Quando, em 1987, saiu o primeiro livro de contos de Tatiana Tolstáia (Leningrado, 1951-), neta do escritor Alekséi Tolstói e formada em Filologia clássica pela Universidade Estatal de Leningrado, seu conterrâneo, o poeta Joseph Brodsky (1940-1996), exilado desde 1972, assim o saudou: “a voz mais original e luminosa da prosa russa atual”. Tratava-se de No degrau de ouro sentávamos (На золотом крыльце сидели ), esgotado — conforme diz a imprensa — em menos de quatro horas. A primeira edição brasileira data de 1990, na excelente tradução de Tatiana Belinky (No degrau de ouro; Companhia das Letras). Agora, pela Editora 34, sai uma nova edição, da mesma tradutora.
Além de No degrau de ouro, Tatiana Tolstáia tem outros livros de contos e um romance intitulado The Slynx (corruptela de Lynx – Lince, no original, Кысь), uma visão distópica da vida russa pós-nuclear, traduzido para o inglês por Jamey Gambrell (New York Review Books, 2003) e muito bem recebido por crítica e público nos Estados Unidos, onde Tatiana e sua família permaneceram de 1990 a 1999. Hoje, ela vive em Moscou.
Em uma rápida pesquisa online, encontramos muitas informações a respeito da autora. Nos EUA, foi professora de literatura russa e de escrita criativa (primeiro em Princeton, depois no Skidmore College), além de ter sido uma conferencista bastante ativa. Como jornalista, contribuiu para diversas publicações, como a New York Review of Books e a The New Yorker. Com sua amiga Dunya Smirnova, entre 2002 e 2014, co-apresentou um programa de televisão cultural russo, The School for Scandal (Школа злословия, em homenagem à peça do dramaturgo anglo-irlandês Richard Sheridan), no qual conduziu entrevistas com diversos representantes da cultura e política russas contemporâneas.
Estilo inovador
A escritura do livro de Tatiana acompanha — como as novelas de Lev Tolstói Infância, Adolescência, Juventude — as etapas da vida humana, a essas se acrescentando Maturidade e Velhice. Só que, diferentemente de Tolstói, Tatiana não usa a técnica do estilo indireto livre, em que há descrições e comentários do narrador acompanhando as falas dos protagonistas. O estilo de Tatiana, que tanto impressionou Brodsky por ocasião do lançamento do livro na Rússia, poderia ser chamado de “estilo direto livre”. Um estilo em que o narrador entra nos personagens e passa a sentir e a falar como eles, mudando o tom e o léxico conforme a fase da vida em que cada um se encontra, e expressando não o que se espera que cada personagem fale ou pense, mas justamente o contrário: pensamentos impróprios e desejos inconfessáveis.
A natureza, o aconchego, os cheiros, as cores ( especialmente na infância), a cumplicidade, os “pontinhos estranhos” que se descobrem em cada um são ao mesmo tempo o que encanta e o que horroriza. “Dizem que de manhã cedinho viram junto ao lago um homem completamente pelado. Palavra de honra. Não conte à mamãe. Sabe quem era ele?… ‘Não pode ser’. É verdade. Estou te dizendo. Ele pensava que não havia ninguém ali. Mas nós estávamos nos arbustos.’ E o que foi que vocês viram?’ Tudo.” “[Peters] aproximou-se da janela da qual tencionava cair e puxou de leve o batente. A janela estava bem calafetada para o inverno, ele mesmo a calafetara e teve dó de estragar o seu trabalho. Então ele ligou o forno, colocou a cabeça cheia de migalhas de pão e esperou. Quem comeria papa de arroz em sua memória?” (p. 213)
Procedimentos
A técnica de Tatiana pressupõe alguns procedimentos próprios a outros escritores russos de vanguarda, como Daniil Kharms (1905-1942), por exemplo, quando o autor faz os animais e as coisas sentirem e falarem: “—Que horror!—dizem os gatos./ Aqui mesmo nós ficamos!” (é o que lemos em Os gatinhos, de 1937, publicado em Os sonhos teus vão acabar contigo, de 2013, e retomado em 7 Gatas, publicado este ano pela Editora Kalinka. São procedimentos vistos também em autores brasileiros contemporâneos, como Dirce Waltrick do Amarante no livro de contos A natureza das coisas (Patuá, 2024). Em “O pinheiro que fugiu para o mato”, lemos que “Num entardecer, depois de uma chuva terrível, o pinheiro viu ao longe o caminhão do Corpo de Bombeiros. Olhou para o fio do poste: rompido; para o bueiro: entupido. ‘Pronto’, pensou, ‘vai sobrar para mim’”.
