Alceste ou a morte em troca da vida

Entre todos os mitos gregos, um em particular dá a ver uma representação da “morte como resgate” interessantemente próxima à soterologia cristã: Alceste.

por Gabriel Nocchi Macedo

Revelada nos Evangelhos e nas epístolas de Paulo, comentada e explicada pelos Padres da Igreja (Gregório de Nissa, Orígenes, Agostinho, entre outros) e por teólogos medievais (Anselmo, Abelardo), a expiação é o ponto focal da doutrina soterológica cristã. Ao morrer, Jesus Cristo reconcilia os homens com Deus, trazendo-lhes salvação (Segunda Epístola aos Tessalonicenses, 5, 9-10):

Pois Deus não nos destinou à ira, mas à obtenção da salvação através de nosso Senhor Jesus Cristo que morreu por nós, afim que, acordados ou adormecidos, nós vivamos com ele.

A expiação é, em outras palavras, o dom da vida pela morte: a morte do Cristo é o resgate, como diz a primeira epístola a Timóteo, necessário à remissão dos pecados e à vida eterna do homem junto a Deus. A noção de “morrer por” ou “no lugar de” (huper ou anti no original grego do Novo Testamento), ou seja, que a morte de um paga pela vida de outro(s), não é porém particular ao Cristianismo, mas encontra-se presente no pensamento mítico-religioso dos antigos gregos. O ato do sacrifício, central a diversos politeísmos antigos, e bem conhecido no mundo grego desde Homero, é em si o dom de uma vida terrestre, geralmente de animais, na espera de um contra-dom dos deuses, normalmente, o apaziguamento da ira desses contra os homens. Em casos extremos, como o da expedição grega a Tróia, paralisada em Áulis pela ausência de ventos favoráveis, um sacrifício de maior valor é exigido; no caso, o da princesa Ifigênia, filha de Agamêmnon, chefe da expedição.

Entre todos os mitos gregos, um em particular dá a ver uma representação da “morte como resgate” interessantemente próxima à soterologia cristã. Alceste é a virtuosa esposa do rei Admeto de Feras, a quem as deusas do destino, por intercessão de Apolo, concedem um prolongamento da vida se, no momento de sua morte, uma outra pessoa morrer no seu lugar. Face à recusa do pai e da mãe de Admeto, cujo amor à própria vida é maior que o dever paternal, Alceste entrega-se voluntariamente à morte, movida pelo amor a seu esposo. Conhecem-se diferentes versões do fim da estória de Alceste. Ora os deuses apiedam-se e permitem à rainha retornar à vida, ora o herói Héracles desce aos infernos e a resgata.

Alceste et Héracles na catacumba da Via Latina, Roma (século IV)

O relato conservado mais completo do mito de Alceste é a tragédia epônima de Eurípides, apresentada no festival de Dionísio em Atenas em 438 a.C. O poeta retrata Alceste como uma figura de grande virtude, esposa, mãe e rainha piedosa (Eurípides, Alceste 320-325):

Alceste:

Pois eu devo morrer, e não é amanhã nem depois de amanhã que este mal me atingirá, mas em breve estarei entre aqueles que não mais são. Alegrem-se: tu, esposo, de ter tido a melhor de todas as esposas e vocês, meus filhos, de ter nascido da melhor das mães.

O ato de Alceste é tanto mais valoroso quanto ele depende unicamente da vontade própria daquela que se sacrifica. Não como o Cristo, sapiente que seu destino faz parte do desígnio divino e cuja morte é o resgate necessário à salvação do mundo, a morte de Alceste é, em Eurípides, uma escolha motivada pelo amor, uma decisão que não lhe era obrigatória e que ela, como os pais de Admeto, poderia ter recusado (287-297):

Alceste:

Eu não quis viver separada de ti com filhos órfãos e não desejei mais ter os dons da juventude que me alegravam. E porém, aquele que te gerou e aquela que te deu à luz abandonaram-te, na idade em que a eles convinha deixar de viver e em que lhes convinha salvar o filho em uma morte gloriosa. Pois tu eras o único filho, e não havia esperança que eles tivessem outros filhos após a tua morte. E nós viveríamos, eu e tu, o resto de nossas vidas e tu não gemerias privado de tua esposa e com filhos órfãos.

Eurípides usa, a propósito de Alceste, a fraseologia que, séculos depois, aparece no Novo Testamento em referência ao Cristo.

(155-6)  Serva:

E como melhor mostrar que se honra o marido do que morrendo por ele? (huper)

(340)   Admeto:

Tu deste em troca (anti) o que tens de mais precioso para salvar a minha vida.

(524)   Héracles:

Eu sei, ela submeteu-se à morte no teu lugar (anti).

