Embora reconheçamos o histórico problemático e extraliterário de grandes láureas como o Nobel, é certo que um prêmio de tal envergadura é, se não capaz de tirar um autor do fundo da estante, pelo menos de legitimar o valor de sua obra e posicioná-lo entre o prestigioso inventário daqueles que consideramos grandes referências da contemporaneidade. Não sem surpresa — e alguma suspeição —, recebemos a notícia de que a laureada deste ano havia sido uma mulher sul-coreana, a poeta e romancista Han Kang. Filha de pai escritor e já conhecida entre os mais interessados em literatura contemporânea, a autora, frequentemente comparada a Kafka pela imprensa internacional, alcançou o reconhecimento da academia sueca por “sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”.
O carro chefe de sua obra é o curto romance A vegetariana, publicado originalmente em 2008 e lançado no Brasil cinco anos depois, pela Editora Devir. Em 2018, esta obra vencedora do The International Booker Prize de 2016 foi relançada pela Todavia, atual casa de Han Kang no Brasil. A narrativa, que inicia in media res, descortina em três atos a estranha travessia de uma mulher a quem, até então, não se poderia atribuir nenhuma qualidade extraordinária. Ao despertar de “sonhos intranquilos”, Yeong-hye decide parar de consumir carne, bem como qualquer produto de derivação animal, causando fascínio e horror às pessoas à sua volta. Tal escolha, ou melhor, recusa, embora não pareça tão assombrosa no Ocidente, carrega uma simbologia bastante política no país da autora: após o período da colonização japonesa, seguidos dos três brutais anos da Guerra da Coreia, a península coreana, quase que completamente destruída, sofreu um momento de muita insegurança alimentar. Na década de 1970, quando a parte sul começa a tomar os contornos que tem hoje, a carne se torna um símbolo de abundância, status e, em certa medida, união nacional. Para o povo coreano, fazer as refeições conjuntamente é um traço incontornável de sua cultura, o que, para um país dividido por tensões políticas há quase um século, não pode ser de todo incompreensível. E as referências históricas não param por aí: em dado ponto da narrativa, Yeong-hye radicaliza sua escolha e recusa também o sexo (ao fim do romance, ela terá recusado também a vestimenta, a comida e até a fala), ao que seu marido, violentando-a, compara sua expressão vazia à das chamadas “mulheres de conforto”, jovens que foram sexualmente escravizadas durante a invasão japonesa.
Embora trate de temas coreanos, é evidente, na escrita da autora, uma certa dimensão antropofágica, que, para o leitor mais atento, não pode senão enriquecer sua obra. Além da óbvia sugestão kafkiana, a enigmática vegetariana evoca também o igualmente insólito Bartleby, de Melville. A serena porém impassível resistência da personagem, no entanto, foi inspirada principalmente por um verso do poeta modernista Yi Sang, conhecido entre seus conterrâneos como um dos maiores nomes da poesia experimental coreana. O verso em questão — “Eu acredito que os humanos deveriam ser plantas” — foi escrito como resposta à violência colonial. Em português, alguns de seus textos podem ser lidos no livro Olho-de-corvo: e outras obras de Yi Sang (Editora Perspectiva), transposto do original por Yun Jung Im, uma das tradutoras de Han Kang no Brasil.
Os desafios de tradução
Em terras de língua inglesa, assim como o nome da best-seller italiana Elena Ferrante é imediatamente ligado ao de sua tradutora Ann Goldstein, também ao nome da autora sul-coreana, segue-se o da inglesa Deborah Smith, responsável por verter do original para o inglês quase todos os seus títulos. A tradução de A vegetariana, aprovada pela própria Han Kang e também reconhecida pelo The International Booker Prize, foi duramente criticada pelos leitores coreanos, que, não sem alguma justiça, acusaram Smith de tentar embelezar a narrativa minimalista da autora, adicionando inúmeros adjetivos e expressões sem paralelos com a versão original. Certo beletrismo, que já esteve muito em voga no Brasil, continua a persistir nas transposições literárias para o inglês. Não é estranho, no entanto, que esse debate seja ainda germinal em países nos quais apenas uma parcela baixíssima dos livros publicados pelas grandes editoras são traduções de outras línguas. Após as muitas críticas, a tradutora, que havia iniciado os estudos de coreano somente três anos antes de traduzir A vegetariana, repetiu o empreendimento, embora sem a intenção de abandonar seus pomposos acréscimos.
