Renata Velloso
Uma peculiaridade sobre a situação política brasileira é que aparentemente mais gente conhece os 11 juízes do STF do que os 11 titulares da seleção de futebol – e conhece não só pelo nome, mas também pelo “estilo de jogo”. Isso é ainda mais assombroso em um ano Copa do Mundo. Não é assim nos EUA, onde os 9 juízes da Suprema Corte costumam ter comportamento discreto e seus votos não são transmitidos ao vivo pela TV ou pela internet.
Mesmo assim, uma juíza expandiu a sua influência para fora do campo jurídico e atingiu a cultura popular. Do alto dos seus 85 anos, a famigerada Ruth Bader Ginsburg, RBG para os fãs, viu a sua personalidade introvertida e suas ideias liberais serem cultuadas especialmente pelos mais jovens, os chamados millennials.
RBG, o filme que conta a vida da juíza, foi lançado dia 6 de maio nos EUA com enorme sucesso, especialmente considerando que se trata de um documentário. Com estreia inicialmente tímida, em apenas 34 salas de cinema, o filme tornou-se um fenômeno de rentabilidade: cerca de 16 mil dólares por sala, alcançando o segundo lugar no primeiro final de semana, atrás apenas do blockbuster Vingadores: Guerra Infinita, que arrecadou cerca de 25 mil por sala. O sucesso de bilheteria fez com que a Magnolia filmes expandisse a sua exibição para 150 salas no final de semana seguinte e 300 no posterior. RBG, assim como o papa, é pop.
Chamada já na abertura do filme de “bruxa do mal” pelos mais conservadores e de “super-heroína” pelos liberais, quase ninguém no país é indiferente a essa mulher de corpo franzino, 1,55m de altura, que não gosta de conversa fiada.
Sua vida, assim como sua carreira são notáveis. A segunda mulher a ser indicada para a Suprema Corte dos EUA construiu a sua carreira na justiça desde os primeiros dias obstinada por acabar, ou pelo menos diminuir, a discriminação contra as mulheres e outras minorias na sociedade americana e colocar em plena prática a 14a emenda à constituição dos EUA que afirma “todos são iguais perante a lei”.
Ela sofreu pessoalmente esse tipo de discriminação na sua carreira. Em um jantar oferecido às poucas alunas do curso de direito de Harvard do qual ela fazia parte, o diretor da faculdade perguntou a cada uma delas o que elas estavam fazendo ali ocupando um lugar que poderia ter sido de um homem. Depois de formada o problema não diminuiu, RBG teve seu currículo brilhante rejeitado por todos os grandes escritórios de advocacia onde foi procurar emprego. A justificativa era sempre a mesma: mulheres não faziam parte das equipes. Simples assim. A situação demorou a mudar e foi só na turma de 2017, da qual a sua neta Clara fez parte, que o número de mulheres da turma de direito de Harvard atingiu o mesmo dos homens.
Com dificuldade de conseguir emprego como advogada em um escritório, RBG foi para a academia e tornou-se uma das primeiras professoras de direito no país. Poucos anos depois, no início dos anos 70, foi uma das co-fundadoras do Women’s Rights Project (Projeto de Direito das Mulheres) dentro da ACLU (União das Liberdades Civis Americanas).
A partir daí, RBG começou a escolher os casos a dedo a fim de criar um arcabouço jurídico para colocar seu plano maquiavélico de igualdade entre as pessoas em prática. Defendeu uma militar que, ao contrário dos seus colegas homens, não recebia auxílio moradia, conseguiu que moças fossem aceitas em uma outra academia militar que até então era exclusiva para rapazes e até defendeu um pai viúvo que não tinha direito aos benefícios que uma mãe viúva teria para poder criar sozinho seu filho recém-nascido. Afinal, argumentou ela, a igualdade de direitos é boa para todos, não apenas para as mulheres. Dos 6 casos que arguiu perante a suprema corte dos EUA, ganhou 5.
Quando o democrata Jimmy Carter foi eleito à presidência dos EUA em 1977 ele logo reparou (não foi preciso muita perspicácia) que quase toda a equipe da administração federal se parecia com ele: eram homens, heterossexuais e brancos. Disposto a mudar isso e criar uma gestão mais representativa da sociedade, Carter convidou algumas mulheres para o departamento de justiça. RBG foi uma delas e a partir daí começou a fazer carreira como juíza federal.
A indicação para a suprema corte veio em 1993 com outro democrata, Bill Clinton e foi orquestrada pelo marido de RBG, o também advogado Martin Ginsburg.
Além de ser uma história sobre justiça e feminismo, RBG é também um filme de amor. Se é clichê dizer que atrás de todo grande homem há uma grande mulher, aqui vale o oposto. Houve um grande homem atrás da juíza. Martin, que chegou a ser considerado o melhor advogado tributarista de Nova York, deixou sua carreira de lado para acompanhar a esposa em Washington. A partir de então, ele passou a ser o principal cuidador dos dois filhos do casal e também quem cozinhava e cuidava da casa. Foi ele também que fez todo o lobby com seus contatos tanto no mundo jurídico quanto político e empresarial para que o nome da esposa estivesse na lista das pessoas que Clinton deveria considerar em sua nomeação para a corte suprema. Funcionou: segundo Clinton, após 15 minutos de entrevista ele já estava convencido que a juíza seria sua escolhida.
Interessante também foi a amizade entre RBG um de seus colegas e principais oponentes na corte suprema: Antonin Scalia, falecido em 2016. Estiveram em lados opostos na maior parte das votações, já que RBG queria mudar as coisas e avançar a agenda liberal, enquanto Scalia defendia uma interpretação ao pé da letra da Constituição, julgando os casos conforme as ideias da época em que ela foi escrita. Segundo Scalia, não caberia aos juízes criar leis, e sim interpretá-las. Dessa maneira, se a sociedade muda, quem tem o mandato para mudar as leis são os representantes dessa nova sociedade, ou seja, deputados e senadores eleitos, não os juízes. Diferenças à parte, os dois juízes se davam muito bem, faziam piadas entre si, frequentavam as casas um do outro, iam juntos a óperas e viagens a países exóticos. Scalia chegou a chorar durante o discurso que RBG fez na Corte quando seu marido faleceu em 2010. Um exemplo de capacidade de separar as coisas neste momento de polarização ideológica que vivemos hoje, em que amizades são desfeitas devido a publicações políticas nas redes sociais.
Contra a sua vontade, já que preferia estar votando com a maioria, RBG se transformou na grande dissidente das decisões da Corte. Com colegas cada vez mais conservadores, ela acabou tendo a sua opinião derrotada na maior parte dos casos. Porém, sempre que seus votos dissidentes são divulgados eles “bombam” na internet e são compartilhados de forma viral por uma legião de fãs, afinal RBG costuma “lacrar”. Por exemplo, quando perguntada qual seria o número ideal de mulheres na corte suprema ela responde sem titubear: nove. E complementa: já foram nove homens por tanto tempo, hoje são oito, ninguém questiona, porque todo mundo acha tão estranho quando eu sugiro nove mulheres?
A gola bordada branca, que ela usa junto com a toga de juíza para dar suas opiniões contrárias a maioria, virou ícone pop e pode ser encontrada em camisetas, adesivos, brincos e vários outros produtos de consumo. Por onde ela passa, auditórios lotam e a audiência se acumula para ouvir seus ensinamentos e tentar conseguir uma selfie com a ídola.
A heroína dos direitos civis e do feminismo porém, mantém uma rotina discreta, faz atividade física diariamente com um personal trainner, visita museus de arte e leva a família inteira para assistir espetáculos de ópera, sua grande paixão fora do direito.
Até o momento, apesar de já ter vencido dois cânceres (um no intestino e outro no pâncreas), afirma estar se sentindo bem, em perfeita saúde, e não pensa em se aposentar “enquanto eu conseguir fazer o meu trabalho, cem por cento do jeito que eu acho que deve ser feito, vou continuar na corte.” Não teria como ser diferente.