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A revolta como resposta possível à estupidez mítica de 2020 ou como Albert Camus nos prepara para 2021
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por Georges Abboud
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“Bem pobres são aqueles que têm necessidade de mitos!”
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Albert Camus, Núpcias, o Verão
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Muito se escreveu, em 2020, sobre Albert Camus, A peste e a pandemia do coronavírus. Com insistência excessiva, novas análises e interpretações ganharam a internet, diferindo pouquíssimo no que interessa. Sim, é verdade: cada época tem suas fatalidades próprias. Algumas das nossas são as bibliotecas de textos idênticos, os compêndios de impressões repetidas e a multiplicação infinita desses registros inúteis e reiterada convicção de que apenas textos simplórios e curtos poderão gerar alguma comunicação.[1]
Assim, não queremos oferecer mais um artigo sobre a nossa interminável pandemia e o flagelo de Orã. Para nós, o maior absurdo do ano não foi a Covid-19, mas sim a estupidez, a idiotice triunfal que se impôs pelo número, mês após mês, de março a dezembro.
Nada de novo no novo normal: Robert Musil, no século passado, já havia enxergado na estupidez uma força autoritária, que empurrou os homens em direção às ideologias e ao esquecimento de si próprios. Por meio dela é que o “Nós” nazi-fascista subiu ao poder, domesticando os indivíduos e degenerando a nação, o Estado e as alianças político-ideológicas.[2]
Segundo o diagnóstico de Musil, a estupidez “não é uma doença mental, porém a doença mais perigosa da mente, perigosa para a própria vida. Decerto cada um de nós deveria rastreá-la dentro de si mesmo e não somente reconhecê-la em suas irrupções históricas”.[3]
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A inteligência foi estrondosamente interrompida em 2020. Em seu lugar, ouvimos, lemos e assistimos ao que há de mais obscurantista e reacionário nas ideologias contemporâneas, que flertam com a autocracia, com teocracia e coroam a ode ao absurdo com pitadas de exortação à tortura e torturadores.
De fato, não se trata de uma proposta de equiparação dos nossos tempos à ideologia nazi-fascista, até porque a estupidez tem diversas matizes e intensidades. Ao mesmo tempo, estamos longe de fazermos qualquer afirmação de que não existam elementos degenerados do nazi-fascismo na estupidez contemporânea. Infelizmente, há muito mais do que nosso processo civilizatório poderia estimar para o séc. XXI. Corroborando Camus, ainda “estamos num tempo em que os homens, empurrados por medíocres e ferozes ideologias, se habituaram a ter vergonha de tudo.”[4]
Contra o império da estupidez, Camus tornou-se escritor de estilo firme, simples e altamente autêntico. Ele não nos socorre com um sistema filosófico analítico, mas nos oferece a exposição de uma certa sensibilidade e a defesa de uma maneira de ser: o retrato do absurdo e o convite à revolta, mediante a inevitável imposição da liberdade, a escolha.
É ainda Camus quem nos socorre como chave-de-leitura para entendimento desse ignóbil contemporâneo a partir da compreensão do absurdo e da revolta, trazidos por nós como elementos para o tratamento da estupidez. Nosso artigo tem cariz ensaístico e não pretende realizar exame aprofundado da obra de Camus. Pelo contrário, se fará livre associação de dois dos conceitos cruciais da filosofia camusiana para uma retrospectiva hermenêutica sobre o que foi o busílis de 2020: a ascensão da estupidez.
Os ataques à inteligência e à sua própria obra o fariam admitir, em 1945, numa de suas conferências, que “basta nos esforçarmos para compreender algo sem preconceitos, basta falarmos em objetividade, para sermos acusados de dissimulação e vermos condenados todos os nossos desejos e aspirações.”[5] Opondo-se a tal espírito obtuso, seus livros se unem na compaixão triste e sincera pelos homens e mulheres esmagados, vítimas anônimas da marcha da história.
Assim, os esforços artísticos de Camus, nos romances e mesmo nas obras mais “filosóficas”, como o Homem Revoltado e O Mito de Sísifo, concentram-se em descrever, com traços cada vez mais precisos, o absurdo da vida, a estranheza que sentimos diante das convenções e das leis quando, privados da ilusão de que tudo isso faz sentido, parecemos um ator fora do cenário, um estrangeiro.[6]
“Os deuses condenaram Sísifo a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança.”[7] Esse mito é uma imagem sempre atual da vida humana. Se chegarmos, à força do trabalho, a suspender o rochedo até o topo, então uma doença, uma guerra, uma pandemia, fá-lo-á rolar de novo e, de qualquer modo, tudo acabará com a morte, a queda final.……………………
.Camus é um pensador que faz o tratamento existencial do problema do absurdo.[8] Isso se dá porque a constatação do absurdo é condição para que o homem comece a viver, no sentido existencial. [9] Camus indica, como um dos primeiros absurdos, a figura do Deus Criador, afinal, como poderia haver tanta injustiça, miséria e desigualdade em todas as estruturas da sociedade perante um olhar divino de perfeição, bondade e justiça? Diante disso, o homem, ao constatar esse absurdo, compreende ser sua existência composta por uma série de contrastes e, para sobreviver nessa existência de abandono, somente resta a ele a lucidez, apenas alcançável para o sujeito apto a enxergar a condição do absurdo em si mesma.[10] Independentemente da intensidade da relação do indivíduo com Deus, fato é que 2020 o sentimento de abandono foi uma constante quando também a solidão ganhou novas acepções diariamente.
Assim, tomar consciência do caráter insensato dessa agitação, da inutilidade de tantos sofrimentos, é descobrir o absurdo da condição humana. O universo não foi feito para responder aos nossos desejos, nem para recompensar nossos esforços. O divórcio entre o homem e sua vida faz com que, por um segundo, não entendamos mais o mundo. Ele nos escapa “porque volta a ser ele mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são. Afastam-se de nós.”[11] Só nos resta uma coisa apenas, “essa densidade e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo.”[12] A lição de Camus nos parece extremamente atual, posto que o sujeito que não se absurda com as contradições do cotidiano dificilmente enxerga a estupidez contemporânea que governou 2020. Mais: insiste em, não vendo, negar sua existência, como é natural de quem só entende o conhecimento pelo viés empírico individual.
Camus tentou o quanto pode retratar as existências marcadas por essa “sensibilidade”[13]–[14], sem a qual nós não podemos sequer começar a viver.[15] Nas palavras de Vicente Barreto: “quando o homem aceita o absurdo de tudo aquilo que o cerca deve viver esta situação conscientemente. Trata-se de encontrar uma saída para o dilema em que se encontra: de um lado a existência na vida, da beleza, da felicidade, da verdade por outro, a precariedade de cada um desses estados.[16]
A constatação do absurdo nos impõe, de acordo com esses termos, o único dilema filosófico que importa: vale a pena viver? “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.”[17]-[18] Como, sendo honestos, sem trapacear, podemos continuar a viver depois de haver reconhecido que a vida não presta para nada?[19]
Perante o absurdo, dois caminhos radicais se apresentam: o primeiro é o suicídio e, o segundo é a revolta. O homem revoltado é aquele que enfrenta o seu próprio absurdo, que se recusa a ser o que é.[20]
A revolta nasce contra o aspecto terrível e impenetrável da vida humana. Contudo, é preciso ter cuidado: “toda vez que ela deifica a recusa total daquilo que existe, o não absoluto, ela mata. Toda vez que ela aceita cegamente aquilo que existe, criando o sim absoluto, ela mata.”[21]
O raciocínio mostra que a rebelião verdadeira tem em conta uma natureza humana que é preciso respeitar, uma fraternidade terrestre a ser defendida e um limite — o da dignidade humana — que não pode ser ultrapassado.
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Em uma rápida retrospectiva, poucos anos foram tão emblematicamente absurdos e revoltantes como o de 2020. No auge da inovação tecnológica, vivenciamos um paradoxo no qual grande parcela das redes sociais e da tecnologia estão a serviço do que há de mais irracional, obscuro e estúpido na sociedade.
Durante 2020, ao longo da crise pandêmica, em vez de se agarrar a marcos civilizatórios e à ciência, grande parte de nossa esfera pública — já que as redes sociais são uma dimensão da esfera pública contemporânea — foi dominada por discursos extremistas e negacionistas de toda ordem. Conquistas que, na perspectiva constitucional, considerávamos consolidadas, passaram a ser questionadas, em especial, a laicidade do Estado, a tortura como algo objetivamente repreensível e abjeto, sem falar nas tresloucadas manifestações pelo fechamento do Legislativo e da Jurisdição Constitucional (STF).
O combo obscurantista (polarização + teorias conspiratórias + fake news) rendeu ainda mais frutos no Brasil: em 2020, registrou-se o crescente descrédito da ciência dentre aqueles que a desconhecem, a consolidação da religião como máquina de produção de votos e, como se não bastasse a estupidez das bolhas algorítmicas, colonizando e aparelhando as estruturas do Estado, trouxemos para o Brasil, de forma trágica, a degenerada visão de mundo contrária à vacinação.
O ano de 2020 foi o ano da inteligência interrompida. A crescente movimentação contra a ideia de vacinação é o exemplo acabado de como o reino da estupidez ampliou rapidamente seus territórios. A estupidez e o absurdo desconhecem fronteiras intransponíveis, a ponto de o STF precisar decidir que pais não podem optar em deixar de vacinar seus filhos com fundamento em “convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais”, tal como no caso no qual pais veganos adotavam postura contrária à vacinação, por considerá-la uma forma de “adoecimento artificial” (ARE 1.267.879).
Além disso, a Suprema Corte decidiu que o Brasil não poderia deixar sua população à mercê do coronavírus sendo necessário haver um plano de vacinação nacional, calendarizado e de sujeição obrigatória, sob pena de imposição de medidas restritivas (ADINs 6.586 e 6.587).
Sim. Em 2020, a Corte máxima do país precisou decidir que pais não podem usar a justiça para deixar de proteger uma criança pelo uso de vacinas, e que o Estado não pode negligenciar e abandonar seu povo, deixando-o vulnerável ao vírus.
O ano passado comprovou que, no Brasil, o absurdo, além de ter pitadas de exagero cômico, é judicializável.
Em face desse estúpido absurdo, Camus nos apresenta a revolta, que “nasce do espetáculo da insensatez, perante uma condição injusta e incompreensível”.[22]
Ao contrário do que parece estar acontecendo, o ano de 2020 não deveria ter se encerrado com a sensação de torpor e a insensibilidade em face da contagem de mortos. 2020 — o ano da absurda estupidez — deveria ter findado como o ano da revolta. Não a revolta como combustível de movimentos revolucionários. Mas a revolta existencial de Camus, que é a faísca para o surgimento da consciência. Somente o sujeito que se revolta com o absurdo do cotidiano a adquire.[23] Assim, “aos olhos do revoltado, o que falta à dor neste mundo como aos instantes de felicidade, é um princípio de explicação”. [24]
A revolta que deveria ter encerrado 2020 não seria revolucionária. Nossa revolta deveria ter sido o sentimento de preservação das nossas conquistas civilizatórias, perante a estupidez humana. Em nossa humildade epistêmica, se a revolta de Camus nos auxiliasse a proteger alguns marcos civilizatórios, em especial o Estado laico, a rejeição da tortura e o discurso científico para questões científicas, já teríamos consolidado uma vitória contra o extremismo e a estupidez. O sentimento de revolta de que tanto nos falou Camus é condição de ser do próprio homem, por isso, “a sua revolta deve respeitar o limite que nela própria descobre, limite em que os homens, unindo-se, começam a verdadeiramente a ser”.[25]
A revolta nesse sentido é protetiva e criadora. É o sentimento apto a ser o common ground para unir diferentes visões de mundo, que podem discordar sobre muita coisa, mas encontram um consenso na proteção de marcos civilizatórios.
É, enfim, o paradoxal movimento da revolta como busca da tolerância.
