A tragédia de Clitemnestra

Gabriel Nocchi Macedo conduz o leitor do Estado da Arte pelo universo trágico de uma das grandes heroínas da literatura clássica: Clitemnestra. De Homero a Sêneca, passando por Sófocles e Eurípedes (entre outros), confira as variadas representações de sua história.
Assassinato de Clitemnestra por Orestes, relevo de um sarcófago romano do II sec. d.C. (São Petersburgo, Hermitage A 461)

por Gabriel Nocchi Macedo

Mãe dolorida, esposa infiel, assassina impenitente, Clitemnestra é, junto a Medeia, Fedra e Electra, um dos mais complexos personagens femininos da tradição trágica ocidental. Filha de Leda e Tíndaro, rei de Esparta, ela tem como irmãos os gêmeos Castor e Pólux, assim como Helena, a mais bela mulher do mundo. A origem do seu nome – Klutaimestra ou Klutaimnestra, em grego –  é misteriosa. Segundo uma das possíveis etimologias, o significado seria “aquela que é famosa por seus pretendentes”, uma qualificação que conviria melhor a Helena, cuja mão todos os reis da Grécia cobiçavam. Outra possibilidade, mais apropriada ao personagem, mas contestada por alguns especialistas, é “famosa por sua astúcia”.

Clitemnestra é uma das principais figuras do mito dos Átridas, família real de Micenas (ou Argos, em algumas versões), cuja saga é repleta de episódios de infanticídio, parricídio, canibalismo e incesto. Ela era esposa de Agamemnon, o grande líder da expedição grega contra Tróia, afim de trazer de volta Helena, esposa do seu irmão Menelau, que fugira com o príncipe troiano Páris. A caminho de Tróia, os navios gregos encontraram-se amarrados no porto de Áulis, pois todos os ventos favoráveis haviam cessado. Para que eles voltassem a soprar, assim anunciou o vidente Calcas: Agamemnon deveria sacrificar sua própria filha, Ifigênia, à deusa Ártemis, o que ele fez, contra a vontade e as súplicas de Clitemnestra. Essa, durante a ausência do marido, tomou por amante Egisto e com ele planejou e executou o assassinato de Agamemnon, no dia em que retornou da guerra. Anos mais tarde, incitado pela irmã Electra, Orestes, filho do casal que crescera em exílio após a morte do pai, assassinou sua mãe e Egisto, no que foi o último ato sangrento da trágica história da família.

A primeira aparição de Clitemnestra na literatura grega encontra-se no terceiro canto da Odisseia de Homero, onde é descrita como uma mulher de bom coração que, cedendo ao seu desejo, foi levada ao adultério e ao crime:

Homero, Odisseia III, 265-272

A nobre Clitemnestra primeiro recusou-se a cometer um ato ímpio, pois tinha um bom coração. Além disso, estava lá um menestrel a quem o filho de Atreu, ao partir para Tróia, ordenou que protegesse sua esposa. Mas quando o destino dos deuses a amarrou e a subjugou, Egisto levou o menestrel a uma ilha deserta e lá deixou que se tornasse presa e despojo dos pássaros. Ela, desejando como ele desejava, ele a levou à sua casa.

A infidelidade de Clitemnestra é o resultado de um decreto divino, segundo um fragmento de uma obra perdida de Hesíodo, que conta que a deusa Afrodite, invejosa da beleza das filhas de Tíndaro, amaldiçoou-as: todas as três trairiam seus futuros maridos. A obra que deu forma ao personagem de Clitemnestra e definiu, de certa forma, suas representações posteriores foi a Oresteia, trilogia de tragédias de Ésquilo (525/4 – 456/5 a.C.), apresentada pela primeira vez em Atenas em 458 a.C. Em Agamemnon, a primeira peça, vê-se o retorno do rei à sua pátria, acompanhado por sua concubina Cassandra, princesa troiana raptada como despojo de guerra. Antes da chegada de Agamemnon, Clitemnestra apresenta-se ao povo da cidade como uma esposa ideal, que pacientemente esperou o esposo durante anos. Ela prepara-lhe uma recepção digna de um deus, estendendo no seu caminho um tecido púrpuro para que, como uma divindade, seus pés não toquem o solo. Nas palavras da rainha, porém, Ésquilo já alude, com grande arte, ao seu plano maligno:

Ésquilo, Agamemnon, 905-911

Clitemnestra: Agora, cara cabeça, desce deste carro, sem que toque a terra, senhor Agamemnon, o teu pé destruidor de Tróia. Escravas, porque tardais, vós a quem eu ordenei de estender tapetes sobre o solo em que ele vai pisar? Que imediatamente se faça um caminho de púrpura, pelo qual a Justiça o conduza à casa inesperada.

