Política e Arte se encontram em Turim: Epitácio Pessoa e Pedro Américo na Capital do Piemonte

Os laços ítalo-brasileiros são tão antigos quanto relevantes. Um ensaio do Prof. Marcílio Franca sobre Epitácio Pessoa e Pedro Américo na Capital do Piemonte; sobre o encontro brasileiro entre política e arte em Turim.

por Marcilio Franca

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Há cerca de um século, a Conferência de Paz de Paris e o Tratado de Versalhes selaram o fim da Primeira Guerra Mundial. Presidia a delegação brasileira naqueles eventos o então senador Epitácio Pessoa.

Epitácio passou quatro meses em Paris, tempo suficiente para enfrentar e vencer questões diplomáticas importantes mas não para assinar o tratado de paz, que acabou subscrito, em 28 de junho de 1919, por Pandiá Calógeras, Raul Fernandes e Rodrigo Octávio.

Pessoa chegou a Paris no final de janeiro. No dia 25 de fevereiro, recebeu um telegrama informando que a convenção do seu partido o havia indicado à sucessão de Rodrigues Alves, vítima de outra pandemia, a gripe espanhola. A 13 de abril realizaram-se as eleições presidenciais para o triênio 1919-1922, em que, mesmo à distância, Epitácio venceu Rui Barbosa. O chefe da delegação brasileira passou a ser, então, o presidente eleito do país – o que logo despertou a atenção dos demais negociadores e reforçou o nosso poder de barganha.

Antes de regressar para a posse, no Rio de Janeiro, decidiu dar início à diplomacia presidencial que o caracterizou, atendendo alguns convites de visitas a chefes de Estados. O primeiro-ministro e chefe da delegação italiana, Vittorio Emanuele Orlando, que, depois da II Guerra Mundial, ainda viria a ser o presidente da assembleia constituinte italiana da Carta de 1947, convidou Epitácio para uma visita oficial a Roma. A passagem do futuro presidente brasileiro pela Cidade Eterna ocorreu em maio de 1919, com grande êxito bilateral e larga cobertura jornalística de revistas importantes como La Domenica del Corriere e La Tribuna Ilustrata.

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Roma convida seus cidadãos para saudar o presidente eleito do Brasil

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O quotidiano La Stampa, em sua edição de 19 de maio de 1919, registrou que, dois dias antes, saindo de trem de Paris e a caminho de Roma, onde iria encontrar o rei Vittorio Emanuele III, o presidente eleito do Brasil fez uma rápida mas notável parada na estação ferroviária de Porta Nuova, no coração de Turim. Epitácio adorava a capital do Piemonte, cidade que conhecia desde uma longa viagem à Europa, em 1897. Segundo conta em seu diário daquele “Grand Tour” europeu, Turim era “a mais bonita cidade que vi na Itália: as suas ruas se cortam em ângulo reto, as construções são elegantes, em geral de arcadas sustentadas por pilares ou colunas”.

Quando voltou à cidade em 1919, acompanhado da comitiva ítalo-brasileira, Pessoa não teve chance sequer de sair da estação central, onde foi homenageado. Na sua primeira viagem a Turim, porém, passeou bastante, conheceu bem as ruas, edifícios históricos e monumentos e ficou hospedado no velho Hotel Central, na então Via delle Finanze (atual Via Cesare Battisti), esquina com a grande Via Roma. Os prédios, parques e praças turinenses que Pessoa menciona com entusiasmo no seu caderno de viagem de 1897 ainda estão todos por lá.

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O velho Hotel Central de Turim, um clássico do hébergement piemontês

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Na verdade, laços ítalo-brasileiros são tão antigos quanto relevantes. Ainda na capitania hereditária de Pernambuco do final do século XVI, epicentro da economia açucareira nordestina, o nobre florentino Filippo di Giovanni Cavalcanti, possivelmente em fuga dos Medici, torna-se um poderoso senhor de engenho depois de casar-se com Catarina de Albuquerque, filha do governador Jerônimo de Albuquerque e da índia Maria do Espírito Santo Arcoverde, dando origem ao clã dos Cavalcanti de Albuquerque, de longa tradição jurídica e política nacional.

É impossível, além do mais, contar a história do Brasil na primeira metade do século XIX sem mencionar personagens italianos como Giuseppe Garibaldi, Luigi Rossetti e Giuseppe Stefano Grondona, destacados membros da cena política carioca e gaúcha. Já na segunda parte do século XIX, o fato de a imperatriz Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, esposa de D. Pedro II, ter nascido em Nápoles e ser filha do Rei Francisco I, intensificou ainda mais as relações ítalo-brasileiras, que já eram herdeiras de amistosas tradições ítalo-portuguesas.

