A primeira geração da literatura russa moderna

Vassíli Trediakóvski, Mikhail Lomonóssov e Aleksandr Sumarókov foram os três primeiros poetas russos que se preocuparam em estabelecer os critérios formais que melhor se adaptariam à nova língua na qual escreviam.

por Rafael Frate

A primeira geração de poetas que escreveram na oficialmente nova língua russa, este instrumento racionalizado por determinação de Pedro, o Grande, de mais eficiente comunicação e controle dos súditos de um Império também novo em todas as esferas que seu poder alcançou, teve a principal função de ser o alicerce sobre o qual a grande literatura russa se erigiria. Esta literatura, que atingiria seu pleno desenvolvimento elocutivo com a chamada Era de Ouro da poesia russa, tendo em Púchkin seu astro mais brilhante, ganharia o mundo no fim do século XIX, em um momento e contexto literário mais próximos de nossas sensibilidades e apreciações contemporâneas.

Vassíli Trediakóvski (1703-1769), Mikhail Lomonóssov (1711-1765) e Aleksandr Sumarókov (1717-1777) foram os três primeiros poetas russos que se preocuparam em estabelecer os critérios formais que melhor se adaptariam à nova língua na qual escreviam. Junto a essa, teve máxima importância a questão da busca por um cânone digno de ser imitado e traduzido e da proposta de uma visão poética que buscasse acompanhar o grande complexo poético tradicional europeu que já há mais de quinhentos anos estabelecia um diálogo incessante e, de certa forma, obrigatório com a tradição greco-latina.

Os dois primeiros nomes serão os principais personagens no estabelecimento de um sistema métrico apropriado para a elocução poética da língua russa. O segundo deles será o nome decisivo nessa matéria e virá a ser considerado o Píndaro russo, com emulações diretas ou indiretas ao antigo tebano e mais celebrado lírico na crítica antiga. O terceiro, para bem ou para mal, o pai do teatro russo, será o criador da mais importante arte poética das bases de sua língua e será o principal estabelecedor dos gêneros que formariam o chamado “classicismo russo”.

A poesia desses poetas, hoje bastante estranha a nossas expectativas subjetivistas que têm a autenticidade expressiva como valor central, serviu principalmente como veículo de afirmação e legitimação da ideologia imperial petrina na figura de cada monarca que assumiu a coroa e cetro do Império de Todas as Rússias, criado em 1721 por seu primeiro Imperador. Quando Pedro, o Grande, morre em 1725, sua segunda esposa, possivelmente uma filha de camponeses lituanos, ou letões, ou poloneses, adotada por um pastor luterano alemão com influências na corte, de nome Marfa Skavrônskaia, assume o trono como Catarina I. Seu reinado inicia a chamada Era do Poder Feminino que, no restante de quase todo o século, teria uma mulher como figura máxima do poder imperial.

O Império Russo atingiria seu ápice na atribulada e gloriosa Era de Catarina II, a Grande, cuja ascensão ao trono em 1762 marca o fim de um período intermediário: um período não menos importante em seu papel no desenvolvimento do Estado e das letras russas e não menos interessante em seus principais poderosos, suas intrigas políticas e seus golpes palacianos. Aqui o chamaremos a Era das Três Imperatrizes. Nele, os três poetas da primeira geração foram os principais autores que se encarregaram de glorificar a monarca deificada da ocasião, em um estilo próprio elevado e transportado, embebido no pleno otimismo iluminista pelo o futuro do Império de Pedro, o Grande.  Um dos principais veículos de que dispunham era a chamada Ode Solene, espécie da lírica russa usada quando se queria louvar o monarca por ocasião de algum feito em seu reinado. Dela nos ocuparemos em uma ocasião futura. Fiquemos aqui com seus autores e as três principais questões mais importantes para o alicerce poético russo: as formas, os modelos e os gêneros.

