Socióloga Isabelle Anchieta analisa as representações visuais de Joana d’Arc e Maria Quitéria

Por meio das imagens, a pesquisadora relaciona as transgressões de duas heroínas que, com quatro séculos de distância, lideraram batalhas e consagraram seus nomes na história da França e do Brasil. Na visão da autora, ambas realizaram uma revolução "sedimentada no tempo".

Não é de hoje que as representações femininas ao longo da história instigam a socióloga Isabelle Anchieta. Em 2019, pela Edusp, ela lançou a obra Imagens da Mulher no Ocidente Moderno, uma trilogia de fôlego originada de uma pesquisa de oito anos que embasara sua tese de doutorado na USP. O trabalho contemplava desde as bruxas da Idade Média e as índias tupinambás até as stars de Hollywood — personagens que, em geral, transgrediram normais sociais e alcançaram certo poder pelas margens, subvertendo sutilmente estereótipos atribuídos a elas. Agora, a socióloga dedica atenção a duas figuras que, em suas palavras, desafiaram o sistema frontalmente, mulheres que ultrapassaram a fronteira de um território no qual o próprio imaginário da masculinidade foi forjado: aquele das armas e da guerra.

Em Revolucionárias: Joana d’Arc e Maria Quitéria (Planeta, 336 páginas), que será lançado às 19h desta quarta-feira, 2 de outubro, na Travessa do Shopping Iguatemi, em São Paulo, Isabelle analisa as transgressões de duas heroínas que, com quatro séculos de distância, lideraram batalhas e consagraram seus nomes — a primeira, na Guerra dos Cem Anos, na França, à frente das tropas do Rei Carlos VII; a segunda, na Guerra da Independência do Brasil, contra a dominação portuguesa no País. 

É lançando mão do que chama de um “ponto-cruz” que a socióloga relaciona as representações de ambas no decorrer da história, de modo a compreender, por meio de contrastes e aproximações, a rede de pressões que agiu sobre cada uma, assim como os “sentimentos sociais” que, em diferentes períodos, moldaram o imaginário em torno delas. Uma escultura de Joana d’Arc produzida por Henri Chapu em 1872, por exemplo, reforça o ideal de uma “camponesa virgem”, muito útil em um momento em que a França, em conflito territorial com a Alemanha, buscava reforçar como havia algo de profundamente francês que não poderia ser usurpado. A ideia, assim, foi evitar um biografismo exagerado: afinal, o propósito de Isabelle, mais uma vez, foi realizar uma sociologia das imagens — propondo uma amarração conceitual por meio de uma “sociogênese” da iconografia de ambas — para então refletir sobre temas como a polarização social, o nacionalismo, a religião, a intolerância e as noções de heroísmo.

Humanizar Joana d’Arc e Maria Quitéria, aliás, é uma tarefa central no trabalho da socióloga, que, em vez de idealizar os feitos dessas heroínas, aponta como elas encarnam uma radicalidade do desejo de realização pessoal, ao mesmo tempo que são atormentadas por demandas sociais “sobrepostas”. Como explica na entrevista a seguir, em que dá mais detalhes do livro, a compreensão que tem delas como mulheres revolucionárias se distancia daquela acepção radical e moderna frequentemente associada às revoluções setecentistas. Na visão da socióloga, embora não transformem de imediato o tecido social, elas operam uma revolução sedimentada.

Henri Chapu. “Jeanne d’Arc à Domrémy”, 1872. Crédito: RMN-Grand Palais (Musée d’Orsay) / Tony Querrec.

Isabelle destaca ainda certos desafios impostos pela pesquisa: de um lado, lidar com o farto material existente sobre Joana D’Arc, com interpretações muito díspares sobre a guerreira que se tornou santa; de outro, com a escassa documentação sobre a trajetória de Maria Quitéria, uma figura talvez desconhecida para a maioria dos brasileiros e, por isso mesmo, capaz de revelar a fragilidade dos nossos vínculos como nação.

Leia abaixo a entrevista.

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Em que medida este novo livro dá continuidade à sua trilogia anterior e por que você optou por relacionar trajetórias de figuras tão distantes como Joana d’Arc e Maria Quitéria?

Este livro, de fato, é uma consequência da trilogia. Nessa obra anterior, analisei mulheres que conquistaram certo poder, mas sempre pelas margens. Foi então que percebi, afinal, que faltava tratar daquelas que desafiaram o sistema frontalmente. Eu queria entender — e por isso a escolha de Joana d’Arc e Maria Quitéria não foi casual — não só as mulheres que enfrentaram o sistema, mas aquelas que foram mesmo aceitas por ele. Ou seja, entender como fizeram para subvertê-lo a favor delas. Inicialmente, pensei em falar de mulheres “revolucionárias” em diversas áreas, como nas letras e nas artes. No fim, percebi que o território das armas é o mais arriscado, aquele que sempre dizem não ser para elas e no qual também é forjado todo o imaginário da masculinidade. Foi assim que cheguei a Joana d’Arc, uma das primeiras mulheres a liderar um exército — o que é ainda mais notável se pensarmos que, em sua época, apenas os reis e os nobres desempenhavam esse papel. Eu também quis, evidentemente, analisar uma figura brasileira que tivesse realizado um percurso similar, e assim cheguei ao nome de Maria Quitéria, que eu conhecia muito pouco. Como meu objetivo era fazer sociologia, e não história, busquei não recair em biografias puras e simples, daí surgiu o grande desafio: relacionar mulheres tão distantes no tempo, em uma longa duração histórica, buscando encontrar regularidades para pensar (mais como uma provocação do que uma afirmação) o que significa ser uma mulher revolucionária. Foi assim que propus a ideia de um “ponto-cruz”, como em um bordado, que relacionasse essas trajetórias.

Henry Chamberlain. “A Amazona Brasileira” (1823).

Como se dá sua compreensão de Joana d’Arc e Maria Quitéria como mulheres revolucionárias, considerando as diferentes acepções da palavra?

O termo geralmente está ligado ao século XVIII, à Revolução Francesa e à ideia de grandes rupturas. Quando pesquisei a etimologia, surgiu uma grande questão para mim: até para a Revolução Francesa, tratava-se de uma restauração da liberdade. Eis o cerne da questão: Joana d’Arc e Maria Quitéria buscavam um lugar que compreendiam quase como um direito natural. Elas vão contra a corrente de toda uma estrutura que afirma que a guerra não é para elas. Nesse sentido, são revolucionárias sem necessariamente provocar uma revolução. Afinal, não mudam a estrutura da sociedade, não abrem as portas dos exércitos paras as mulheres, que só muito recentemente passaram a aceitá-las. Ao mesmo tempo, eu me questiono em que medida essa revolução feita por elas não é uma revolução sedimentada no tempo, que vai sendo alinhavada com essas pequenas rupturas. Não sem razão, a figura de Joana d’Arc seria recuperada, séculos depois, pelos movimentos sufragistas, com muitas manifestações iniciadas por uma mulher a cavalo, tal como ela nas batalhas, o que prova a longa repercussão desse imaginário.

São incontáveis as representações e documentações da vida de Joana d’Arc, heroína ainda muito celebrada na França, enquanto são escassos os arquivos sobre a trajetória de Maria Quitéria. Como isso representou um desafio à sua pesquisa e o que revela do tratamento que cada sociedade conferiu a essas mulheres?

Foi algo muito intrigante para mim, pois o excesso e a falta dizem algo da força das nossas ligações sociais. De certa forma, revelam a fragilidade do nosso nacionalismo, construído em bases distintas daquelas do nacionalismo francês. A partir disso, podemos pensar até em certas crises de identidade pelas quais passamos nos últimos anos. Não sem razão, a imagem de Maria Quitéria tem sido recuperada, revelando um debate identitário em torno das mulheres, de mulheres negras como Maria Felipa, uma figura também importante para a Guerra da Independência e que chego a analisar no livro. São novas mentalidades, novas concepções sociais, que nos fazem questionar: “quem somos nós?”. E assim se recuperam heróis que fazem sentido para uma nova configuração identitária que se busca construir. Até mesmo o fato de eu recuperar essas histórias revela algo do momento histórico que vivemos, no qual essas valorizações fazem sentido. Talvez como a maioria dos brasileiros, eu conhecia muito pouco Maria Quitéria. O material sobre ela é, de fato, muito escasso. Temos apenas informações enciclopédicas, mas nada muito aprofundado, com exceção de um livro de 1953 do historiador Manuel Pereira Reis Junior, esgotado há muitos anos, que chegou a fornecer certas linhas para minha pesquisa. Com Joana d’Arc, ao contrário, o desafio foi lidar com um volume impressionante de informações. Grandes autores escreveram sobre ela, de Voltaire e Michelet a Vita Sackville-West. E, assim, ela dá margem a interpretações muito díspares, o que para mim foi fascinante. É possível ler até mesmo os processos inquisitoriais a que foi submetida. E, embora não tenha sido retratada em vida, há um rico material visual sobre ela. 

A socióloga Isabelle Anchieta.

Considerando essas disparidades das representações, de que modo a sociologia das imagens, método que marcou também sua trilogia, é uma ferramenta importante para suas análises?

