Sobre a deificação dos líderes políticos

Com o objetivo de sedimentar sua autoridade, Júlio César sistematizou o culto ao imperador e assumiu o título de “Imperador César, Filho do Divino, Augusto”, ou, simplesmente, César Augusto. 

por Davi Lago

O combate à deificação dos líderes políticos recebeu um aporte importante no início da tradição cristã, com o preceito que influenciou as teorias jurídico-políticas em geral: “Então deem a César o que pertence a César, e deem a Deus o que pertence a Deus” (Mt 22.21). Conforme afirmam os juristas franceses Jean Rivero e Hugues Moutouh, tal ensino preconiza a limitação dos direitos do poder: “César, ou seja, o poder, excede sua competência se atenta contra ‘o que é de Deus’. O súdito, nesse ponto, já não é obrigado à obediência: sua resistência se torna legítima, já que o poder se aventurou num campo que escapa à sua jurisdição. Desde então há, portanto, um limite ao poder”[1].

Os primeiros cristãos enfrentaram situações violentas ao se depararem com o culto dos romanos ao imperador. A partir de 27 a.C., o Império Romano passou a ser governado por um único homem: Otaviano, que recebeu o título de “Augusto”, isto é, “majestoso”, “venerável”. Ele passou a concentrar o poder de modo gradual, acumulando outros títulos, agradando senadores, mantendo as fachadas da república. Otaviano — que adotou o nome de seu pai adotivo, Júlio César, e passou a se denominar Caio Júlio César Otaviano — estruturou uma rede de estradas e um correio oficial, montou um exército permanente e ampliou as fronteiras do império por vias militares e diplomáticas. Com o objetivo de sedimentar sua autoridade, ele sistematizou o culto ao imperador e, mediante anuência do senado, assumiu o título de “Imperador César, Filho do Divino, Augusto”, ou, simplesmente, César Augusto. 

O imperador resgatou o clero romano, composto por um corpo de quinze sacerdotes chamados flâmines: três flâmines lideravam a adoração às três deidades principais de Roma (Júpiter, Marte e Quirino) e os outros doze flâmines cuidavam dos deuses menores. O senado passou a ter poderes para realizar apoteoses (vocábulo de origem grega que significa “fazer um deus”) e alçar imperadores mortos ao posto de deuses de Estado. Autoridades estatais eram consagradas como flâmines dos imperadores deificados. De acordo com o historiador Antonio Carlos do Amaral Azevedo, esse culto representava uma manifestação de lealdade a Roma e, concomitantemente, um instrumento de alta significação política e religiosa. “Esse título, augustus, torna a função imperial inseparável da sacralidade. Conduzido ao poder por ser divinizado, o imperador não precisa justificar qualquer dos seus atos ou de suas decisões”[2]. Assim, o culto ao imperador se estabeleceu como uma forma plena de concentração de poder e dominação política.

No início, apenas os imperadores mortos eram deificados pelo senado. César Augusto liderou a deificação de Júlio César a “divino Júlio” (divus Julius). Os imperadores vivos eram considerados “filhos dos deuses”, agentes da divindade. Contudo, o próprio César Augusto passou a ser visto, gradualmente, como um semideus. Seus poderes religiosos aumentaram com o tempo. Ele recebeu, em 23 a.C., poder de tribuno e, 19 a.C., autoridade para ditar normas morais ao Império. Em 12 a.C., tornou-se pontífice máximo (pontifex maximus), assumindo, com isso, o controle das práticas religiosas do Estado. Em 2 a.C., César Augusto recebeu o título de pai da pátria (pater patriae). Os eventos levaram naturalmente a uma situação em que ele e seu sucessor, Tibério, foram adorados em função do posto de imperadores. Posteriormente, Calígula (12-41) se tornaria o primeiro imperador a se declarar deus em vida. Seus sucessores, Cláudio e, depois, Nero, além dos demais imperadores, mantiveram o culto imperial em municípios e também nas províncias, por meio de rituais e textos, em altares e edifícios. 

As comunidades cristãs iniciais floresceram nesse contexto. Seus primeiros pregadores foram judeus absolutamente alheios à civilização greco-romana. O jurista irlandês John M. Kelly relata em seu livro Uma breve história da teoria do direito ocidental que as minúsculas comunidades cristãs formadas enquanto os primeiros pregadores cristãos atuavam mal foram notadas pelo mundo romano oficial até o fim do primeiro século. As pequenas comunidades cristãs estavam diluídas em meio ao vasto culto dos romanos ao imperador. Eram grupos quase invisíveis, formados por pessoas simples, que tinham um credo simples: “Cristo é Senhor”. O teólogo anglicano inglês John Stott escreveu:

“Os cristãos primitivos enfrentavam um constante conflito entre Cristo e César. Durante o primeiro século, a megalomania dos imperadores era cada vez maior. Eles mandavam construir templos em sua própria honra e exigiam que seus súditos os reverenciassem como deuses. Essas exigências acabaram entrando em choque direto com o senhorio de Cristo, a quem os cristãos honravam como rei, ou melhor, como “o soberano dos reis da terra” (Ap 1.5).”[3]