I. Trediakóvski: Um malfadado pioneiro

Vassíli Kirílovitch Trediakóvski (1703-1769) é um pioneiro um tanto maltratado na história da literatura russa. Foi, de certo modo, um reformador frustrado da forma e um poeta, digamos, desajeitado no uso da língua. Suas propostas para a reformulação das estruturas métricas daquela poesia, apesar de estarem no caminho que se afiguraria como o certo com Lomonóssov, não se concretizaram como as definitivas. Suas odes e outras composições próprias foram objeto de troça e desprezo por quase todos os seus sucessores, a começar pelos outros dois grandes da primeira geração, indo até pelo menos Púchkin. A língua em que escreveu se pretende nova, mas usa eslavonicismos demais. Suas propostas formais alegadamente se adequam melhor a língua russa, mas se mantém fiel demais às estruturas próprias da poesia pretérita. Ele se pretende “pai da poesia russa”, mas seus julgamentos críticos são mesquinhos, autoritários, ressentidos e suas odes são geralmente tidas por frias, desproporcionais, equivocadas.

Vassili Kirílovitch Trediakóvski (1703-1769)

Enfim, Trediakóvski é um poeta que a história não perdoou. No entanto, ele foi um pioneiro e, como tal, seu experimentalismo, todas as suas reflexões literárias e seu exaustivo trabalho como poeta e tradutor o colocam na posição das três figuras mais importantes da cultura literária do início do XVIII russo.

Nascido em Astrakhan, cidade no deságue do grande Volga no Mar Cáspio, onde, conta a lenda, ainda menino ele teria conhecido Pedro, o Grande, que o reconheceu como “trabalhador incansável”, Vassíli Kirílovitch vai para Moscou estudar na ainda mais alta instituição de ensino russa, a Escola Eslavo-Greco-Latina, o colégio que formou outros grandes nomes da época petrina, como Lomonóssov. Poucos anos depois, abandona a instituição e parte para uma aventura na Europa, sem financiamento ou vínculos institucionais. Sua ida à França está repleta das tópicas biográficas das grandes mentes russas setecentistas que passaram por provações e dificuldades na Europa, como percorrer grandes distâncias a pé. No caso de Trediakóvski, ele teria ido de Haia até a Paris de Luís XV, onde por três anos estudou na Sorbonne. Foi lá que entrou em contato com as principais tendências poéticas francesas e com todo o arcabouço tradicional a que as belas letras de cada língua deveriam então se reportar.

Quando retorna à Russia em 1730, Trediakóvski é um rapaz cheio de novidades e com um ímpeto civilizatório que moldou também boa parte dos que foram ao estrangeiro para completar os estudos, como Lomonóssov. Ele seria o Legislador do Parnaso Russo. Sua estreia em uma cena literária que era ainda um teatro vazio se dá com a singular tradução de uma obra do francês Paul Tallemant, a Viagem à Ilha do Amor. Trata-se de um prosímetro alegórico, dividido em duas partes, que narra a viagem do herói Tírsis a uma ilha onde ele encontra as personificações de diversos aspectos de Amor. Trediakóvski toma plenas liberdades com sua tradução incluindo poemas próprios e fazendo alusões à história da Rússia e de Pedro, o Grande.

Frontispício da tradução de A Viagem à Ilha do Amor de François Fénelon, uma das primeiras em língua russa.

Não há como negar que esta tradução seja um marco da literatura russa. Não somente por ser um dos primeiros textos literários seculares traduzidos em forma poética, não somente por ter sido a primeira obra a ter tido algum sucesso editorial nesse ainda germinante campo literário russo, mas por apresentar uma concepção tradutória aguda e variegada em seus meios e procedimentos. Alguns anos depois em 1735, no auge de seu breve sucesso, Trediakóvski lança seu manifesto à reforma métrica da poesia russa: o Novo e Breve Método para a Composição de Versos Russos, o primeiro manual de versificação da língua e talvez o primeiro tratado teórico de letras que pensa a língua russa em suas possibilidades poéticas. Vejamos o que estava em questão para essa obra.

Basicamente a discussão que Trediakóvski propõe gira em torno do melhor sistema métrico a ser adotado em russo. A tradição eslavônica pretérita, suplantada pela nova língua iniciada por Pedro, o Grande, tem uma produção modestamente rica, principalmente em vista dos poetas do fim do XVII. A forma dessa poesia emprestava de uma tradição já bastante rica e influente desde meados do XVI, da Polônia, o maior participante eslavo da Renascença. Seu verso, como o nosso em português, tinha como unidade mínima de composição o próprio verso, normalmente com uma ou mais sílabas obrigatoriamente acentuadas. Por exemplo, o nosso decassílabo heroico, que, a partir da reforma teórica de Antônio Feliciano de Castilho em 1851, é um verso de dez sílabas com acento obrigatório na sexta e décima, contando-se somente até a última tônica. Em terras polonesas, temos um paralelo no verso de treze com acento na sexta e décima segunda, contando-se inclusive a última sílaba depois da tônica (um decassílabo nosso, lá seria lido como hendecassílabo e assim por diante). O Alexandrino Polaco foi o verso principal para os gêneros mais importantes e elevados da poesia.

