por Gunter Axt
Numa das obras mais influentes da nossa era, escrita entre 1819 e 1830, o general prussiano Carl von Clausewitz, genuinamente empenhado em modernizar os exércitos de emergentes estados nacionais, que haviam sucumbido ao rolo compressor de Napoleão Bonaparte, lascou o célebre aforismo: a guerra seria a continuação da política com a entremistura de outros meios. O mais importante historiador militar inglês, Sir John Keegan, rebateu a tese em 1993, mostrando, por exemplo, que, para os Astecas, a guerra tinha por objetivo a captura de vítimas para alimentar a rotina de sacrifícios humanos aos deuses – nada tendo, portanto, a ver com a política. A própria Primeira Guerra Mundial, estalada em 1914, conflito que pôs fim à Belle Époque europeia, encarnaria, antes da continuação da política, a sua mais completa subtração: foi um morticínio em massa, impulsionado pelo confronto de vaidades de governantes obtusos e arrogantes, entre os quais se instaurou um ruidoso diálogo de surdos. Bárbara Tuchman, agraciada com o prêmio Pulitzer em 1963 com o estupendo “Canhões de Agosto”, de fato mostra como a engrenagem de extermínio foi sendo posta em marcha pelos diversos países envolvidos ao mesmo tempo em que todos os canais de comunicação iam se toldando, se fechando, por absoluta miopia, forjando uma escalada infrene, de orgulho e preconceito, no seio da qual de repente todos se tornaram reféns.
Como teria explodido o barril de pólvora, provocando a maior surto de irracionalidade da história europeia, quando se estava no auge da “pax vitoriana” e o futuro parecia a todos alvissareiro e recheado de promessas de progresso? No monumental “O cultivo do ódio”, o historiador Peter Gay enfrenta a questão, perscrutando valores culturais que teriam sobrevivido nas águas profundas das mentalidades, escondidos por instituições cujo verniz refulgia civilização e equilíbrio nas superfícies. E o descompasso entre esses termos não era borrado. Quando o estopim de Sarajevo foi atiçado, até mesmo o magnífico e sensível Nobel de Literatura Thomas Mann, sem a menor noção do banho de sangue e da brutal destruição que estavam por vir, exclamou: “a guerra traz purificação, libertação e uma enorme esperança”!
Na mesma época em que Clausewitz redigia seu libelo, o filósofo da Ilustração Benjamin Constant sublinhava que o fazer da política havia mudado. Apesar das notáveis instituições clássicas, a liberdade dos gregos consistiria no direito de questionar e remover governantes, condenar ou exilar cidadãos, ou decidir sobre pilhar e escravizar vizinhos. Na prática, eles viviam em estado de beligerância. Nesse contexto, o indivíduo era tutorado e submetido por organismos repressores, da infância à idade adulta. Uma sociedade estratificada e lastreada em princípios de honra constrangia mobilidades e reprimia individualidades, mesmo no ambiente democrático ateniense, ambos requisitos que se tornaram valorizados pelo liberalismo.
Até o século XVIII, magistrados e governantes estavam a serviço do Estado e as facções políticas a serviço delas mesmas. Fazer oposição significava intriga, conspiração e insurreição. Isto é, a política era de fato uma guerra. A representação desses combates fica evidente nas peças de Shakespeare, por exemplo, nas quais campos de batalha pareciam extensões de dramas palacianos, e vice-versa. Enquanto reis eram tocados por uma aura de divindade, rivais políticos se digladiavam como inimigos figadais. Na França, Richelieu, depois de ascender ao poder em 1620, exilou e executou opositores, de modo persecutório e inclemente. Conselheiros decaídos não apenas obstavam suas carreiras, como perdiam bens e até a própria vida. Erros eram corrigidos com vinganças, não raro tornadas espetáculos públicos. Em 1719, logo depois da morte do Rei Carlos XII da Suécia, seu influente e impopular ministro, o Barão Görtz, foi julgado e decapitado. Mas um historiador da época achou que se tratava de um “homicídio jurídico”, revelando novas sensibilidades. Nessa quadra, na França e na Inglaterra já se aceitava que ministros desgraçados simplesmente se exilassem em uma casa de campo.
A retórica belicosa impregna a fala dos políticos desde os primórdios. Péricles, na oração fúnebre de 430 a.C., que saudava a memória dos soldados abatidos, reproduzida por Tucídides, em História da Guerra do Peloponeso, exaltou o modelo ateniense demonizando o espartano. A dinâmica do “nós contra os outros” seguiu ao longo dos séculos galvanizando massas. Mas a partir das revoluções liberais – inglesa, francesa e americana – os políticos começaram a desenvolver instituições que permitiram a sua sobrevivência nas disputas pelo poder, ou seja, mesmo os derrotados poderiam um dia retornar à arena e ao brilho da ribalta. A oposição foi considerada legítima, como forma de manutenção do sistema, e a liberdade de imprensa e de associação foi afirmando-se como garantia. A agressão foi sublimada e contida.
