Quem tem medo do globalismo?

O que é "marxismo cultural"? E "globalismo"? David Magalhães, professor de Relações Internacionais da FAAP e da PUC-SP, escreve sobre os conceitos que entram em pauta na nova diplomacia brasileira.

por David Magalhães

A escolha do Embaixador Ernesto Araújo para ser o chanceler do governo Bolsonaro produziu som e fúria em todo establishment midiático e acadêmico. Logo após o anúncio, curiosos para saber o que levou o presidente eleito a escolher um diplomata júnior para chefiar o Itamaraty, jornalistas e pesquisadores correram para decifrar os seus textos. Suas ideais foram publicadas em artigos, a maioria dos quais escritos para seu blog particular. No site, o futuro ministro se descreve como alguém que quer “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”, que “é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural.”

Católico e conservador, o futuro chanceler é mais um discipulo de Olavo de Carvalho. Como muitos dos admiradores de Olavo, Ernesto Araújo fez a peregrinação até a Virgínia, onde mora o autor de O imbecil coletivo, para se encontrar pessoalmente com seu mestre. Em maio deste ano, Olavo publicou em suas redes sociais um comentário elogioso sobre o artigo que Araújo escreveu para o periódico do Itamaraty em que defendia a política externa “ocidentalista” de Donald Trump. O texto causou boa impressão na equipe de Bolsonaro. Conforme declarou o filho do presidente eleito, o nome de Ernesto Araújo foi sugerido por Olavo e endossado por Filipe Martins, assessor de relações internacionais do PSL e também aluno de Carvalho.  

Foi Millôr Fernandes quem disse certa vez que as ideias, quando envelhecem nos EUA e na Europa, vêm se aposentar no Brasil. Complemento: quando elas chegam aqui, de andador e fralda geriátrica, são recebidas como se tivessem saído da maternidade. Com o tão alardeado “marxismo cultural” não foi diferente. Tema que fervilhava na direita norte-americana dos anos 80 e 90 do século passado, o “marxismo cultural” – e a indissociável “revolução gramsciana”—  passou a aparecer em artigos de imprensa de Olavo de Carvalho ao longo da década de 2000 no Brasil (para não falar sobre seu livro dedicado a Gramsci e a “revolução cultural”, que data dos anos 80). Depois de quase três décadas tratando do assunto, pode-se dizer que o não pequeno número de cidadãos engajados em denunciar o “gramscismo das esquerdas” no Brasil é produto de sua pregação. 

Nas palavras do futuro chanceler, o braço cultural do globalismo é o “marxismo cultural”. A tese, de caráter conspiratório, foi amplamente difundida em setores da direita americana por nomes como William Lind e Pat Buchanan, e encontrou eco no oscilante público de leitores de Carvalho das duas últimas décadas, aproximadamente. 

“Marxismo cultural”, o “esquema globalista” e o chanceler

A partir do final da década de 1990, o escritor “paleoconservador”, William S. Lind, publicou diversos textos em que descrevia a evolução de um movimento transnacional que chamou de “marxismo cultural”. Sua “teoria” – que vinha sendo cada vez mais debatida em alguns circuitos da direita americana – foi sintetizada na conferência que proferiu em 2000, denominada “Origens do Politicamente Correto”, na American University, em Washington D.C.  

O que conta William Lind é que após a Primeira Guerra Mundial, dois intelectuais marxistas – o italiano Antonio Gramsci e húngaro Georg Lukács – procuraram compreender por que razão a revolução socialista não se internacionalizou conforme previa Lenin. Para Gramsci e Lukács, a cultura ocidental e a religião cristã cegavam a classe trabalhadora e a para que a revolução proletária triunfasse seria necessário, antes, destruir “super-estrutura” ideológica do Ocidente. 

A nova estratégia do movimento revolucionário comunista, elaborada por Gramsci, preconizava que, ao invés de lutar pela revolução socialista, como ocorreu na Rússia, os marxistas no Ocidente deveriam “empreender uma longa marcha através das instituições” – escolas, imprensa, igrejas, universidades – todas as instituições que influenciavam a cultura.  

Quando, em 1919, Bela Kun instalou em Budapeste uma república de sovietes, Lukács foi designado vice-comissário do Povo para a Cultura e a Educação Popular. Defende Lind que o pensador húngaro teria instituído um programa de “terrorismo cultural” que tinha como um dos principais componentes introduzir a educação sexual nas escolas. A república socialista de Bela Kun durou apenas 4 meses. Em 1923, na Alemanha, Lukàcs participou da “Semana de Estudos Marxistas” organizada pelo jovem marxista e milionário alemão Felix Weil, que ficou fascinado com a abordagem cultural apresentada pelo pensador húngaro. 