Nele escreveram gigantes absolutamente desconhecidos no Brasil, como o pai de toda aquela poesia, nome que ombreia com Petrarca, Milton, Ronsard e Camões: Jan Kochanowski. Posteriormente, no início do XIX, o romântico Adam Mickiewicz escreveria nele o épico fundacional da literatura e daquela então combalida Nação sem Estado polonesa, o Pan Tadeusz. Contemporâneos a Kochanowski houve poetas, satiristas, historiadores, teóricos da língua, escrevendo em vernáculo e no talvez melhor latim renascentista depois do italiano, mas eles não importam a este momento. Importa apenas frisar que deles emanou a auctoritas de suas obras e das suas formas poéticas para os extremos rincões orientais do mundo eslavo. Na já mencionada Academia de Kiev e entre os doutos que dela migraram para a corte moscovita em meados do século XVII, a concepção do verso silábico polonês foi o pressuposto teórico para se fazer poesia em eslavônico, entre os quais se destacou o grande letrado e preceptor real Simeon Pôlotski (1629-1680), que usou sobretudo o terdecassílabo alexandrino em suas principais composições.

Voltemos a São Petersburgo; Trediakóvski intui que organizar a versificação russa por tais princípios é contra o “modo de ser da língua”. Em seu tratado, ele propõe que a unidade mínima de construção do verso seja o pé métrico, uma sequência de uma sílabas tônicas e átonas formando um bloco que se repete um x número de vezes. Esse sistema de versificação, igual ao inglês ou o alemão, explicava as formas poéticas de maneira mais simples além de alegadamente simular melhor o que antigos gregos e latinos usavam. Um exemplo:

As armas e os barões assinalados

O decassílabo heroico mais célebre da língua portuguesa pode ser lido também como uma sequência de cinco pés métricos que se compõe de uma átona inicial e uma tônica final: as AR | mas E OS | baRÕES | asSI | naLA dos. Um pé que se compõe de uma fraca seguida de uma forte se chama iambo; um que começa em uma forte e termina em uma fraca é chamado troqueu, e assim por diante. Desse modo, no verso d’Os Lusíadas teríamos cinco desses pés iâmbicos. Formam, portanto, um pentâmetro iâmbico. Trediakóvski propôs como verso principal o hexâmetro trocaico com cesura oxítona, ou masculina, e rimas paroxítonas, ou femininas, uma forma que, na prática, daria um verso de treze sílabas, como no polonês e no eslavão.

A questão das rimas foi algo bastante debatido também, já que as rimas do polonês e, por sua influência as do eslavão, eram sempre femininas, ou paraxítonas. Isso se explica pela própria fonologia do polonês: 98% de suas palavras são paroxítonas, então não tem como você rimar com palavras oxítonas na língua. Mas no russo não é assim, e quem a estuda sabe o inferno que é ter algum domínio de sua tonicidade. Ela é extremamente livre, pode cair em qualquer sílaba de suas palavras e são uns bons dez anos de prática até você saber bem onde. Há um número de oxítonas quase tão grande quanto o de paroxítonas (e muita proparoxítona). Muito bem, Vassíli Kirílovitch propôs em seu tratado a nova versificação russa tendo como principal veículo esse metro alongado de seis pés trocaicos ou treze sílabas, ainda alheio ao caos que é a acentuação russa. Para isso, ele incluiu um tesouro de exemplos poéticos, com poemas escritos em outras combinações de pés. 

Um desses poemas em hexâmetros trocaicos se destaca. Ele trata de uma outra grande preocupação da poesia russa dessa primeira geração, a inserção da língua russa no grande cânone dos clássicos. A Epístola da Poesia Russa para Apolo é o primeiro poema didático da literatura russa: uma breve arte poética escrita em prosopopeia na forma de uma petição dessa novíssima poesia russa ao deus das Musas para ser incluída entre os grandes clássicos das letras ocidentais. Em um pouco mais da metade de seus 175 versos o autor se usa de um recurso que seria ainda aperfeiçoado na Rússia, o catálogo de modelos. Listam-se assim todos os grandes nomes dignos de imitação desde Homero, até as últimas autoridades de França e Alemanha. Aqui a listagem de grandes poetas, homens e mulheres, de todas as gerações das musas ocidentais emula aquela da obra da figura mais importante aqui para nós ainda não mencionada: Nicolas Boileau-Despréaux, le législateur du Parnasse. Voltemos a ela mais para o final.