John Collier, Clytemnestra (1882) (Londres, Guildhall Art Gallery)

A “casa inesperada” não é o lar, ao qual Agamemnon, durante os anos de guerra, talvez não mais esperasse voltar, mais o Hades, a casa dos mortos, onde o conduz a deusa Justiça, como punição pela morte de sua filha. Há, no recebimento grandioso que Clitemnestra oferece a seu marido, que teme cometer uma impiedade em ser tratado como um deus, uma cruel ironia. Quanto mais ela o eleva, canta suas glórias e dispensa elogios a seus atos heroicos e viris, mais humilhante será a sua morte sob o golpe de uma mulher. Clitemnestra assume, de fato, a posição de um homem. Contrariamente a outras versões do mito, na peça de Ésquilo, é ela e não Egisto que mata Agamemnon, e o faz com uma espada, arma de guerreiros. Seu ato não é impulsivo, mas fora planejado, como a obra de um artesão; longe de arrepender-se, ela orgulha-se e defende-se perante os cidadãos:

Ésquilo, Agamemnon, 1412-1421

Clitemnestra: Assim tu me condenas ao exílio, ao ódio da cidade e as maldições do povo, enquanto a esse homem [Agamemnon] tu não te opunhas, ele que, sem honra alguma, como se fosse o destino de um animal, de abundantes ovelhas em um rebanho lanudo, matou sua própria filha, fruto amado do meu ventre, para enfeitiçar os ventos da Trácia. Não era ele que devia ser banido desta terra, em punição por seus miasmas? Ouvindo as minhas ações, tu te tornas um juiz severo.

Ao assassinar Agamemnon, a Clitemnestra esquiliana pretende agir sob o comando de uma divindade, do gênio vingador de Atreu, que pune com crimes os crimes cometidos pela família. O delito por ela cometido era necessário, mas será o último, pois ela está preparada a fazer juramentos a esse deus cruel, para que ele deixe o palácio e se vá atormentar uma outra raça. A maldição dos Átridas, porém, ainda está longe de se esgotar, como mostra a segunda peça da trilogia de Ésquilo, Coéforas (termo grego que designa as mulheres que oferecem libações aos mortos). A trama revolve em torno de Electra e Orestes que, reencontrando-se após anos de separação, desejam a morte dos assassinos de seu pai. Clitemnestra mostra-se ainda impenitente dos seus crimes, mas teme uma punição. Ela manda escravas fazer libações sobre o túmulo de Agamemnon para apaziguar os deuses vingativos. Em um sonho, ela vê-se dando à luz uma cobra que, ao sugar o seu seio, mistura o leite com o sangue da ferida. A cobra é, bem entendido, Orestes que, obedecendo a um oráculo de Apolo, executa sua mãe. A altercação entre mãe e filho antes do assassinato, um dos momentos mais pungentes da obra, ilustra a complexidade psicológica dos teus personagens:

 

Ésquilo, Coéforas, 908-930

 

Clitemnestra:     Eu te criei, eu quero envelhecer ao teu lado.

Orestes:             Assassina do meu pai, tu poderias viver comigo?

Clitemnestra:     O Destino, meu filho, tem uma parte nisso.

Orestes:             E o Destino te ofereceu essa morte.

Clitemnestra:     Não temes as maldições familiares, filho?

Orestes:             Tu, minha mãe, me mandaste à desgraça.

Clitemnestra:     Não, te mandei à casa de um aliado.

Orestes:             Filho de um homem livre, fui indignamente vendido.

Clitemnestra:     Então, onde está o pagamento que eu recebi?

Orestes:             Envergonho-me de te repreender por isso abertamente.

Clitemnestra:     Dize, mas dize também as culpas do teu pai.

Orestes:             Não acuses aquele que sofreu enquanto tu ficavas em casa.