Só que, em Tatiana, há, além disso, uma cumplicidade entre objetos e ambiência: “Num dos fogões conversa consigo mesma a sopa de repolho de alguém… Uma galinha dentro da sacola de rede pende atrás da janela, balançando-se ao vento negro como uma condenada. Uma árvore nua e molhada, curvada de tristeza…” (p. 46) “E baixo, sobre o jardim balançando os topos das escuras colinas arborizadas, passa voando um suspiro tenso e triste: foi o dia que morreu”.
As sensações cheias do frescor da infância — “a lua não cedia, escapava como sabão entre os dedos, voava através das esgarçadas nuvens do Okkervil… quão irrequietas se agitam as sombras diáfanas e domesticadas de nossa imaginação, quando os ruídos e odores da vida viva penetram no seu mundo enevoado e fresco!” (p. 34) — vão se afogando em não acontecimentos, à medida que a idade vai avançando. “E em casa, a velha mal cheirosa moradia comunal, e o imortal velhinho Ashkenazi, e o Fêdia, familiar até uivar de tédio, e toda a sequência dos anos futuros, ainda não vividos mas de antemão conhecidos, através dos quais teria que se arrastar e se arrastar, como de uma poeira que cobriu a estrada até os joelhos, até o peito, até o pescoço. E o canto das sereias, enganadoramente sussurrando ao tolo nadador doces palavras sobre o que nunca será, silenciou para sempre.” (p. 130)
Atmosfera
Outro escritor que tem muito em comum com Tatiana é Tchekhov. A atmosfera tchekhoviana, como a de Tatiana, repousa como que em senhas de reconhecimento tipicamente russas: barril de chuva, moitas de urtigas, torrente de porcelana, plumas de avestruz, o framboesal mosquitoso. “Nós pulávamos num pé só, curávamos arranhões com cuspe, enterrávamos tesouros, cortávamos minhocas com canivete, espionávamos a velha lavando no lago suas calças cor-de-rosa, e encontramos debaixo do bufê do senhorio a fotografia de uma orelhuda família espantada, com a dedicatória: ‘Em duradoura, duradoura lembrança do ano de 1908’.”
Finais
Os finais de Tatiana também têm sua gradação. Desde a doce melancolia do “tolo nadador”, passando pelo inevitável pressentimento do fim: “Escurecia. O vento outonal brincava com papeluchos, arrancava-os das cestas do lixo. Ela espiou pela última vez o armazém que qual verme transparente se encravou no pé do castelo. Parou um pouco junto aos tristonhos balcões — ossos de boi, purê marca Aurora. Pois então enxuguemos as lágrimas com o dedo espalhemo-las pelas faces, cuspamos nas lâmpadas votivas: nosso deus está morto e o seu templo está vazio. Adeus!” (p. 203). Até, afinal, a chegada desse fim: “Trevas apertavam-lhe o coração. Soou a hora da partida. …E a fila o empurrava e o apressava, e ele deu um passo à frente, já sem sentir as pernas, e cheio de gratidão recebeu de mãos carinhosas a merecida taça de cicuta.” (p. 90).
Uma obra-prima
Mas, ante tanta inexorabilidade, há uma fresta que não pode ser esquecida, e é com ela que Tatiana se redime (de qualquer coisa…) e assina sua obra-prima: “Novas crianças brincavam nas poças com seus baldinhos e, nada desejando e nada lamentando, Peters sorriu agradecido para a vida — apressada, passageira, indiferente, ingrata, enganadora, zombeteira, sem sentido, estranha — maravilhosa, maravilhosa, maravilhosa.”
Aurora Fornoni Bernardini é escritora, tradutora e professora titular da USP no Departamento de Línguas Orientais e na pós-graduação no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Graduou-se em inglês (1959-1963) e em russo (1962-1966) pela USP, onde ainda concluiu seu mestrado (1970, sob orientação de Boris Schnaiderman) e doutorado (1973, sob orientação de Alfredo Bosi) sobre o futurismo russo e italiano, e sua livre-docência (1978) sobre Marina Tsvetáieva. Dedica-se também à pintura, tendo realizado exposições individuais e coletivas.