Após a lista final de povos aos quais a musas de Apolo frequentam, o autor emenda:

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????? ??? ? ??????, ?? ????, ??????????? ??? ?????. (vv. 101-106)

(No pridi i náchu zdiês posetit Rossíiu / Tak jê i rasprostroni v niêi miá, poezíiu: / Vstriêtit dôljno iá tebiá vsiátcheski potschúsia, / I v prilítchny mniê ubor svetló nariajúsia; / S priviétstvennym pred tebiá i stíkhom predstánu, / nôvykh mier v stopakh ne tchisl pozdravliat tiem stánu.

Vem aqui também para nós, visitar a Rússia / também nela difundir a mim, a poesia: / de encontrar-te é certo eu hei, sempre desejoso, / a brilhar vestindo um traje decoroso / e a ti sempre cortês meu verso apresento / não em sílabas, mas pés, com o qual me celebro)

Esse passo condensa o objetivo do poema, concluindo um catálogo de autoridades com a conclusão de que só um “traje decoroso”, uma forma poética que considerasse os pés, e não o número de sílabas para a confecção poética, poderia ilustremente se adornar com os futuros nomes que nela escreveriam. Trediakóvski se coloca como o primeiro desses. Mas não deu muito certo.

II. Lomonóssov: O pioneiro de sucesso

Já se falou de Lomonóssov aqui em outra ocasião. O polímata russo que a mais áreas do saber se dedicou em seu país foi também o fundador de fato da poesia e do que lá se chama filologia russa. Como homem de letras, Lomonóssov foi o que primeiro estabeleceu definitivamente o sistema métrico da poesia russa, com destaque para o seu metro mais popular, o metro em que nada menos o Oniéguin de Puchkin foi escrito, o tetrâmetro iâmbico com rimas masculinas e femininas se alternando. 

Lomonóssov foi outro jovem promissor mandado pela Academia de Ciências para completar seus estudos no estrangeiro. Em seu caso, foi para Freiberg, na Saxônia, leste do que hoje é Alemanha. Estudando sob o grande mestre iluminista, tido como sucessor de Leibniz, Christian Wolff, Lomonóssov começa lá sua carreira de cientista. Foi também na Alemanha que tomou contato com a sua via de tradição classicista, principalmente com as obras de Johann Christoph Gottsched no campo da retórica e de Johann Christian Günter na poesia. O primeiro, com seus trabalhos de padronização e purificação do Hochdeutsch, a língua alemã moderna, serviria de base para a Retórica de Lomonóssov, a primeira escrita em russo, no prolífico ano de 1747. O segundo causaria com suas odes um impacto mais imediato no jovem poeta, e em 1739, quatro anos portanto após o tratado de Trediakóvski, Lomonóssov compõe os dois textos considerados o verdadeiro marco fundacional da literatura russa.

Mikhail Vassílevitch Lomonóssov (1711-1765)

Tratava-se de um tratado de métrica na forma de carta à Academia de Ciências e uma ode longa, à maneira do poema de Günter escrita como ilustração dos preceitos arrolados no tratado. O poema, a Ode à Abençoada Memória de Anna Ioânovna pela Vitória sobre os Turcos e os Tártaros e pela tomada de Khotin, no ano de 1739, é o primeiro exemplar que temos do tetrâmetro iâmbico alternando rimas masculinas e femininas, o metro russo mais prestigioso. Peguemos os primeiros quatro versos dela com a transcrição do cirílico para ilustrar o ponto:

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(Vostorg vnezápny um plenil / vediôt na viérkh gorý vysôkoi / gdiê viétr v lesakh chumiêt zabyl / v doline tichiná glubôkoi.

O enlevo repentino à mente captou, / Carrega ao cume da alta montanha / Onde o vento do soprar nas matas olvidou: / No profundo vale, apenas há silêncio).