Clitemnestra:     Para as mulheres é uma dor estar longe dos maridos, filho.

Orestes:             O trabalho do homem alimenta a mulher ociosa.

Clitemnestra:     Tu pareces decidido, meu filho, a matar a tua mãe.

Orestes:             Não sou eu, és tu que vais matar a ti mesma.

Clitemnestra:     Atenção! Cuidado com as cadelas malignas[1]da tua mãe.

Orestes:             Como posso fugir das do meu pai, se eu não cumprir minha missão?

Clitemnestra:     Eu vejo que, apesar de viva, me lamento em vão perante uma tomba.

Orestes:             A sorte do meu pai decidiu para ti esse destino.

Clitemnestra:     Ó! Eu dei à luz e criei essa cobra!

O pavor dos meus sonhos foi um vidente poderoso.

Orestes:             Tu mataste quem não deverias, sofre então o que não deverias sofrer.

Os dois outros grandes poetas trágicos gregos, Sófocles (497/6-406/5 a.C.) e Eurípides (480-406 a.C.), conservaram, em grande parte, a personalidade da Clitemnestra de Ésquilo, em suas respectivas tragédias intituladas Electra. Na de Sófocles, a arma do assassínio de Agamemnon não é mais a espada, mas o machado, instrumento doméstico, usado comumente em sacrifícios, e, portanto, mais próximo do mundo das mulheres. Central nessa obra não é mais a relação de Clitemnestra com seu marido ou com o filho que viria a matá-la, mas com Electra, sua inconsolável filha, que a morte paterna e a sede de vingança obsedem quase ao paroxismo. Recusando-se a aceitar o governo de sua mãe e do amante, Electra vive fora do palácio, vestida em trapos, e entoando lamentos pelo pai. A ela Clitemnestra também tenta justificar o seu crime:

Sófocles, Electra, 520-533

Clitemnestra:  Tu dizes sempre a todos que eu sou insolente e que governo injustamente, desprezando-te a ti e a tudo que é teu. Eu não tenho desprezo, mas te insulto porque escuto insultos da tua parte. O teu pretexto é sempre que eu matei o teu pai, e nada mais. Que eu o matei, eu sei. Mas a Justiça o destruiu, não eu sozinha, e tu tomarias o partido Dela, se tivesses bom senso. Pois o teu pai, que tu tanto choras, sozinho entre os gregos, tomou a responsabilidade de sacrificar a tua irmã aos deuses, sem sentir uma dor igual à minha, pois ele a gerou, mas fui eu que a pari.

Em Sófocles, cujos personagens não são jamais desprovidos de contradições, a impenitência e o interesse próprio de Clitemnestra são mitigados por um afeto materno que parece sincero. Se nas Coéforas, o seu sofrimento, quando lhe dizem que Orestes morreu, é fingido, na Electra sofocléa, ela sente, ao mesmo tempo, alívio e dor:

 

Sófocles, Electra, 766-768

Clitemnestra:  Ó Zeus, o que é isso? Eu direi que é boa fortuna ou terrível, mas benéfico? É doloroso, mesmo se eu salvo minha vida pelos meus próprios males.

Velho Escravo:   Porque te entristeces, mulher, ao ouvir as notícias?

Clitemnestra:      Dar à luz é uma coisa estranha. Mesmo quando é maltratada, a mãe não odeia os seus filhos.

Irena Papas como Electra e Aleka Katselli como Clitemnestra em Ilektra, de Michalis Cacoyannis (1962)

Composta provavelmente poucos anos antes da tragédia de Sófocles, a Electra de Eurípides dá uma versão consideravelmente diferente da estória, mesmo se o desfecho – o assassinato de Clitemnestra e Egisto por Orestes – permanece o mesmo. Aqui, Clitemnestra proclama que não foi a morte de Ifigênia que a levou a matar Agamemnon, mas a presença de Cassandra, a “escrava sexual” trazida de Troia, que ele preferiu à sua esposa. Mais que a mãe dolorida, foi a esposa traída que se vingou. No mais, nas palavras da personagem parece-se ilustrar o aspecto da obra de Eurípides que o levaram a ser qualificado, por alguns críticos modernos, como um “feminista” de vanguarda:

Eurípides, Electra, 1030-1040

Clitemnestra:  Após isso [a morte de Ifigênia], mesmo se eu fora injustiçada, eu não me enraiveci e eu não o teria assassinado. Mas quando ele chegou, trazendo para dentro de casa essa ménade, ele a levou à sua cama e tinha, ao mesmo tempo, duas esposas na mesma casa. As mulheres são tolas, eu não o nego. Mas, dito isso, quando o marido peca, rejeitando o leito conjugal, a mulher quer imitá-lo e toma um outro amante. Então é contra nós que se manifestam as censuras, e os homens culpados não escutam repreensão alguma.

A construção da Clitemnestra euripidiana é ainda mais complexa quando se considera a sua tragédia póstuma, Ifigênia em Áulis, que, como sugere o título, encena o sacrifício da filha de Agamemnon executado pelo próprio pai, afim de apaziguar a deusa. Não deve ter sido pouca a surpresa dos espectadores atenienses ao ver a cruel vilã que bem conheciam representada como uma esposa piedosa, uma mãe amorosa, cuja morte da filha leva a um sincero desespero. A habilidade retórica e o vigor com os quais justifica seus crimes em Electraé aqui usada para defender a vida da filha. No mais, os gregos não deixariam de perceber uma ironia ao escutar Clitemnestra acusar a irmã, Helena, do crime que ela mesmo cometeria no futuro, o adultério:

Eurípides, Ifigênia em Áulis, 1166-1178

Clitemnestra: E se alguém te perguntar porque queres matá-la, dize, o que responderás? O eu devo dizer no teu lugar? Para trazer de volta Helena, a mulher de Menelau. Belas palavras, dar teus filhos em pagamento por uma mulher perdida, comprar o que há de mais vil com os bens mais preciosos. Vai, se tu partires à guerra deixando-me em casa, e ficares ausente durante um longo tempo, como pensas que estará o meu coração quando eu vir que as cadeiras onde ela sentava estão vazias, que vazio está o seu quarto virginal? Quando eu, sentada sozinha, entre lágrimas, me lamentarei sem cessa por ela: ‘Ele te destruiu, minha filha, o pai que te deu vida, ele mesmo te matou, não um outro e não uma outra mão’.

Quatro séculos depois da época áurea do teatro ateniense, foi o grande filósofo romano Sêneca (c. 4 – 65) que retomou a saga dos Átridas em sua tragédia intitulada, como a de Ésquilo, Agamemnon. A peça nos oferece uma nova Clitemnestra, diferente sob muitos aspectos daquela da tradição grega. Aqui vê-se é uma mulher atormentada, violentamente consumida por suas paixões, que hesita a cometer o crime. Em sua primeira fala, que não deixa de lembrar o monólogo da Lady Macbeth, ela tenta convencer-se a tomar o caminho do mal, abandonando toda piedade:

Sêneca, Agamemnon, 108-115
Clitemnestra: Por que, alma fraca, buscas conselhos seguros? Por que hesitas? A melhor via já foi decidida. Tu poderias ter conservado o pudor do leito nupcial, e ter guardado o cetro com uma casta fidelidade. Perderam-se, porém, a moral, a justiça, a decência, a piedade e a fidelidade; e o pudor, quando se perde, não sabe voltar. Tira os freios e entrega-te de cabeça baixa à toda vilania. O caminho do crime é sempre seguro para os criminosos.

A Clitemnestra de Sêneca é uma vítima daquilo que os estoicos nomeiam affectus, as paixões ou emoções baixas, ignóbeis, que a sabedoria filosófica ensina a excluir da vida. Porém, antes de ceder ao crime, por insistência de Egisto, vemos, pela primeira vez na literatura antiga, a personagem debater-se entre o desejo de vingança e o amor conjugal:

Sêneca, Agamemnon, 131-141

Clitemnestra: Dores maiores me torturam que não podem esperar. As chamas consomem minhas medulas e meu coração. Misturado à dor, o pavor submete os meus sentidos, meu peito bate com inveja. Ora, um vil desejo põe minha alma sob o jugo e me proíbe de vencer. Ora, entre chamas de minha mente obcecada, mesmo cansado, vencido, arruinado, o pudor ainda se rebela.