O segundo título de Han Kang a chegar ao Brasil foi Atos Humanos, obra que referencia um episódio doloroso na história da cidade materna da autora, o massacre de Gwangju. Em 1980, milhares de estudantes e trabalhadores se reuniram no centro da cidade em protesto contra a Lei Marcial imposta pelo então presidente Chun Doo-hwan. A resposta militar foi desproporcionalmente violenta, deixando, segundo os documentos oficiais do governo, cerca de 200 mortos — soma bastante contestada pelos coreanos, que defendem um número entre 600 a 2000. Chun Doo-hwan, ditador responsável pelo massacre, morreu em 2021, sem jamais retratar-se publicamente. O tópico é, portanto, extremamente sensível no país, que o sente ainda irresolvido. Contudo, em Atos Humanos, a sugestão a esse horrível evento só é óbvia para os leitores interessados na história da Coreia, já que Han Kang apenas tangencia o tema. Tal nuance do texto não me parece fortuita, mas antes uma escolha estética que acredito ter a intenção, sobretudo, de diminuir a distância temática entre o livro e o leitor. É possível que, se a autora limitasse o escopo da obra a um momento particular na história coreana, seu alcance — tanto em termos de arte como de público — ficaria igualmente limitado. Mais ainda: Han Kang parece entender a impossibilidade de capturar uma única verdade ou experiência sobre o horror. Este não pode ser tocado senão por múltiplas subjetividades. Assim, Atos Humanos é e não é sobre o massacre de Gwangju: mais do que documentar uma tragédia, Han Kang intenta, tal como já havia feito em A vegetariana, narrar algo de inenarrável sobre a humanidade. “Quando eu escrevo romances, eu sempre acabo retornando ao tema do que significa ser humano”, declarou ela. Essa pretensão “universal”, embora parta de questões provincianas, já é o axioma de sua obra.
A escrita de Atos Humanos também impõe um problema de tradução interessante. Em sua versão original, os diferentes personagens que narram cada um dos capítulos referem-se continuamente a alguém na segunda pessoa do singular. Contudo, elas são inseridas na história sem prévia explicação, restando ao leitor a tarefa de identificá-las. Na edição em português, a tradutora Ji Yun Kim escolheu manter esse aspecto importante da obra, usando “você” para o formal, e “tu e ti” para o informal. É uma decisão importante, porque, além de denotar certa originalidade, ao sugerir esse endereçamento misterioso, todas as narrações amplificam-se triplamente: parecem aludir ao protagonista, Dong-ho — que descobrimos no epílogo não ser um personagem (inteiramente) fictício —, mas também ao próprio narrador e ainda ao leitor. A narrativa toma, então, ares de uma quieta revolta, mas também de culpa e de comiseração.
Na tradução para o inglês, Smith continua criando imagens que, apesar de fortes, não estão de fato na fonte (“sad flames licking up against a smooth glass of wall”) e, assim como fez em sua tradução de A vegetariana, adiciona informações que intentam explicar o conteúdo do texto e, dessa forma, não apenas tornam a obra de Han Kang mais palatável ao leitor preguiçoso como apagam a complexidade do estilo polifônico da autora, implicando, na história, um narrador onisciente. Um dos exemplos mais notáveis dessa domesticação empobrecedora do texto, para mim, acontece no capítulo 6, intitulado, na versão brasileira, “Para o lado das flores”. Na narração, novamente esquiva, usa-se o “tu” e um tom mais íntimo. Imediatamente, o leitor consegue deduzir que o ponto de vista, agora, é o da mãe de Dong-ho, mas não há, em nenhum momento, qualquer confirmação. Na edição original, muito próxima da tradução de Ji Yun Kim, a narração é marcada por um sotaque regional, usado geralmente por pessoas mais velhas e de menor poder aquisitivo, que orienta o leitor ao mesmo entendimento. Já na interpretação de Smith, o título do capítulo é “The Boy’s Mother, 2010”. É desnecessário acrescentar que, também no texto original, Han Kang não faz nenhuma indicação de tempo.
No final de Atos Humanos, ficamos sabendo que, já uma mulher adulta, Han Kang, depois de uma visita à cidade deixada na infância, descobre que um dos alunos de seu pai, de apenas 13 anos, havia sido assassinado pelos militares no massacre de 1980. A descoberta, mais do que perturbá-la, causa na autora uma estranha culpa: “Ele realmente não tinha conseguido atravessar o verão quente que eu atravessei?”. Um sentimento parecido impulsiona a escrita de O livro branco, publicado no Brasil em 2023 e traduzido do original por Natália T. M. Okabayashi. A partir de uma lista de coisas brancas, Han Kang evoca a lembrança de uma irmã que, embora ausente, tem uma forte presença em sua vida. Quatro anos antes do nascimento da autora, em uma Coreia do Sul ainda tão recentemente impactada pela colonização e pela guerra, a mãe de Han Kang deu à luz, sozinha, sua primogênita, que sobreviveu por apenas uma hora. A filha escritora decide, então, por meio da literatura, emprestar à irmã seu próprio corpo. O livro branco é uma espécie de exercício de exumação, no qual a autora de A vegetariana imagina como seria a vida da irmã, se esta ocupasse seu lugar. O pretexto da obra, assim, assemelha-se um pouco ao de A outra filha, de Annie Ernaux, ganhadora do Nobel de literatura de 2022, embora desvie-se em seu desenvolvimento.
