As poucas frases iniciais de Fernando Sabino (1923-2004) são o melhor convite à leitura da terceira edição de Cartas perto do coração, escritas por ele e Clarice Lispector (1020-1977) entre 1946 e 1969 (há edições de 2001 e de 2011 pela mesma editora Record, há tempo esgotadas). De fato, essas poucas linhas já prenunciam o que nos espera: deslumbramento, convívio, amizade, distância, pacto e … “razões do coração”. Dois seres jovens (em 1944, quando Fernando recebeu Perto do coração selvagem, que Clarice lhe dedicara, ele tinha 21 anos e ela 24) e, pelas fotos que ilustram esta edição, dois seres bonitos, cheios de vida e ainda, segundo Fernando, “solidários ante o enigma que o futuro [e o presente] reservava para o nosso destino de escritores”.
Com efeito, as 23 cartas dele e as 28 de Clarice têm como pedra angular essa “solidariedade”, que permite a cada um entrar nos escritos do outro e devassar obra, pessoa (e persona) com o máximo de “percepção crítica”. Então, conforme diz no prefácio Nádia Gotlib, não seriam as cartas de Clarice coerentes com seu processo criativo “em que importa menos a estrutura episódica que as ilações em seu entorno”? E as cartas de Fernando, que “queria escrever, mas não podia escrever”, não seriam, elas também, coerentes com seus constantes paradoxos em que “o que realmente importa é o que não se diz”? De qualquer forma, realmente, nessas cartas ambos se revelam, escrevendo “com o coração”.
Na maioria dos casos, ao aprovar os textos de Fernando e ao levantar seus achados, nas cartas e nas perguntas que Clarice faz a Fernando, na entrevista no final do livro, ela parece derivá-los para si própria, de uma forma mais ou menos aleatória: “Li de novo e fiquei tão contente… Foi de novo uma carta sua, e uma conversa. Fiquei animada, não importa que daqui a pouco acabe e eu vá com alma morta para a costureira…”. ( 05/8/46)
Mas, vejamos isso, mais adiante, no exemplo dos “movimentos simulados” de Fernando (o livro com este nome só sairia em 1979) que Clarice comenta em sua carta de 14/8/46: “‘Nandinho’, que carta boa a sua. Estou entendendo tão bem o que significam os movimentos simulados. Trabalhe bastante, Fernando, dê um ‘tempo’ largo aos movimentos simulados. O personagem é ‘corajoso’? (não sei o que quero dizer sob a palavra ‘corajoso’). Gostaria que ele fosse. Vou copiar para você o pedaço em que você me dá uma ideia dos movimentos simulados. Talvez esteja aí mesmo um dos pontos que você precisa. Eu tinha tanta vontade de ser um fantasma arrepiado e ficar atrás das pessoas que estão pensando junto de uma mesa e soprar um ânimo, uma palavra. Agora já estou em ‘transe’ de novo e me contenho para não me imaginar um fantasma”.
Ou ainda, sempre Clarice, agora a respeito de O encontro marcado (1956), de Fernando (08/01/57): “Seu livro me espantou. Comecei lendo suas frases cortantes, que você por assim dizer não comenta e que parece ter a intenção de não dizer nada mais do que dizem, comecei sem saber aonde elas iriam parar. Perguntei-me de início aonde você pretendia levar o leitor e se levar. O que me espantou é que me vi inesperadamente dentro do livro, entendendo o que você queria, experimentando tudo, embora não soubesse ainda até onde você iria e vivendo com a velocidade de staccato com que o livro é escrito, esse modo de quem fala com a garganta seca. (…) E a história é ‘subjetiva’ sem a preguiça do subjetivo. O livro todo parece filmado em luz de rua, sem maquillage. Por isso dá às vezes a impressão desconcertante de falta absoluta de ‘literatura’ — e então se sente que este é o modo até sofisticado (sofisticado como contrário de naïve) de literatura. O estratagema é quase uma ausência de estratagema”.
O que se nota, nas cartas, é que Clarice, agora sem as digressões abstratas que se encontram em seus outros escritos, mas diretamente, com figuras concretas, sabe apontar a essência do estilo de Fernando. E ele, por sua vez — como costumava dizer em suas aulas Antonio Candido —, sabe pôr o dedo na ferida e descortinar o perigo que pode rondar a escritura de Clarice. Vejamos o que ele lhe escrevia em 6/6/46: “Digo apenas que não concordo com você quando você diz que faz arte porque ‘tem um temperamento infeliz e doidinho’. Tenho uma grande, uma enorme esperança em você e já te disse que você avançou na frente de todos nós, passou pela janela, na frente de todos. Apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Tem de ser equilibrista até o final. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame ainda a percorrer — e sempre exibindo para o público um falso sorriso de serenidade. Tem de fazer isso todos os dias para os outros, como se na vida você não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso”.