A literatura posterior oferece-nos algumas outras versões da rainha mítica de Micenas das quais este ensaio não pode tratar. Mencionemos, por exemplo, a Clitemnestra diabólica da Tragédia de Orestes do poeta cartaginês Dracôncio (V século d.C.), ou, em períodos mais recentes, a Clitemnestre da Ifigênia(1674) de Jean Racine, aquela d’As Moscas(1943) de Jean-Paul Sartre, ou ainda Christine Mannon, na trilogia Electra e os Fantasmas(1931) de Eugene O’Neill, uma releitura da Oresteia.

Em conclusão a este ensaio, porém, uma Clitemnestra merece a nossa atenção, aquela que o poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) criou no libreto da ópera Elektra (1909), de Richard Strauss (1864-1949). O texto de Hofmannstahl difere consideravelmente da Electra de Sófocles, que lhe serviu de inspiração. Altamente influenciado pelos movimentos modernistas e expressionistas que vigiam na sua Viena natal, o autor criou uma obra marcada por uma bruteza selvagem, onde as obsessões dos personagens tornam-se quase patologias (vale lembrar que a Viena do início do século foi o berço da psicanálise). No mais, é em Elektra que se encontra a música mais moderna e mais radical de Strauss: realização musical perfeita das palavras do libreto (ou seria o libreto a realização verbal perfeita da música?) A Clitemnestra da ópera é uma mulher velha e neurastênica, aterrorizada por pesadelos, que descreve a si mesma como “um corpo vivo como um campo deserto”. Ela busca em Electra, filha que a odeia, um remédio para os seus males, algum rito ou sacrifício que a faça dormir bem. E como, na ópera, as palavras não vivem sem a música, acompanho a tradução da grande cena de Clitemnestra com um vídeo de uma versão cinematográfica de Elektra, em que a personagem é interpretada com intensidade vulcânica pela soprano Astrid Varnay.

H. von Hofmannstahl, Elektra

Clitemnestra:  Eu não passo boas noites. Tu conheces algum remédio contra sonhos?

Electra aproximando-se: Tu sonhas, mãe?

Clitemnestra:  Quem envelhece, tem sonhos. Mas se pode afugentá-los. Há ritos. Deve haver ritos para tudo. É por isso que eu me cubro de pedras, pois há em cada uma, com certeza, um poder. Deve-se apenas saber como utilizá-lo. Se tu quisesses, tu poderias me dizer algo que me seria útil.

Electra: Eu, mãe, eu?

Clitemnestra:  Sim, tu! Pois tu és inteligente. Na tua cabeça, tudo é forte. Tu poderias dizer muitas coisas que me ajudariam. Mesmo se uma palavra nada mais é, nada mais que um sopro. Mas entre o dia e a noite, quando eu estou deitada de olhos abertos, algo rasteja sobre mim, não é uma palavra, não é uma dor, não me oprime, não me estrangula, não é nada, nem mesmo um pesadelo, mas é tão terrível que minha alma deseja ser enforcada, e cada membro do meu corpo grita pela morte. Porém, eu estou viva e nem mesmo doente; tu me vês, eu pareço estar doente? Pode-se então morrer vivendo, como um cadáver que apodrece? Pode alguém se deteriorar quando não está nem mesmo doente? Deteriorar-se com todos os sentidos acordados, como uma roupa carcomida pelas traças? Então eu durmo e sonho, sonho ao ponto que a medula dos meus ossos se liquefaz. Daí eu acordo de sobressalto, e nem a décima parte do relógio d’água escorreu, e o que sorri por de trás da cortina não é a pálida aurora, não, mas ainda a tocha na frente da porta, que se sacode atrozmente como se fosse viva e espreita o meu sono. Esses sonhos devem ter fim! Qualquer que ele seja, todo demônio nos deixa em paz, uma vez que o sangue correto é derramado.

Electra: Cada demônio?

Clitemnestra: Mesmo se eu tiver de chacinar cada animal que rasteja ou voa, e acordar e dormir no vapor do sangue, como os pássaros de Thule[2]nas brumas de vermelho-sangue: eu não quero mais sonhar!

[1] Ou seja, as Erínias ou Fúrias, divindades infernais que castigam os delitos dos mortais perseguindo-os incessantemente.

[2] Assim se designava, na Antiguidade, a localidade mais setentrional do mundo.

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