Teresa Cristina foi imperatriz por mais de cinquenta anos, de 1843 até 1889, quando faleceu na cidade do Porto, Portugal, pouco depois da proclamação da República e da sua chegada ao exílio. Durante o II Império, a coroa brasileira tinha sempre muitos visitantes italianos, não apenas parentes nobres e homens de Estado mas também artistas, cientistas e intelectuais, como os pintores Edoardo de Martino, Nicolò Agostino Facchinetti, Alessandro Cicarelli Manzoni e Angelo Agostini, que celebrizaram paisagens nacionais.

O imperador Pedro II viajou inúmeras vezes à Itália e enviou eminentes artistas brasileiros à península italiana, como o consagrado pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo, de modo a intensificar um soft power tropical. São famosos os registros fotográficos das expedições de Pedro II a sítios arqueológicos italianos como Pompeia, por exemplo.

Em 1861, o Brasil reconheceu o Reino da Itália unificado e, em 1870, ainda sob o império de Pedro II, dá-se início oficial à imigração italiana no país. O fluxo cultural entre Brasil e Itália era tamanho, ainda em meados do século XIX, que livrarias italianas, como a icônica e centenária Paravia, de Turim, anunciavam em jornais brasileiros! O próprio Pedro Américo, residindo no Palazzo Michelozzi, em Florença, assinava com frequência uma coluna (“Cartas de um Pintor”) na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, com comentários a respeito da cena política e cultural italianas.

Pedro Américo, que havia sido colega de bancada de Epitácio Pessoa na Assembleia Constituinte de 1890/1891, era outro apaixonado pela Itália. Aliás, o inverso também era verdadeiro: a Itália adorava Pedro Américo! Sua presença e seus feitos eram noticiados com frequência na imprensa italiana.

Era uma manhã quente de segunda-feira, 9 de agosto de 1875, quando, por exemplo, o jornal Gazzetta Piemontese, de Turim, chegou aos seus leitores com uma boa notícia. A capa destacava que, dias antes, um menino franzino desenhava em frente aos Uffizi, em Florença, ao ser interpelado por Pedro Américo, o grande pintor brasileiro que, há um ano, morava a algumas quadras do museu criado pelos Medici.

A notícia dava conta de que, a caminho do convento de Santissima Annunziata, onde mantinha um ateliê para pintar a gigantesca “A Batalha do Avaí”, encomendada por Pedro II, Américo deparou-se com um garoto pobre que desenhava com desenvoltura temas de agrado popular, em troca da generosidade dos passantes. Américo notou o talento do jovem e perguntou onde ele estudava. O menino, descrito pela Gazzetta como de olhos tristes, rosto magro e empalidecido, informou que lhe faltavam condições para ir à escola. Antônio Bardi tinha treze anos. À resposta encabulada do garoto seguiu-se a oferta de Pedro Américo: pagaria seus estudos a partir de então. Sim!

Há alguns meses, morando na Bota, tive a chance de trocar umas palavras com o bisneto daquele menino da notícia. Ugo Bardi, Professor da Universidade de Florença, contou-me que Pedro Américo fez do seu bisavô aprendiz e, depois, o ajudou a entrar na concorrida Accademia Fiorentina. Graças ao padrinho brasileiro, rompeu a vida de pobreza que já durava algumas gerações em seu lar.

Antônio Bardi pintou por quase trinta anos, até que uma doença na vista, por volta dos 45 anos, forçou-o a parar. Veio a falecer casado e com filhos, em 1924.

O que nem a família Bardi nem a Gazzetta Piemontese sabiam é que Pedro Américo revivia com aquele gesto o seu próprio destino. Menino prodígio na pequenina Areia, interior discreto da Paraíba, Américo não tinha sequer dez anos quando, em 1852, foi descoberto pelo naturalista francês Louis Jacques Brunet. Começava ali a profissão que o levou a ganhar o mundo.