Diálogo
À medida que se vai desenrolando a leitura, surgem observações, reflexões, quase aforismas que surpreendem por sua natureza ‘certeira’ e também por um fato curioso: há uma espécie de contaminação entre os dizeres de ambos, como se um aprendesse do outro, como se um rebatesse, ou ecoasse, o que o outro diz.
Estabelece-se assim um outro diálogo, embaixo daquele já estabelecido pelas cartas:
CL. – Trabalhar é minha única moralidade.
FS. – Viver não basta, é preciso uma convicção.
CL. Vou fazer uma confissão que salve tudo.
FS. Quando fizer uma confissão que salve tudo.
CL. Escreve o que pensa!
FS. – Falo para os outros o que estou falando para mim mesmo.
CL. – Uma espécie de estilo que está sempre sob o nosso estilo.
FS. – Como esses livros que a gente escreve para desmoralizar nossa própria necessidade de escrever, fazendo na cozinha uma careta para as visitas que estão na sala.
CL. E um dos mistérios da arte é que às vezes a gente se dá pelos outros!
FS. Estamos procurando nos viver melhor.
CL. Só posso dizer que parei na infância.
FS. Não passo de uma criança.
Praticamente, apesar da única carta escrita em 1969 por Fernando (e não respondida) em que ele lhe diz haver recebido Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e que “que está do lado de lá e eu estou do lado de cá”, a correspondência entre os dois se encerra em 1959, ano fatídico para ambos: Clarice separa-se do marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem se casara em 1943, e Fernando, divorciado desde 1952 da filha do govenador de Minas, vê-se obrigado, quase que diariamente, para sobreviver, a escrever nas crônicas “o que se espera de mim”.
Entrevista
Entretanto, ainda há — encerrando o livro — uma entrevista de Clarice com Sabino, incluída na série de entrevistas que ela realizou para a revista Manchete em 1968, em que, tanto nas perguntas, quanto nas respostas, verifica-se uma espécie de prestação de contas de ambos, agora que (no dizer deles) “ a maturidade chegou”.
CL. Como é que começa em você a criação? (…) Comigo é uma mistura. É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada.
FS. (…) Era uma espécie de sentimento em mim que partia em busca dessa palavra, dessa ideia. Qualquer palavra, qualquer ideia. Hoje o sentimento ainda existe, mas tem-se dispensado de se exprimir através de palavras ou de ideias — de certa maneira me contento com o próprio sentimento que procura fora de mim alguma forma de expressão já existente para se identificar. A música de jazz, por exemplo.
CL. Fernando, qual é o seu processo de trabalho? Você se inspira como? Ou se trata de uma disciplina?
FS. Há muito tempo que não me dou esse luxo: o de inspirar-me. (…) A verdadeira inspiração é aquela que nos impele a escrever sobre o que não sabemos, justamente para ficar sabendo.”
CL. Fernando, você tem medo antes e durante o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais para mim. E cada novo livro meu é tão hesitante e assustado como o primeiro livro. Talvez isso aconteça com você, e seja o que está atrapalhando a formação de seu novo romance. Estou ficando impaciente à espera de um romance seu.
FS. O que atrapalha a criação de um novo romance é a presunção de que somos capazes de criar. Diante da grandiosidade da tarefa descubro que não sou coisa nenhuma. Era preciso partir da consciência de minha própria insignificância, e reconhecer com humildade que a tarefa nem grandiosa é, mas apenas um ato de louvor a Deus, na medida de minhas forças.
CL. Qual o seu santo preferido?
FS. Não tenho preferência. Os santos me perturbam, pela inveja que despertam, me fazendo ainda mais pecador.
Aurora Fornoni Bernardini é escritora, tradutora e professora titular da USP no Departamento de Línguas Orientais e na pós-graduação no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Graduou-se em inglês (1959-1963) e em russo (1962-1966) pela USP, onde ainda concluiu seu mestrado (1970, sob orientação de Boris Schnaiderman) e doutorado (1973, sob orientação de Alfredo Bosi) sobre o futurismo russo e italiano, e sua livre-docência (1978) sobre Marina Tsvetáieva. Dedica-se também à pintura, tendo realizado exposições individuais e coletivas.