Lomonóssov propõe uma mudança radical para a tradição eslavônica e as propostas de Trediakóvski. Em vez de um verso alongado, exaustivo, monótono, propõe um verso breve, dinâmico e variado, e, ao aceitar todo tipo de rima e terminação de verso, Mikhail Vassílevitch foi totalmente coerente com a natureza de sua língua. A proposta é a de um verso menor, de quatro pés iâmbicos, que deem conta dessa particularidade ao alternar rimas masculinas (oxítonas) e femininas (paroxítonas). Na transcrição poética, com as tônicas marcadas em caixa alta, a leitura fica mais ou menos assim:

vosTORG | vneZAP | ny UM | pleNIL

veDIOT | na VIERKH | gaRY | vySOkoi

gde VIETR | v leSAKH | chuMIET | zaBYL

v doLI | ne TI | chiNA | gluBOkoi

O sucesso foi imediato e, ao voltar para a Rússia, Lomonóssov foi recebido com grande entusiasmo. A ode causara um rebuliço na corte da sobrinha de Pedro, o Grande, Ana Ioánovna, e garantiu a Lomonóssov favor e fama como poeta cortesão. Quando morreu, deixou o trono para seu sobrinho-neto, o infante Ivan V, de dois meses de idade que, por complicações genealógicas de que falaremos em outra ocasião, ficou apenas um ano no poder. No ano de 1741, o Império viu seu primeiro golpe sucessório palaciano: a regente nomeada, mãe da criança, Elisabeth Katharina Christine von Mecklenburg-Schwerin, conhecida na Rússia por Anna Leopôldovna, foi deposta em um golpe palaciano que institui Elizabeth Petrovna no poder, a filha de Pedro, o Grande. Lomonóssov habilmente louvou o monarca certo e, no decorrer da década, firmou-se finalmente o grande vate da língua russa. Até a década de 1750.

III. Sumarókov: O Legislador do Século (XVIII)

Aleksandr Petróvitch Sumarókov (1717-1777) não foi para o estrangeiro como seus dois pares plebeus. Em vez disso, recebeu o melhor da educação compulsória petrina no conforto e requinte da nobreza petersburguense e depois na Escola de Cadetes do Exército Imperial. Mais jovem que os outros pioneiros, o garoto desconsidera o trabalho de Trediakóvski, mas se entusiasma com o de Lomonóssov e começa a compor em sua forma. Sua poesia, no entanto, segue por orientações distintas das do vate russo. Vamos deixar também essa questão para a próxima e nos focar em Sumarókov sob o aspecto da outra preocupação poética mais apropriada a este momento, a questão dos gêneros e modelos.

Aleksandr Petróvitch Sumarókov (1717-1777)

No já mencionado ano de 1747, Sumarókov compõe um poema em cujos vv. 398-402 lê-se:

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(I s pýchnym Pindarom vzletái do nebesi, / Il s Lomonosovym glás grômki voznesi: / On náchikh stran Malgerb, on Pindaru podôben;/ a Ty, Shtiviélius, lich tolko vrat sposôben.

E com o elevado Píndaro soerga até os céus, / Ou junto a Lomonóssov eleve a alta voz: / Ele é nosso Malherbe, a Píndaro é semelho; / Mas tu Shtivélius és só capaz do despautério.)

O poema é a Epístola II, Sobre a Composição de Versos, a principal Arte Poética russa, que bebe da tradição iniciada por Horácio e mediada por Boileau. O francês setecentista, autor da mais famosa arte poética do ocidente de então, foi talvez o maior representante de uma poesia classicizante, apropriativa e entusiasmada com as fontes antigas na França, que começara efetivamente sua Renascença no século XVI, com a Pléiade. Boileau foi sem dúvida o poeta francês mais lido, cuja autoridade foi quase que unânime na Rússia enquanto vigoraram as exigências miméticas do que a partir do XIX é chamado Classicismo. A Art Poétique de Boileau foi traduzida por Trediakóvski nos anos 1750, abrindo uma importante coletânea sua. Essa tradução inédita é seguida imediatamente da primeira tradução da Ars Poetica de Horácio, feita em prosa, opção tradutória incomum para uma época que prezava por traduções poéticas de poesia.