David Hume e Edmund Burke celebraram na Inglaterra a moderação da eloquência acrimoniosa das facções, cuja transmutação em partidos estáveis enalteceram. O tolerável, assim, termina onde começa a blindagem contra as proscrições. Mas a degeneração desse equilíbrio em estreiteza e intolerância seguiu como um espectro ameaçador no horizonte. Menos otimistas, James Madison e Alexander Hamilton, pais fundadores da democracia americana, acharam que a fricção exacerbada entre facções se constituía em pior ameaça à liberdade do que o gigantismo do estado.
De certa forma, desenhava-se um paradoxo. Para o historiador vitoriano Lord Acton, “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Donde se aceita que o estado super-crescido seria uma ameaça à liberdade, ao passo que o torvelinho de facções em cenário democrático seria naturalmente preferível. Porém, na linha de Hamilton e Madison, Alexis de Tocqueville entendeu que a dinâmica conflitiva das facções, numa democracia, produzindo torrentes de panfletos desairosos, pasquins sibilinos, hostilidades públicas e paranoias coletivas, estaria engendrando um novo monstro: a religião da política. Esse era de fato o clima nos Estados Unidos de George Washington a James Madison.
Assim, o estado laico, uma das principais conquistas da Ilustração, poderia ele próprio estar fomentando novos fanatismos. Outro não fora, aliás, o destino da Revolução Francesa, que começou libertando o povo da superstição e declarando devoção à liberdade, mas terminou semeando o terror, reduzindo adversários a dissidentes traidores, passíveis de erradicação física e moral. Assim, se o duelo entre facções revigora o sistema democrático, ao ser exacerbado, pode dissolvê-lo, corroendo a liberdade. Desde então, o desafio das democracias tem sido encontrar o ponto de equilíbrio.
Nos Estados Unidos, George Washington se via como árbitro das paixões. A tal ponto que recusou o terceiro mandato e transferiu pacificamente a faixa presidencial para John Adams, instaurando uma rotina inédita. O partidarismo de seus sucessores foi temperado pela Lei dos Direitos de 1791, garantindo a livre troca de ideias de forma pétrea. A partir daí, o mecanismo de freios e contrapesos foi se sofisticando, de modo a refrear superindividualidades, ou maiorias frenéticas.
Ainda assim, a América teve seus surtos de raiva, como sob o macartismo, nos anos 1950, quando grassou uma onda de repressão sem precedentes a tudo que ressumbrava esquerda, disseminando-se um corrosivo clima de medo: milhares de funcionários públicos, educadores e artistas foram atingidos. A irracionalidade deletéria daqueles tempos foi eternizada em metáfora arrebatadora na peça de teatro As Bruxas de Salem, de Arthur Miller, que resgata o clima de histeria coletiva capaz de tornar a aplicação do Direito Penal persecutória, delirante e parcial. Nesse interregno, o direto de se opor e de se expressar foi solapado, corroendo a ordem cívica decente.
No limite, as facções descobriram o cesarismo, um tipo de populismo autoritário e demagógico. Uma patologia da soberania popular que infectou a Europa no século XIX e a América Latina no século XX. Napoleão I e Napoleão III foram seus típicos representantes, pais fundadores. Sua ideologia inconsistente na superfície influenciou décadas, colmatando entre seus seguidores uma fraternidade apaixonada, combinada com submissão cega ao líder. Um vínculo amoroso duplo que, como compreendeu Sigmund Freud, sugere contornos de uma democracia erótica: “o fiel seguidor abre mão de toda a agressão contra seus semelhantes e, desnecessário dizer, contra seu líder, em troca de uma intimidade emocional satisfatória e da permissão de dirigir impulsos agressivos contra aqueles que rejeitam ou são excluídos de sua feliz família política”, como registra Peter Gay. Enfim, quem não integrava a fraternidade demo-erótica, apanhava logo a alcunha de faccioso, pois, facciosos eram sempre os outros, os dissidentes, os chatos que aporrinhavam com suas críticas, ou, numa palavra, a oposição.