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A primeira versão de O Voto de Heloísa, também de 1880, de Pedro Américo, 150 x 104 cm

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Cinco anos e muitas obras depois daquela notícia a respeito do menino, a reputação e o prestígio de Pedro Américo só aumentavam nas cortes de Pedro II do Brasil e de Umberto I de Itália. Basta notar que a Gazzeta Ufficiale del Regno d’Italia, na edição de 06 de outubro de 1880, abriu espaço para noticiar a presença, na tradicional Festa de São Martinho, em Brescia, do “pintor brasileiro Dom Pedro Américo, que […] ofereceu retratar a Batalha de São Martinho em uma grande tela e doá-la para decorar a torre histórica”. Três anos antes, Pedro Américo havia concluído, no seu ateliê em Florença, a épica “Batalha do Avaí” com estrondoso sucesso (tanto que a Galleria degli Uffizi lhe pediu um autorretrato). A torre histórica de São Martinho, porém, só seria inaugurada em 15 de outubro de 1893, e não há registros de que Pedro Américo tenha concluído a oferta. A Batalha de São Martinho ficou apenas em estágio de esboço.[*]

Todavia, naquele mesmo ano de 1880 em que visitou a Festa de São Martinho, Pedro Américo, então com 37 anos, pintou, sob encomenda do governo italiano, o “Gênio da Monarquia” (também conhecido como “Gênio d’Itália” ou “Anjo Sabóia”), um enorme óleo sobre tela de 231 x 144cm, a ser pendurado no Palácio Real de Turim, primeira capital da Itália unificada, após o Risorgimento.

A pintura encarnava o gosto acadêmico e nacionalista do recém consolidado Estado-Nação italiano, proclamado em 18 de fevereiro de 1861 pelo rei Vittorio Emanuele II. No quadro, Pedro Américo retratou uma figura feminina alada, de olhos e cabelos claros, vestida com uma túnica branca muito leve e delicada, que flutuava sobre uma vista de Roma em que se distinguiam as silhuetas da Basílica de São Pedro e do Castelo Sant’Ângelo. Sobre a fronte da imagem, a “Stella d’Italia”, estrela branca, de cinco pontas que, há muitos séculos, está ligada à tradição iconográfica peninsular. Em sua cintura, a mulher portava uma larga faixa dourada com o brasão da Casa de Saboia. Na mão direita, sustenta uma coroa de louros e uma faixa com os nomes dos reis Vittorio Emanuele II e Umberto I, seu filho. Com a mão esquerda, segura a Tricolor, a bandeira italiana.

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No Palácio Real de Turim: O Gênio da Monarquia (também conhecido como Gênio d’Itália ou Anjo Saboia), de Pedro Américo, 231 x 144cm, 1880.

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Em meio às longas prateleiras do Arquivo de Estado, em Turim, é possível encontrar os registros da velha Direção Provincial da Real Casa de Saboia a respeito dos muitos objetos de arte existentes nas Residências Reais do Piemonte. Pesquisando os papéis da Casa Real italiana, descobri que Pedro Américo pintou o “Gênio da Monarquia” para o rei Umberto I por 2.500 liras italianas, o equivalente a cerca de 675 gramas de ouro à época ou R$239.000,00 hoje. Numa matemática grosseira, reducionista e despudorada, poder-se-ia provocar os puristas dizendo que cada centímetro quadrado dos 33.264 cm² do “Gênio da Monarquia” custaria, a preço de hoje, R$7/cm²….

Na noite da quarta-feira, 14 de agosto de 2019, a tradicional Cia. Paulista de Leilões não conseguiu bater o martelo para “O Voto de Heloisa (2)”, outra jóia do paraibano Pedro Américo, pintada a óleo em 1896, atendendo a uma encomenda privada. A pintura, que mede 54 x 38 cm e remete à trágica história de amor entre Abelardo e Heloísa, foi realizada 16 anos depois da célebre versão inicial da obra, uma gigantesca tela que se encontra hoje no Museu Nacional de Belas Artes, no centro do Rio de Janeiro. O quadro retrata o momento em que a francesa Heloísa de Argenteuil presta seus votos religiosos apesar de apaixonada por Abelardo, que não a pode desposar. O lance inicial do leilão mal sucedido era de R$80.000,00, ou seja, quase R$39/cm² de tela. De cinco a seis vezes mais que os R$7/cm² do “Gênio da Monarquia”…

Caro? Confesso que não sei! Há métodos muito mais adequados para essa avaliação. Só sei, contudo, que há certas coisas que têm apenas preço; outras, isso sim, têm valor!

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O inventário de objetos de arte da Casa de Saboia: Quanto custou o Pedro Américo?

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Nota:

[*] Coube a Giuseppe Vizzotto Alberti  decorar a torre histórica de São Martinho com um enorme mural de batalha. Em primeiro plano, chama atenção o rosto de um soldado que guarda grande semelhança com o autorretrato de Pedro Américo em “A Batalha de Avaí” (Aqui, a pintura de Alberti; aqui, um detalhe da pintura de Américo).

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