Felix Weil funda, na Universidade de Frankfurt, o Instituto para Pesquisa Social, posteriormente conhecida por Escola de Frankfurt. Misturando pitadas da psicanalise freudiana com marxismo, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamin defendiam que existia um entrelaçamento entre repressão social, psíquica e sexual. Assim, acreditavam os frankfurtianos que uma consciência revolucionária poderia ser engendrada através da libertação psíquica e de atitudes culturais “mais esclarecidas”. 

Dois frankfurtianos são com mais frequência acusados por Lind de conspirar contra a cultura ocidental: Adorno e Marcuse. A abordagem de “cultura de massa” desenvolvida por Adorno teria provocado uma “perversão cultural” ao expor os fundamentos burgueses do que é geralmente percebido como beleza e qualidade.  Marcuse, por sua vez, em seu “Eros e Civilização” atacou frontalmente a ordem sexual enraizada no ocidente, acusando-a de patriarcal e heteronormativa. Suas ideias, defende Lind, tornaram-se precursoras da promiscuidade sexual e do hedonismo. Hoje não são poucos os antiglobalistas que acusam a obra de Marcuse de destruir as velhas estruturas de autoridade da família tradicional.  

A “new left” e todo movimento de contracultura dos anos 1960 e 1970 seriam herdeiros da Escola de Frankfurt. Mais ainda, os marxistas culturais teriam, seguindo a cartilha de Gramsci, ocupado todas a instituições culturais nos EUA, das universidades aos estúdios de Hollywood. Ocupando os “meios de pensamento” ao invés dos meios de produção, a nova esquerda estaria implementando seu projeto de destruição da cultura ocidental, ao fomentar o feminismo, o “gayzismo” (termo pejorativo para se referir às bandeiras LGBT+), o ambientalismo, o multiculturalismo, etc.   

Com a queda do muro de Berlim, segundo Lind, essa tese ganhou força em alguns setores do partido republicano, principalmente entre os paleoconservatives, que, na ausência do comunismo soviético, elegeram os novos inimigos a serem combatidos: acadêmicos, a grande mídia, ativistas de direitos humanos, ambientalistas, feministas, etc. 

No Brasil, essa abordagem do problema foi apresentada por Olavo de Carvalho em artigo intitulado “Do Marxismo Cultural”, publicado no jornal O Globo, em 2002.

E o globalismo? No discurso que fez à Assembleia Geral da ONU em setembro de 2018, Donald Trump declarou “o fim da ideologia globalista” e deu boas vindas à “doutrina do patriotismo”. Na defesa que faz do trumpismo, o futuro chanceler entende que o globalismo não é apenas uma ideologia, mas um esquema de dominação global que visa substituir as culturas tradicionais por uma moral secular, cosmopolita e esquerdista. A elite que controla o esquema globalista é composta por organismos internacionais como a ONU e a União Europeia, por ONGs internacionais e financiado por bilionários “esquerdistas” como o George Soros. Ernesto Araújo ainda acusa a China “maoísta” de ser um dos pilotos da ideologia globalista.

Para conter a sanha da expansão globalista, o novo chanceler defende que o Brasil deveria recuperar o desejo de grandeza, como nação cristã, ecoando o lema bolsonarista de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A presença do Brasil no mundo não deveria ser orientada pela adesão aos regimes internacionais ou pelo servilismo a uma ordem global baseada em regras. O Brasil, defende Araújo, não poder ser apenas “bom aluno do globalismo”. Na linha do populismo disseminado por Steve Bannon, há uma crença de que a política externa deve ser um bastião dos valores conservadores do povo contra o cosmopolitismo liberal das elites globalistas.

Claro está que o perfil de Araújo orna muito bem com figurino ideológico do governo eleito. Mas não há política externa que se alimente apenas de convicções. Há uma série de fatores, externos e internos, que moldam a projeção internacional do Brasil. Como observou Edmund Burke, o pedestre dia-a-dia da política costuma frustrar os ímpetos ideológicos.

Anti-globalismo e Política Externa Brasileira

Tendo sido promovido a ministro de primeira classe no começo de 2018, Ernesto Araújo não ocupou cargos no MRE que colocassem à prova sua capacidade de negociação. Nunca chefiou, por exemplo, uma embaixada no exterior. Por essa razão, como revelou Matias Spektor, professor da FGV, grupos dentro da equipe de Bolsonaro preferiam diplomatas liberais mais experientes, como Graça Lima, Rubens Barbosa ou o atual Secretário-Geral do Itamaraty, Marcos Galvão. 