Ao ler tantas obras sobre Joana d’Arc, cheguei a me questionar o que eu poderia oferecer de novo sobre ela. E, de fato, com toda modéstia, a originalidade do meu trabalho consiste na interpretação das imagens, que tendiam a aparecer nos livros como ilustrações, não como objetos de análise. As imagens são um campo privilegiado para se compreender os interesses de certos grupos em determinados momentos. Se, para um historiador, elas podem ser um objeto movediço, pensando na ideia da “traição das imagens”, para mim, constituem um campo muito atraente, pois, ao analisá-las, é possível encontrar a construção social de diferentes imaginários, compostos por interesses muitas vezes díspares. “Desalinhar” essas imagens e buscar recuperar essas contradições, portanto, é algo que permite não só conhecer uma figura como Joana d’Arc, mas compreender, de um modo mais amplo, as representações que construímos de nossos heróis e heroínas. Recuperamos as vivências daquela personagem, mas com foco nesses atravessamentos, não apenas na biografia. E o mesmo vale para Maria Quitéria.

Como você sugere ao longo do livro, há também o olhar que cada uma delas desejava para si, o modo como gostariam de ser vistas. No caso de Joana d’Arc, um olhar pautado pelo sagrado, por seu contato com Deus. No de Maria Quitéria, pelo desejo de um reconhecimento social de sua coragem. Como essas questões moldam também as imagens delas?

É curioso pensar que Joana d’Arc não foi representada em vida. Ela chegou a viver um período de quase nove meses na corte, onde estavam grandes pintores, como Jean Fouquet, que representou Carlos VII. Era natural que uma mulher que havia se consagrado como ela também fosse retratada. Nisso, porém, há certa coerência: por mais que afirmasse escutar as vozes de Deus, ela não se considerava uma santa. E, por isso mesmo, deve ter se recusado a ser representada e reconhecida dessa maneira, ainda que, mais tarde, viesse a ser canonizada. Maria Quitéria, por sua vez, já é uma mulher do século XIX, quando a religião até era importante, mas não como motor da sociedade. Ela revela certo orgulho de sua posição: ia para a igreja com a medalha que ganhara de Dom Pedro, posa para o retrato de Augustus Earle… Há uma diferença no olhar que cada uma espera. No caso de Joana d’Arc, era o olhar divino, ligado à missão que acreditava cumprir, o que inclusive foi fonte da audácia dela frente aos homens, já que afirmava só obedecer a Deus. Aliás, a grande jogada dela foi usar a virgindade, que geralmente mantinha as mulheres em uma posição de submissão, de uma forma inusitada, como prova de que não era “atormentada por demônios”. Assim, ao passar por provas de virgindade em seus processos inquisitoriais, ela legitima sua defesa usando o sistema a seu favor. Isto é, joga com a mesma moral, a mesma regra, e cria um argumento irrefutável.

Jean-Jacques Scherrer. “Entree de Jeanne d’Arc à Orléans” (1887).

Você menciona que, embora a astúcia e a coragem dessas heroínas sejam inquestionáveis, elas não agiram sozinhas, afirmando que “a convicção apaixonada deve ser apaixonante”, ou seja, que precisaram cativar e mobilizar uma rede de apoio ao redor delas. Como esse processo se desenrolou para cada uma dessas figuras? E, nesse sentido, quais paralelos podem ser traçados em suas trajetórias?

É claro que há uma excepcionalidade na trajetória de cada uma. Não nego a liderança carismática que elas foram capazes de constituir. Mas até isso é fruto do ambiente social e cultural em que viveram. Pensando na formação delas, eu conto como as duas foram criadas no campo, no que chamo de uma “modernidade rural” que vivenciaram, pois foi o campo que ofereceu a elas um movimento físico mais livre que se traduziria em uma coragem de outra natureza. Mas, mais do que isso, para chegar aonde chegaram, elas precisaram contar com pessoas importantes. As imagens, claro, me ajudam a refletir sobre isso: as pinturas de Jean Jacques Scherrer, por exemplo, mostram Joana d’Arc aclamada tanto pelos nobres quanto pelo povo. Essa aclamação foi central para que ganhasse essa dimensão religiosa, com os franciscanos espalhando essa boa nova, ao mesmo tempo que uma figura como Iolanda de Aragão dava-lhe apoio e credibilidade. No caso de Maria Quitéria, podemos pensar em José Antônio da Silva Castro (avô de Castro Alves), que, em uma aposta muito arriscada, defende sua permanência no Exército. Ela contava também com o apoio da irmã, assim como dos próprios soldados de seu batalhão. Cito, nesse sentido, Norbert Elias, que, em um livro sobre Mozart1, diz: “[…] é difícil elucidar os problemas que os indivíduos encontram em suas vidas, não importa quão incomparáveis sejam a personalidade ou realizações individuais como os biógrafos, por exemplo, tentam fazer. É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo”. Essa observação foi um norte em meu livro, porque, por mais excepcionais que Joana d’Arc e Maria Quitéria tenham sido, essa excepcionalidade foi construída por várias mãos.

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Júlia Corrêa é jornalista, doutoranda em Literatura na USP e editora do Estado da Arte.

  1. Norbert Elias. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. ↩︎

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