A figura de Alceste foi vista, durante toda a Antiguidade, como um exemplo maior da virtude feminina. Platão afirma que os deuses mesmos a admiravam e Juvenal, cujas opiniões sobre o sexo oposto não eram menos que misoginia, menciona-a como um paradigma de decência ao qual as mulheres romanas, adúlteras e criminosas, não se podiam igualar. Em um epigrama funerário grego, uma mulher declara-se uma “nova Alceste”, porque morreu por seu marido, o único homem que amou. Nos primeiros séculos do cristianismo, teólogos não somente usaram Alceste como exemplo de virtude, mas também fizeram paralelos entre o mito da rainha grega e o Cristo. Epifânio, bispo de Salamina em Chipre no século IV, por exemplo, inclui a rainha de Feras em uma lista de personagens mitológicos que fizeram a experiência da vida após a morte. O autor faz uma alusão clara ao Cristo, ao dizer que Alceste foi trazida de volta à vida por Héracles três dias após sua morte. A partir da época romana, a imagem de Alceste, com a cabeça e os ombros cobertos em sinal de modéstia, era um dos motivos preferidos da decoração sepulcral, uma tradição que parece ter continuada no cristianismo. De fato, a morte de Alceste e o seu retorno à vida com Héracles foram pintados ao lado de motivos cristãos na catacumba da Via Latina (século IV), evocando, sem dúvida, a esperança da ressurreição.

Jean-François-Pierre Peyron, Alceste mourante (1785)

Após Eurípides, a mais interessante representação literária do mito de Alceste é um curto poema latino anônimo, composto no III ou IV século d.C., e conservado em único manuscrito que foi produzido e utilizado em uma comunidade religiosa (um monastério ou uma escola cristã, provavelmente) no alto Egito. Mesmo se o texto não foi, em toda probabilidade, escrito por um autor cristão, pode-se imaginar, no solilóquio de Alceste e nos símbolos usados no poema, o significado pungente que o mito pagão podia ter para os cristãos. Ao final, por exemplo, narra-se como Alceste, feliz com o seu destino, faz as últimas demonstrações de afeto a seu marido, filhos e servidores e toma as providências para o seu próprio funeral (Alcestis Barcinonensis, 107-114):

Apressando-se em direção à morte, Alceste estava deitada colada a seu esposo e via, moribunda, as lágrimas do homem. Ela ordena aos filhos e ao marido que chorem por ela com frequência; dá ordens aos servos, organiza, alegre, seu funeral com leitos pintados com pavões coloridos, folhagens exóticas e aromas de incenso e açafrão.

De particular interesse nessa passagem é a figura do pavão pintado no leito fúnebre. Além de ser associado a Hera, rainha dos deuses, o majestoso pássaro oriental era, para os gregos e romanos, símbolo da imortalidade, pois se dizia que sua carne não apodrecia depois da morte. Adotado pelos cristãos, esse símbolo foi prolificamente utilizado na arte sacra, da Antiguidade até o Renascimento. Além da imortalidade da alma, o pavão representa, em sua interpretação cristã, a omnisciência de Deus (os ocelos de sua cauda multicolorida são como os olhos de Deus que tudo vêm), e a ressurreição (a cada ano, suas plumas caem e novas, mais brilhantes, crescem no seu lugar). Os cristãos que, no IV século, liam o poema latino sobre Alceste, cientes de que se trata de um mito pagão, não deixariam de associar a temática e a simbologia do texto aos ensinamentos centrais da sua religião.

Ora visto sob a perspectiva da soterologia cristã, ora não, o sacrifício voluntário de Alceste nunca cessou de inspirar poetas e artistas, dos quais só damos poucos exemplos. Christoph Wilibald Gluck fez da estória uma das mais belas óperas do período clássico (Alceste, 1767). Rainer Maria Rilke cantou a o amor incorruptível e devoção da mulher que permite ao homem um vislumbre do transcendental (Alkestis, 1907). Em sua peça A Cocktail Party (1949), confessadamente inspirada pela Alceste euripidiana, T.S. Eliot combina elementos míticos e simbologia cristológica para mostrar que é pelo sacrifício que se atinge a salvação. Tão rico foi o destino de Alceste na arte ocidental e tão profundo o significado do seu ato que não se pode deixar de considerar proféticos os versos de Eurípides sobre a sua heroína (Alceste, 446-454):

Amiúde os servidores das musas cantar-te-ão em celebração, com a carapaça da montanha a sete cordas e em hinos sem lira, em Esparta, quando o ciclo do ano traz de volta o mês de Carneios, e a lua plana toda a noite, e em Atenas, brilhante e bem-aventurada. Tal é a melodia dos versos que pela tua morte tu deixas aos aedos.

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