Além de monoteístas, os cristãos eram exclusivistas, isto é, reivindicavam que todos os deuses eram falsos, exceto o seu. Kelly afirmou: “Aos olhos da Roma oficial, essa atitude era antissocial e perturbadora, constituindo uma ameaça à disciplina cívica e militar; isso explica a hostilidade oficial aos cristãos, que frequentemente se exasperava a ponto de provocar cruéis perseguições”[4]. Assim, de Nero a Constantino os cristãos sofreram atrozes perseguições. O historiador eclesiástico Harry R. Boer escreveu que “a razão básica para a perseguição dos cristãos no Império Romano era a recusa da igreja em permitir a adoração ao imperador pelos seus membros”[5].

É possível ter um vislumbre de como os primeiros cristãos eram vistos pelas autoridades ao lermos o livro XV da obra Anais, do eminente senador e historiador romano Publio Cornélio Tácito (55-120):

“Para livrar-se de suspeitas, Nero culpou e castigou, com supremos refinamentos de crueldade, uma casta de homens detestados por suas abominações e vulgarmente chamados de cristãos. Cristo, do qual seu nome deriva, foi executado por disposição de Pôncio Pilatos durante o reinado de Tibério. Reprimida durante algum tempo, essa superstição perniciosa voltou a brotar, já não apenas na Judeia, seu berço, mas na própria Roma, receptáculo de quanto sórdido e degradante produz qualquer recanto da terra.”[6]

A “superstição perniciosa” permaneceu mesmo diante do agravamento da perseguição posterior. O imperador Diocleciano (244-311), por exemplo, promulgou éditos persecutórios agressivos, que ordenavam a destituição dos cristãos de cargos públicos, a destruição de seus locais de culto, a prisão de líderes eclesiásticos e a obrigatoriedade do sacrifício a deuses pagãos, sob pena de execução. 

“Então deem a César o que pertence a César, e deem a Deus o que pertence a Deus” foi, portanto, um preceito levado a sério pelas comunidades cristãs primitivas. A reflexão teológica posterior consolidou tal ditame como fundamental para a compreensão política. Rivero e Moutouh afirmaram que “a distinção entre o temporal e o espiritual, subtraindo à ação do poder a área da consciência, tornou possível e necessária a limitação da onipotência estatal”[7]. Contudo, na experiência histórica, Igreja e Estado vivenciaram uma diversidade de situações: a) uma situação de minoria frágil e de escassa influência sob o poder imperial de Roma; b) uma relação de intimidade tutelada no cesaropapismo do Império Bizantino; c) uma relação de intimidade tutelante com o poder temporal do papa no Sacro-Império do Ocidente; d) uma relação de intimidade ambígua com os Estados confessionais (católicos, protestantes e ortodoxos); e) uma relação de minoria oprimida e, ou, discriminadora sob Estados confessionais não-cristãos; f) uma relação de influência declinante, como uma organização social entre várias, nos Estados não-confessionais secularizados; g) e, mais recentemente, há setores da igreja cristã engajados em um “espírito de cruzada” com propensão ao aparelhamento moralista do Estado.

Sobretudo após o longo período de simbiose entre fé cristã e Império Romano, a questão da separação entre Igreja e Estado tornou-se crucial na reflexão política, tornando-se um ponto central na estruturação dos Estados modernos. Com seu desenvolvimento histórico, a doutrina jurídica moderna se emancipou da fundamentação teológica e também passou a fundamentar a desobediência civil. O corpus da filosofia do direito apresenta respostas seculares firmes acerca do dever de obediência à lei e desobediência em caso de leis ilegítimas. Por exemplo: as comunidades políticas são estabelecidas por meio de pactos sociais, consensos. As formas como se produz esse consenso ou pacto são muito variadas, mas qualquer sociedade sem pacto ou consenso apresentaria leis viciadas por ilegitimidade. 

O pacto social sustenta o que a comunidade política concreta e sua legislação têm de histórico. Ocorre uma crise no pacto social quando se enfraquece ou se altera o consenso que sustentava um regime político, um governo ou a própria existência de uma comunidade política. Enquanto é legítimo promover essas mudanças, torna-se legítimo desobedecer às leis que sustentam o que se pretende mudar. As exceções da desobediência civil confirmam a regra, que é a obediência civil. Em princípio, a desobediência a lei é sempre ilegítima. A lei vale para todos. Não existem deuses. 

Notas:

[1] Jean Rivero. Hugues Moutouh. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 38.

[2] Antonio Carlos do Amaral Azevedo. Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Lexikon, 2012, p. 88.

[3] John Stott. Ouça o Espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU, 2005, p. 106.

[4] John M. Kelly. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 108.

[5] Harry R. Boer. A short history of the church. Cambridge: W.B. Eerdman Publishing, 1976, p. 45.

[6] P.C. Tácito. “Anais, XV.44”. In: Henry Bettenson. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: Aste, 2011, p. 27.

[7] Jean Rivero. Hugues Moutouh. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 38.

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