Visualizar 2020 como ano do absurdo não significa defender uma visão niilista e precária da realidade. Enxergar o absurdo é condição para formação de consciência e a construção de um sentimento de revolta em 2021. Voltemo-nos contra o obscurantismo e o negacionismo que não surgiram em 2020, mas nele conseguiram se livrar de qualquer tipo de constrangimento institucional e moral, abrigando-se confortavelmente entre os brasileiros.
A estupidez do ano passado, que se iniciou de forma cômica e caricata com o terraplanismo, culminou numa degenerada e egoísta visão de mundo contra ciência e antivacina. O absurdo da estupidez é sua possibilidade de agir continuamente no plano simbólico, por meio de da ideia de que discursos extremistas e reacionários seriam sustentados na liberdade de expressão e da crença que a recusa em se sujeitar à vacinação se embasaria na liberdade individual. É como se 2020 tivesse consolidado uma forma de Iluminismo degenerado.
Nesse cenário, o risco é que nos entorpeçamos diante dos extremismos e do obscurantismo, como parece ter sido nossa reação ao número de mortos. Por essa razão, 2020 deve ser (re)lido como o ano do absurdo, afinal: “absurdo da condição humana não pode ser um fim mas somente um começo”.[26]
Portanto, que o absurdo e a revolta nos possibilitem compreender 2021 como ano de defesa de todos os nossos marcos civilizatórios consolidados pelo constitucionalismo democrático. Sem o despertar desse sentimento de revolta, corremos o risco de sermos sufocados pela estupidez, afinal, como ensina Musil, ela, diferentemente da sabedoria, não tem nenhum mistério: basta que não façamos nada para que ela ascenda..
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Notas:
[1] Daí a exaltação que deve ser feita ao Estado da Arte, no Estadão, sempre plural e aberto a textos para além do padrão habitual de diversos espaços digitais.
[2] MUSIL, Robert. Sobre a estupidez. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 29-30.
[3] Ibidem, p. 55.
[4] CAMUS, Albert. El testigo de la libertad. In: Crónicas (1944-1948). Madrid: Alianza Editorial, 2002, p. 145
[5] CAMUS, Albert. Defesa de la inteligencia. In: Crónicas (1944-1948). Madrid: Alianza Editorial, 2002, p. 71.
[6] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 12.a ed., Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 20.
[7] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 12.a ed., Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 137.
[8] BARRETO, Vicente. Camus. Vida e obra, 2.ª ed., Paz e Terra, p. 46.
[9] Ibidem, p. 18.
[10] BARRETO, Vicente. Camus. Vida e obra, cit., p. 34 e 14.
[11] Ibidem, 29.
[12] Ibidem, 29.
[13] Ibidem, p. 15.
[14] BARRETO, Vicente. Camus. Vida e obra, 2.ª ed., Paz e Terra, p. 46.
[15] Ibidem, p. 18.
[16] Ibidem, p. 42.
[17] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 12.a ed., Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 17.
[18] BARRETO, Vicente. Camus. Vida e obra, 2.ª ed., Paz e Terra, p. 47.
[19] Tão importante era retratar esse estado de coisas nos contos e romances, que Camus, prefaciando as Máximas de Chamfort — escritor fiel ao detalhe e atento ao particular —, afirmaria que os “(n)ossos maiores moralistas não são os fazedores de máximas; são os romancistas.” Ver: CAMUS, Albert. Introdução às Maximes de Chamfort. In: A inteligência e o cadafalso, 4.a ed., Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 32.
[20] BARRETO, Vicente. Camus. Vida e obra, 2.ª ed., Paz e Terra, p. 53.
[21] CAMUS, Albert. O homem revoltado. 11.a ed., Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 138.
[22] CAMUS, Albert. O homem revoltado, Lisboa: Editora Livros do Brasil Lisboa, 1951, p. 20.
[23] Ibidem, p. 27.
[24] Ibidem, p. 141.
[25] Ibidem, p. 37.
[26] BARRETO, Vicente. Camus. Vida e obra, cit., p. 65.
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