Ao chanceler, é sabido, exige-se não apenas um amplo conhecimento das relações internacionais, mas também a capacidade de fazer política. Pela sua trajetória, o novo chanceler aparenta ser um intelectual de gabinete, um escolástico que cita Ésquilo e Heráclito em grego e tem apreço pelos cânones da cultura ocidental. Não se sabe, contudo, como se sairá com os ardilosos jogos de barganhas que frequentam mundo da política. 

Além disso, ao longo de sua história diplomática, o Brasil tem defendido o multilateralismo como princípio ordenador do funcionamento do sistema internacional. Trata-se de uma tradição da política externa brasileira que remonta nossa participação na Liga das Nações, no começo do século XX. A aposta no multilateralismo tem sido fundamentada, entre outras coisas, no reconhecimento das limitações do seu poder individual diante de um sistema fortemente hierarquizado. Mesmo durante governos militares, quando se praticou um soberanismo mais estreito com Costa e Silva, Médici e Geisel, o Brasil participou ativamente dos foros multilaterais, como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ou do G-77, a grande coalizão de países em desenvolvimento que teve origem na Assembleia Geral da ONU. Por essa razão, as críticas do novo chanceler às “normas” e aos “regimes internacionais” deve encontrar dura resistência dentro da Casa de Rio Branco.  Vale lembrar, também, que Ernesto Araújo irá chefiar um Ministério profundamente comprometido com valores “globalistas”, como o multiculturalismo, os direitos humanos e o meio-ambiente. Não será fácil a tarefa de convencer o Itamaraty a aderir ao trumpismo do chanceler, visto por alguns membros da equipe de Bolsonaro como um covil da “esquerda globalista”.

Além disso, as organizações internacionais não são dotadas de vida própria. Não há nada que elas possam fazer, sozinhas, contra a vontade do Estado. Quando começaram a surgir no Brasil as teses que colocavam a ONU no centro de uma conspiração globalista, o falecido Embaixador Meira Penna, um liberal smithiano muito respeitado pela direita brasileira, alertou que as Nações Unidas, como qualquer outra organização inter-governamental, não andava com pernas próprias, pois dependia dos Estados soberanos para funcionar. 

O que o futuro chefe da diplomacia brasileira chama de globalismo, correntes mais liberais dentro do Itamaraty chamam de interdependência.  Juracy Magalhães, chanceler do governo Castelo Branco, defendia uma ordem internacional baseada na interdependência entre os povos em substituição ao conceito de soberania nacional. Luiz Felipe Lampreia, chanceler do governo Fernando Henrique, propunha que o Brasil abandonasse a ideia de autonomia pela distância e se integrasse a uma era globalizada na qual a democracia política e a liberdade econômica eram referências fundamentais. 

Resta também questionar como o Embaixador Ernesto Araújo irá compatibilizar seu antiglobalismo com os interesses concretos do Brasil. Consideremos dois tópicos importantes que têm sido defendidos por Bolsonaro: as críticas à China e a aproximação com Israel. 

Como conciliar as preocupações em relação à “China maoísta” diante da importância que o gigante asiático desempenha na nossa vida econômica? Quase metade de tudo o que o Brasil exportou de commodities neste ano teve como destino o mercado chinês. E parte relevante do apoio a Bolsonaro vem da bancada ruralista, extremamente dependente das vendas para a China. O mesmo vale para o projeto liberal de Paulo Guedes. Herdeiro de Milton Friedman, o racionalismo econômico e cosmopolita de Guedes pode se chocar com o antiglobalismo do novo chanceler. Ademais, como levar a cabo o projeto de abertura econômica e privatizações prescindindo do abundante volume de capital chinês disponível no mercado internacional?

Outro tema caro ao ocidentalismo de Ernesto Araújo é a aproximação com Israel. Apoiador da integração do Brasil ao bloco judaico-cristão, a ideia de mudar a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém deve ganhar força com o novo chanceler. É pouco provável, contudo, que suas convicções se sobreponham aos interesses dos frigoríficos nacionais, como a BRF, que poderiam ser prejudicados com uma eventual retaliação dos países árabes. 

A mimetização da política externa trumpista ocorrerá apenas se o governo eleito desconsiderar os eloquentes dados da realidade, em particular a colossal assimetria de poder existente entre EUA e Brasil. As consequências de virar as costas para a ONU, enfrentar a China e mudar a embaixada para Jerusalém produziriam efeitos distintos para os dois países. Parodiando Ortega y Gasset, o chanceler é o chanceler e suas circunstâncias.

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