciar algo que o leitor talvez conheça de antemão, mas que a retórica reparada permite que se aprenda novamente. Para tanto, o biógrafo tem de partir de um tropo próximo ao leitor. A conclusão talvez seja atrevida demais para o próprio autor de Arrancados da Terra admitir. Dada a falta de compasso e tradição a encarrilar a literatura contemporânea brasileira – que subsiste de sobressaltos imaturos e novidades que tendem a desparecer, talvez se possa reconhecer certo mérito estético e alguma ambição literária patente na prosa de Lira Neto, que falta aos nossos ficcionistas.
Os comentários sobre a obra recém lançada dão conta da atualidade do relato, aludindo à “crônica de intolerância” que aflige o homem. Em dada altitude, a leitura é admissível. Porém, a identidade desenraizada do cristão-novo aponta para uma interpretação menos nivelada. O cristão-novo não é mais judeu e não se transmuta totalmente no cristão. Tampouco, incorpora integralmente o nacional do país em que vive deslocado. A pátria perdida não é deste mundo. O padre Antonio Vieira, que ganha uma versão estreme em Arrancados da Terra, preconizava um Quinto Império, que cabia a Portugal encarnar. O Quinto Império da Terra seria o primeiro reino não temporal, mas os meios de Vieira, ao buscá-lo, são todos materiais: a diplomacia e a retórica. Fernando Pessoa compreendeu melhor do que ninguém tal ironia, apesar de não abrir mão, ele mesmo, de sua confiança esotérica no nacionalismo lusitano.
A existência de Menasseh ben Israel também traslada o divórcio entre o reino temporal e a promessa consignada pela Aliança. É a mesma tensão espelhada pela melancolia do sebastianismo português. Evidente, a intolerância é uma chaga moral no sentido de desumanizar e destruir, mas suas causas não podem ser compreendidas apenas moralmente. Existe o foro apartado da realidade e o elo rompido que exila o espírito. “Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez”, lamenta Fernando Pessoa em “O Infante”. O clamor poderia ser compartilhado pela condição da promessa da nação ausente, jamais alcançada, expressa na ironia bíblica de a Terra Santa permanecer embargada pela própria Aliança que a anuncia.
Desfez-se a Jerusalém do Norte, instalada sobre os diques de Amsterdã. Caiu a Jerusalém atlântica, no Brasil, reduzida a um pesadelo tropical ao modo de “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, e de “Os Passos Perdidos”, de Alejo Carpentier. E a terra da promissão anglo-saxã, concebida pelos puritanos para todos, não importando a procedência, é o abrigo sob a condição de pátria postiça fretada pelo anfitrião protestante. Porém, sobretudo, cabe o lamento pelo lar olvidado, a Sefarad, o torrão acre, a terra do coração partido. Resta, assim, cantar o solo estrangeiro e o reconhecimento doloroso de que se exilar de si mesmo é o único itinerário para a morada prometida, um pouco como na antiga canção em ladino Arvolés Yoran Por Luvias:
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Arvolés yoran por luvias
I muntanyas por ayres.
Ansí yoran los mis ojos
Por ti, kerid’ amante.
Torno i digo ke va ser de mí.
En tierras ajenas yo me vo morir.
Blanka sos, blanka vistes,
Blanka la tu figura,
Blankas flores kaen de ti,
De la tu ermozura.
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Árvores choram pelas chuvas
E as montanhas, pelos ventos.
Assim choram meus olhos
Choram por você, minha amada.
Regresso e digo, o que será de mim?
Morrerei numa terra estrangeira.
Tens a pele clara, te vestes de branco,
Tua figura é alva,
Flores brancas caem,
Pela tua beleza.
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Nota do autor:
Com o fim de facilitar a leitura, o texto está dividido por subtítulos. Nestes, foram utilizados versos de canções de origem medieval compostas em língua ladina. Embora não se refiram de forma explícita ao assunto do ensaio, guardam relação com os temas do exílio, da diáspora e da história dos judeus de origem ibérica. Na ordem em que foram utilizados, os versos pertencem às seguintes canções: Abrid, Mi Galanica; El Rey de Francia; La Rosa Enflorece.
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Arrancados da Terra – Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York
Lira Neto
Companhia das Letras, 424 páginas
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