Pois bem, o primeiro canto da Art Poétique possui um trecho (vv. 113-142) que repassa todos os grandes nomes da tradição francesa, começando com Villon em “seus tempos grosseiros” até que Enfin Malherbe vient (I. v. 131). O grande poeta do início do XVI francês, que propôs orientações poéticas diferentes do proposto por Ronsard e a Pléiade é o grande modelo que Boileau escolhe orientando o futuro poeta de sua arte: aimez sa pureté / et de son tour heureux imitez la clarté. Pureza e claridade, as palavras chaves de um Classicismo que teve em Boileau seu principal prescritor; Sumarókov, tomando essas características como centrais e obrigatórias para a poesia que se fizesse em russo, fez o que pôde para ganhar a fama de Boileau Russo. O trecho de sua Epístola citado acima era uma reflexão posterior sobre o breve legado que as belas letras russas começavam a produzir.  

No passo Lomonóssov é o Malherbe e o Píndaro da literatura russa. Enquanto o obscuro Shtivélius é Trediakóvski, em referência a uma peça alemã do XVII, cujo nome seria o de um poeta pedante e sem talento. O ataque a Trediakóvski foi o primeiro mais significativo do jovem poeta ao já velho pioneiro, e, logo depois, em 1750, uma comédia acabaria com qualquer pretensão de fama e glória de Vassíli Kirílovitch, cujo personagem principal, um pedant de nome Tresotínius (do Francês, très sot, muito tolo), era sua maldosa caricatura. Sumarókov era o segundo que contestava contundentemente a posição de Trediakóvski na nova literatura, e após começar a atacar Lomonóssov também depois por seu estilo, fez dos anos 1750 a década da primeira querela literária da literatura russa moderna. Apesar de nada novo nas esferas culturais russas pré-petrinas, essas brigas (muitas vezes baixarias completamente externas a questões literárias) foram as primeiras no novo campo literário que se formava.

Na época da carta Sumarókov ainda não se indispusera com Lomonóssov lhe atribuindo os dois honorabilíssimos epítetos. É Malherbe, pois é o primeiro a atingir um nível elocutivo em uma forma poética natural e apropriada. É Píndaro, pois Píndaro foi o grande lírico da antiguidade, o princeps lyricorum, cujos transportes, ousadias formais, máximas sapienciais e altíssima solenidade fizeram dele o principal representante de um estilo sublime para Boileau. A aproximação do polímata com Píndaro seria feita por muita gente no decorrer do século e coloca uma boa questão para terminarmos este ensaio. Lomonóssov é o Píndaro russo pois escreveu em um estilo tão transportado e tão elevado que começava a ficar difícil escrever daquele jeito a partir de então sem cair, como Ícaro, no mar emprestando-lhe seu nome por seu fracasso, como diz Horácio na primeira estrofe da célebre ode IV.2. Essas mesmas características estilísticas seriam criticadas por Sumarókov ao comentar sobre suas odes e produção em geral.

Enfim, a Epístola II de Sumarókov foi o momento máximo em que patentemente se propuseram modelos de autoridade literária provindos de todo o mundo literário ocidental. Foi o momento em que mais evidentemente se pensou a organização poética russa em gêneros literários pré-estabelecidos e orientados de acordo com os grandes modelos do passado. No poema nomeiam-se autores do cânone comum à nossa tradição, passando por Grécia, Roma, França, Inglaterra, Espanha e Portugal (sim, Camões é mencionado). Lá serão propostos e exemplificados cada uma das inúmeras espécies líricas e dramáticas que abundavam a mentalidade classicizante francesa seiscentista, com seus moldes, procedimentos, afetos e convenções. Aqui são propostas de maneira mais clara doutrinas como a das três unidades de Boileau e Horácio, a da padronização e correção gramatical de acordo com o falar cortesão médio,  a da clareza e univocidade do discurso em oposição aos excessivos transportes e agudezas do que muitos chamam barroco e seriam característica central do estilo de Lomonóssov.

Esse foi talvez o auge da primeira geração da poesia russa moderna, cujas orientações seriam arrasadas e totalmente reconfiguradas cerca de 70 anos depois com as concepções de apagamento genérico, variedade elocutiva dentro de um mesmo poema e, claro, expressão de uma individualidade autêntica e genial. Veremos o que foi esse momento quando nos debruçarmos sobre Púchkin e a Era de Ouro. No próximo artigo, entretanto, ainda continuaremos nessa primeira geração, mas sob um outro aspecto: o da Ode Solene e a função do fazer literário em uma corte absolutista que ainda tinha o controle sobre o que os seus súditos pensavam e diziam.

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