A patologia já parecia ruim o suficiente, mas a Europa do século XX conseguiu se superar na invenção de modelos escabrosos. E assim surgiu o fascismo, que pode ser compreendido ao mesmo tempo como um fenômeno datado, circunscrito à Itália de Mussolini, e uma prática política universalizada, como propôs o historiador Renzo de Felice, biógrafo do Duce. George Orwell reclamou, com razão, em 1944, que a banalização do termo ao nível do cotidiano político contribuía para esvaziar o seu significado.
Primo-irmão do cesarismo populista, o fascismo como método de alcançar o poder pode se manifestar à esquerda ou à direita. Não deixa de ser filho, ainda que bastardo, do Iluminismo, pois investe na retórica revolucionária e modernizante. Surge em momentos de ansiedade, de perda de referenciais simbólicos, de crise econômica, de descrença nas instituições, de medo, violência e desemprego. Emula uma ideia salvacionista e messiânica, comportada por um líder capaz de açular o carisma erótico entre as massas.
Com exceção da Espanha, que viveu uma sangrenta guerra civil, o fascismo no século XX chegou ao poder pelo voto e com o apoio de liberais, que acreditavam na utilidade do apelo popular do líder carismático para conter ameaças, em geral rugindo à esquerda, e que, além disso, enfeixavam a certeza de que os mecanismos de pesos e contrapesos do sistema constitucional democrático conteriam arroubos autoritários. Foi assim na Itália de 1921, na Alemanha de 1933, arruinadas pela Guerra de 1914; na Áustria, que perdera um império; e na Venezuela de 1992, donde se projetou o histriônico Hugo Chavez. Foi assim em inúmeros outros países. Para esses liberais, o tiro saiu pela culatra. Pois quando os espaços começaram a ser ocupados pela ousadia autoritária típica do fascismo, capotaram, apalermados e inertes.
O fascismo histórico não aboliu a propriedade privada, mas foi fortemente estatista e intervencionista. Além disso, foi nacionalista e imperialista. Foi, ainda, corporativista, isto é, investiu contra o modelo de representação liberal por excelência e privilegiou o diálogo com as corporações ao invés dos indivíduos ou das classes. Foi autoritário, controlou meios de comunicação de massa e, apesar de forte discurso profilático contra a corrupção, produziu sua própria corrupção, ao se ver sem peias, vencendo os controles institucionais.
O nazismo e o stalinismo, na Alemanha e na União Soviética, um à direita e o outro à esquerda, são fenômenos ainda mais radicais, por terem constituído estados totalitários, isto é, onde se registra o apagamento completo da liberdade e o estado passa a ter controle sobre o indivíduo ao nível do cotidiano, em cada pequeno detalhe de sua vida e consciência. Além disso, ambos instauraram verdadeiras indústrias da morte, máquinas de extermínio, de onde emergiram horrores inigualáveis como o Holocausto. Ao mesmo tempo em que executa a morte em escala industrial, o totalitarismo intenta acabar com todo o conflito, pois apaga a política e promete controlar o passado e o futuro.
É por isso que, no pós-guerra, o constitucionalismo procurou autonomizar o direito da moral. Isto é, nem tudo poderia ser considerado direito, e uma vez institucionalizada pela constituição, a moral não poderia mais corrigir o direito e seus rumos. É como se o direito usufruísse de um espaço de autonomia, uma garantia aos cantos de sereias e aos clamores populistas. Foi pensando em forjar um antídoto prévio aos horrores da Segunda Guerra que as constituições democráticas se tornaram garantidoras e contra-majoritárias, ou seja, uma blindagem jurídica contra o frenesi das maiorias e em favor da proteção às minorias, sejam elas raciais, religiosas, ou políticas. Nesse contexto, o Poder Judiciário reveste-se de enorme projeção, pois é ele quem cuida para que sejam observados os meios que justificam os fins. É ele quem cuida para que as minorias não sejam ofendidas, para que o não dito seja verbalizado, para que a fronteira do tolerável não seja empurrada de modo a permitir a institucionalização, ainda que simbólica, da violência.
Para Jason Stanley, que atualiza o conceito para o século XXI, o fascismo, como técnica para chegar ao poder, parte de uma narrativa que vitimiza um setor da sociedade (que se sente então prejudicado pelo socialismo, pelo feminismo, pelo liberalismo, pela globalização, etc.) e idealiza um passado dourado, que, de fato, nunca existiu. Isso permite construir o Outro, culpado pela erosão do passado edênico, com traços detestáveis. Nessa narrativa simplificada e que frequentemente borra a fronteira entre verdade e mentira, o preconceito intensificado e o rechaço a todo intelectualismo não cooptado torna-se combustível para o ódio. E, na esteira do que propôs Freud, Stanley percebe os movimentos neofascistas carregados de símbolos atados à hombridade, exaltando uma masculinidade bruta, atávica.
Com efeito, para a historiadora Camille Paglia parte do relativo sucesso do Estado Islâmico, um dos movimentos mais extremistas da atualidade, em cooptar adeptos se explica em função de uma crise da masculinidade: o jihadismo vende a “ideia de que ali, finalmente, homens podem ser homens e ter aventuras como homens costumavam ter”. Para Camille, “a ideologia do jihad emerge numa era de vácuo da masculinidade, graças ao sucesso do mundo das carreiras”, pois “antes, havia muitas oportunidades de aventuras para homens jovens”, mas “hoje, suas vidas são como as de prisioneiros: presos nos escritórios, sem oportunidade para ação física e aventura”. A senha já tinha sido cantada, como nota John Keegan, com o desastre da Primeira Guerra Mundial, quando os jovens se alistaram voluntariamente como combatentes, aos borbotões. Buscavam libertar-se da aldeia, da família, viver intensamente aventuras que poderiam mais tarde ser contadas. Mas uma guerra que seria de movimento, tornou-se estática em trincheiras pestilentas. A simples introdução da metralhadora colocou em xeque toda a cultura militar que ainda deitava raízes no século XIX.
Muitas mulheres, inclusive, não se sentem ofendidas e discriminadas nesse meio, porque a promessa de restauração de uma sociedade baseada em princípios de honra lhes traz conforto. Nesse diapasão, elas não enxergam misoginia, mas um cavalheirismo provedor que estaria se contrapondo à decadência efeminada promovida ou tolerada pelas elites democráticas e liberais.
As pessoas têm uma ideia de Justiça que habita mentalidades profundas e pulsa com uma moral independente ao que proclama o direito positivo nas suas superfícies. É uma ideia que entrelaça respeito à propriedade, emulação de honras e hierarquias e tentativa de controle do desejo feminino. No Brasil, até os anos 1980, era praticamente impossível condenar no tribunal do júri um réu confesso do assassinato da esposa supostamente adúltera. A comunidade achava que se nesses casos o marido não matasse a esposa estaria se desonrando, se ridicularizando. Essa ideia de Justiça ancestral pode ser abafada pelas jovens instituições liberais. Mas há momentos de ansiedade coletiva que permitem seu transbordar e há interlocutores carismáticos que sabem como trazer esses sentimentos e crenças à tona.
Assim, a ideia de política como guerra paira em geral no imaginário coletivo como um imantador difuso para discursos com vistas a sensibilizar as massas. No âmbito democrático, seu efeito não vai muito além ao de produzir aquilo que o psicanalista Contardo Calligaris chama de férias da subjetividade, isto é, momentos de pertencimento grupal fugazes e emocionais, que recuperam de modo efêmero identidades coletivas que já não mais se sustentam, mas trazem conforto a um indivíduo esmagado sob o peso das incertezas. É como se o velho patriotismo que levou à hecatombe da Primeira Guerra Mundial pudesse ser redivivo por instantes e de forma inofensiva numa torcida de futebol. Partidos políticos, é claro, tentam ocasionalmente se beneficiar dessa estratégia psicossocial. No populismo, isso tende a ser rotinizado. Ainda assim, é um simulacro.
Mas quando a patologia da soberania popular se agrava, é porque a aposta na polarização se tornou sistemática e o sistema cívico começa a perder qualidade, pois, com oposições anatematizadas, é evidente que o debate público em torno de ideias e projetos se esgarça. E, como sempre sublinhou Robert Dahl, democracia é o sistema do debate público, no debate público, para o debate público. Qualificá-la é aprimorar o debate, jamais constrangê-lo.
Nesses casos, a noção de guerra na política não vem sozinha. Ela traz junto toda uma dimensão idílica de uma sociedade baseada em princípios de honra cujos valores seriam algo espartanos, como aqueles retratados em Plutarco, emulados em Xenofonte e popularizados em filmes como “300”, estrelado por Gerard Butler e Rodrigo Santoro: castrenses, frugais, encharcados de espírito de missão, hierárquicos e autoritários, por oposição ao efeminado modelo ateniense, com sua arte, sua filosofia e sua democracia humanistas. É como se a oração fúnebre de Péricles virasse ao avesso e o Outro fosse o incensado. Mas, nesse modelo, a guerra acaba sendo o fim da política, exatamente como aconteceu em 1914. Se a fricção entre facções belicistas é estressante e ruim para a liberdade, como advertiram os pais fundadores da democracia americana, o predomínio de uma facção polarizadora pode significar o fim dela, como acontece no fascismo.