A escrita mais pessoal de Han Kang, soa, para mim, como a mais sofisticada. O livro, um tanto curto se comparado aos romances anteriores, é também carregado de ambivalências e não menos engenhoso. No idioma coreano, há duas palavras para se referir à cor branca, cada uma com sentidos bastante diferentes: hwin e hayan. Esta expressa pureza e aquela indica um sentido ambíguo de começo e fim. A irmã mais velha de Han Kang é, pois, hwin, uma vez que representa, para ela, tanto a vida quanto a morte. O mesmo pode ser dito sobre Gwangju ou ainda sobre Varsóvia, cidade onde a autora esboça O livro branco e que, durante a Segunda Guerra Mundial, por resistir aos nazistas, foi quase completamente aniquilada a mando de Hitler.
As palavras, a língua e a experiência
Ainda não publicado no Brasil, Greek Lessons é o único livro da autora que eu li apenas em inglês. Também traduzido parcialmente por Deborah Smith, com a colaboração de Emily Yae Won, esse me pareceu ser o livro mais destoante de seu catálogo — com sorte, não graças à tradução! —, ainda que igualmente polifônico. A história começa referenciando o seguinte epigrama da Saga dos Volsungos: “Tomou a espada Gram e estendeu-a, desembainhada, entre os dois”. A frase abre o conto “A Hortaliça”, de Borges, além de estar também gravada na lápide do autor argentino, por quem Han Kang já admitiu nutrir uma grande admiração. Em Greek Lessons, paralelamente à espada que divide os amantes na lenda nórdica, uma obstrução trágica separa o casal sem nome do mundo: a mulher, inexplicavelmente, perde a fala, recorrendo ao grego clássico, uma língua morta e sem qualquer familiaridade com a sua, para comunicar-se. Seu professor de grego, que viveu na Alemanha e na Coreia e, assim como Borges, está gradativamente perdendo a visão, sente sua identidade fragmentada entre duas culturas heterogêneas. Ao reconhecerem um no outro esse desarranjo interior, motivo de todos os personagens hankangianos, eles se apaixonam. O livro, no entanto, ocupa-se, sobretudo, da arbitrariedade da língua, que é, mesmo para um nativo, segundo a autora, um “instrumento impossível”. As palavras nunca de fato contornam a experiência.
A leitura de Greek Lessons me remeteu a um interessante livro autobiográfico assinado por Jhumpa Lahiri, autora nascida de pais bengaleses e radicada nos Estados Unidos que, depois de uma viagem à Florença, apaixonou-se pelo idioma italiano com tamanha força que se decidiu por não mais escrever em inglês, a língua com a qual havia ganhado o Pulitzer Prize. No livro a que me refiro, In altre parole, Lahiri descreve, em italiano, a tarefa sisífica que é a aquisição adulta de um idioma estrangeiro: “As palavras surgem, acompanham-me por um tempo, e então, muitas vezes sem aviso, abandonam-me”. Mas, aos obstáculos, soma-se também uma experiência poderosa. Com efeito, aprender uma língua é como rebobinar o tempo e voltar à infância. Cada palavra descoberta, mesmo que com o mais cotidiano significado, é conduto de uma alegria pueril e evanescente. Toda vacilante tentativa de expressar-se reflete algo da solidão das crianças frente a um mundo tão grande e incompreensível. Ler um livro no idioma que se está aprendendo é como reencontrar o gosto pela literatura. Também entre mim e a língua coreana — a que me dedico desde 2019 — há uma porta meramente entreaberta, pela qual eu espio com humildade.
Elevação da realidade
A próxima obra de Han Kang, We Do Not Part, será publicada em inglês no início de 2025 e sua tradução brasileira também já foi anunciada pela Todavia. Assim como Atos Humanos, o romance trata de um massacre civil ocorrido na Ilha de Jeju, mas pela perspectiva de uma amizade entre duas mulheres. Com efeito, livros que abordam traumas históricos e geracionais parecem estar cada vez mais populares na cena literária mundial, o que talvez explique, para além da onda hallyu, a crescente notoriedade da autora. Também no Brasil, obras como O avesso da pele, de Jeferson Tenório, e Torto arado, de Itamar Vieira Junior, ganham inegável proeminência. Desde a pandemia do COVID-19, contudo, o interesse das editoras também está voltado à tradução de títulos asiáticos que, nas mídias sociais, são categorizados como “literatura de conforto” ou, em inglês, “healing fiction”: romances de enredos excessivamente simples, com um óbvio tom de autoajuda e títulos que aludem a histórias infantis. A Incrível Lavanderia dos Corações, de Yun Jung-eun, A Inconveniente Loja de Conveniência, de Kim Ho-Yeon, e Bem-vindos à Livraria Hyunam-Dong, de Hwang Bo-Reum, são alguns exemplos. No entanto, a pedra de toque da boa ficção me parece ser justamente outra: seus melhores exemplares são aqueles que, por uma elevação da realidade, nos fazem questionar as estruturas que organizam o mundo. Para mim, tal é o feito e o efeito da escrita de Han Kang. Sua literatura, livre de didatismo, afetações de estilo ou irritantes obviedades, põe em contemplação a natureza simultaneamente amorfa e sublime da existência humana, além de nos suscitar uma pergunta já antes evocada pelos grandes autores do passado: “É isto um homem?”.
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Thainara Amorim é bacharel em Comunicação Social e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco.