Política, história e repetição

"O calor político e a preocupação com o cotidiano podem fazer com que se busque na história algum tipo de explicação, talvez até como um conforto psicológico; no entanto, isso pode levar a equívocos e superficialidades."

por Caio César Vioto de Andrade

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A história não existe. Talvez essa frase possa soar demasiadamente superficial, até mesmo leviana, mas vamos tentar explicá-la. A história é o conjunto de fatos vivenciados pela humanidade, a experiência do homem no tempo. Os acontecimentos e suas relações, no entanto, não possuem sentido por si mesmos. Estão mais para um rabisco ininteligível do que para uma linha reta. É a História (e o historiador), enquanto área do conhecimento, a partir de teorias e métodos, que dá inteligibilidade ao passado, recortando suas partes. Da mesma forma, as ferramentas utilizadas para a abordagem do passado se modificam ao longo do tempo, redimensionando os modos de compreensão dos fatos pretéritos.

Apesar do passado sempre ter interessado e fascinado a humanidade, e as reflexões mais sistemáticas sobre história datarem, no Ocidente, da Grécia Antiga, com Heródoto e Tucídides, a História se constitui enquanto disciplina no século XIX, no contexto de consolidação dos Estados nacionais – embora o Estado-nação, como conhecemos, datar do século XVI, foi no Oitocentos que ocorreram os processos de independência, como na América Latina, e a unificação de países como Alemanha e Itália. Nota-se, portanto, que a construção da disciplina esteve intimamente ligada a processos políticos e ao interesse pelos fatos políticos. Assim, naturalmente, a História viria a ter um uso instrumental e pragmático em seus primórdios enquanto área do conhecimento moderno.

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A Guerra do Peloponeso (Chronicle/Alamy)

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O processo da construção da História começa por volta do século XVIII, no âmbito do Iluminismo e das revoluções que dariam origem à Era Contemporânea. De acordo com o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), os iluministas franceses transformaram a escatologia cristã, a ideia de que a existência e a história humana possuem um sentido intrínseco, a vida eterna, na salvação ou na danação, após o Juízo Final, em Filosofia da História, ou seja, a humanidade, pensada de maneira universal e abstrata, estaria destinada ao “progresso”, ao “esclarecimento”, sob a égide da razão. O Juízo Final daria lugar ao Tribunal da Razão ou Tribunal da História.

Apesar do caráter antirreligioso e anticlerical do Iluminismo francês (diferente dos Iluminismos britânico e americano), o binômio salvação/condenação foi apropriado, redimensionado e secularizado por ele. Assim como para o cristianismo a história humana seria uma marcha inexorável em direção à eternidade, dependendo do homem, com seu livre-arbítrio, ficar do lado “certo” ou “errado”, para o Iluminismo francês a humanidade seria conduzida por um sentido intrínseco que culminaria numa Era da Razão e, naturalmente, os que ficassem no caminho seriam atropelados por essa força inabalável da própria história.

Todo esse arcabouço filosófico serviria de base para a Revolução Francesa, o acontecimento político fundamental da História Contemporânea e da modernidade ocidental, que irradiaria sua influência, em diferentes graus, para todo o mundo. É nesse caldo filosófico, cultural e político que a História se estabelece enquanto disciplina autônoma e específica, com a pretensão de ser Ciência. Essa pretensão foi colocada em prática de maneira bastante ambiciosa. Os primeiros historiadores de ofício pretendiam não só reconstituir os fatos tais como aconteceram, acreditando numa verdade histórica, mas dar significado a eles. Assim, a ideia romana de história magistra vitae (mestra da vida), de certa forma resgatada pelo Renascimento e por Maquiavel, ganha status científico. Desse modo, a História serviria para narrar os fatos do passado, principalmente os nacionais, exaltando os grandes personagens e acontecimentos, e para guiar as ações do futuro. Daí a noção, até hoje muito difundida no senso-comum, de que a história “ensina” e serve para “evitar a repetição dos erros do passado”.

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La Liberté guidant le peuple, Delacroix, 1830

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Essa concepção de História (enquanto disciplina) e de história (enquanto desenrolar dos acontecimentos), influenciaria duas grandes escolas de pensamento surgidas no XIX: o positivismo, herdeiro direto do Iluminismo francês, e o marxismo, híbrido do Iluminismo francês, da filosofia alemã e da Escola Clássica de Economia. Tais escolas, que não se encerravam na História, mas constituíam abordagens sociológicas, filosóficas, econômicas e políticas, influenciaram todo o debate político e das Ciências Humanas dos períodos seguintes (tanto que estamos aqui em 2020 falando delas). O positivismo comteano aprofundou e especificou a noção iluminista de história, dividindo-a em fases, estabelecendo métodos para seu tratamento e, como não poderia deixar de ser, vislumbrando um destino para ela, que seria uma Era científico-positiva, regida pela razão e pela ciência, onde não haveria espaço para superstições, discordâncias e opiniões, apenas para a Verdade. O marxismo, por sua vez, tinha na luta de classes o motor da história, e na sociedade sem classes, sem a exploração do homem pelo homem, sua finalidade inexorável.

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Josef Stalin (Reprodução: DW)

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Na década de 1930, porém, essa hegemonia vai ser questionada, mais uma vez na França, pela Escola dos Annales. A partir de autores como Marc Bloch e Lucien Febvre, a disciplina História passa a considerar a história não mais como portadora de um sentido intrínseco e de uma abordagem universal, mas como uma série de objetos, que podem ser recortados de diferentes maneiras, a partir de perguntas específicas que o historiador faz ao passado. Assim, aquela pretensão ambiciosa do Iluminismo francês ficaria bem mais modesta. O historiador não é mais um reconstrutor do passado tal como ocorreu, muito menos um juiz da história, mas torna-se um investigador do passado, respondendo às questões que ele mesmo coloca. No entanto, o historiador partiria de questões do presente para interrogar o passado, de modo que o interesse pela Idade Média, por exemplo, que se confunde com esse processo de renovação da História enquanto disciplina, teria origem no contexto da Segunda Guerra Mundial, em que se pretendia entender a formação da Europa, suas identidades e conflitos, porém numa chave compreensiva, que buscava perceber regularidades, processos, mas não universalidades, tampouco fazer juízos de valor.

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Bloch e Febvre (Wikimedia Commons)

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Num segundo momento da Escola dos Annales, com Fernand Braudel, as temporalidades vão entrar em pauta. A história não será mais dividida rigidamente em fases, como no positivismo e no marxismo, mas será percebida em diferentes ritmos e durações. Daí surgem as noções, utilizadas até hoje pelos historiadores, de longa duração (estruturas), média duração (conjunturas) e curta duração (fatos). A História também se dividiria em esferas (política, econômica, cultural, social), as quais o historiador pode investigar a interpendência entre elas ou dar preferência a uma delas para analisar seu objeto de estudo. Partindo dessa influência, várias escolas de pensamento, teorias e métodos surgiriam ao longo do século XX. Todas, porém, procurando compreender partes do passado, e não a história latu sensu. Ao mesmo tempo, a história magistra vitae é abandonada, dada a variedade de possibilidades de abordagem dos fatos históricos e a impossibilidade de se estabelecer um único sentido a eles.

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Fernand Braudel (History Today)

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Dessa forma, a História não considera mais que a história pode dar “lições” ou se repete de ciclos em ciclos. A História é, justamente, o estudo das especificidades no tempo. No entanto, isso não descarta a existência de continuidades, de semelhanças entre diversos processos, principalmente quando se trata de um mesmo país. Diante disso, num cenário como o atual, em que se vive, no mundo, uma pandemia, e, no Brasil, um governo (para dizer o mínimo) instável, as comparações e possíveis “lições” da história são bastante limitadas. Entretanto, não são raros os paralelos da pandemia atual com a gripe espanhola ou mesmo com a peste negra, nem as equiparações entre o atual governo e a ditadura militar ou os governos da Nova República que passaram por processos de impeachment.

O calor político e a preocupação com o cotidiano podem fazer com que se busque na história algum tipo de explicação, talvez até como um conforto psicológico; no entanto, isso pode levar a equívocos e superficialidades. Somente num futuro, mais ou menos distante, será possível colocar esses fatos em perspectiva, combiná-los com conjunturas e estruturas e ver algum significado neles. Ou melhor, diferentes significados, uma vez que a história permite respostas diversas, dependendo do que o historiador interroga ao passado. Assim, o que existe não é uma história linear, plenamente inteligível e com um sentido intrínseco, mas uma disciplina, a História, que possibilita múltiplas compreensões dos fatos vividos pela humanidade.

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A Batalha de Grunwald, Matejko, 1878

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