por Rafael Baliardo
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No final do ano passado, antes da pandemia, quando as pessoas podiam ainda circular despreocupadamente por aí, a escritora canadense e best-seller mundial Margaret Atwood pegou a estrada como se fosse um astro da música popular e começou a turnê de lançamento de seu livro mais recente, o aguardado blockbuster Os Testamentos (2019), tardia continuação de O Conto da Aia (1985). Mesmo vendendo livros como pães quentes, Atwood jamais desfrutou, em absoluto, do imperscrutável renome de ser associada à alta literatura. Comparada à compatriota Alice Munro, por exemplo, Atwood, ao longo da carreira, conquistou um tratamento respeitoso, mas um tanto virtual com o louvor abonador da crítica, diferente da colega ganhadora do Nobel de literatura em 2013, reconhecida sobretudo pelo trabalho com contos e narrativas curtas — gênero que Munro dominou como poucos pares entre os contemporâneos, a ponto de ser apelidada de “Tchekhov canadense”. Oito anos mais velha que Atwood, filha de um negociador de peles de raposa da região do Lago Huron, em Ontário, Alice Munro notabilizou-se como autora de narrativas curtas ambientadas em localidades ermas do Canadá. Jamais, entretanto, mobilizou leitores em escala mundial como Atwood é capaz de fazer. Ambas são escritoras nascidas nos anos 1930, extremamente bem-sucedidas, cada uma ao seu modo, e representam o padrão exportação das letras canadenses para o mundo.
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Em razão de O Conto da Aia ter sido adaptado para uma série de TV pela plataforma de streaming Hulu e de figuras como Trump, Bolsonaro e afins terem ascendido ao poder nos últimos anos, Margaret Atwood, enquanto cruzava o mundo para divulgar a continuação de sua distopia literária escrita na era yuppie sob os anos Reagan, exerceu o cada vez mais raro papel de intelectual público oriundo da literatura, que, em um passado não muito distante, correspondia ao artista habilitado a comentar a miséria do cotidiano — não em virtude de suas credenciais acadêmicas ou expertise em temas pontuais, mas pela força ou impacto de sua ficção ou poesia. Viajando da Europa à América do Sul, a autora canadense, já idosa, falou dos incêndios na Austrália (que ocupavam os noticiários na virada do ano), de Trump, Bolsonaro, aborto, feminismo (tema de fundo de O Conto da Aia e Os Testamentos) e do aparente ocaso da democracia. Lotando auditórios, Atwood apresentava-se cercada sempre pela imprensa e por um séquito de jovens leitoras que vestiam o manto vermelho e o chapéu branco que caracteriza as personagens seviciadas na história de pesadelo totalitário que a tornou célebre. A revista Time, por ocasião do lançamento da continuação de O Conto da Aia, estampou a autora na capa, a chamando de “profeta relutante”. Com imagens antigas da escritora em Berlim, em 1984, concebendo, diante da máquina de escrever, sua obra de maior repercussão, a revista tratou dos mistérios deixados em aberto pelo romance lançado nos anos 1980 (que a continuação se incumbiu de resolver) e da “capacidade visionária” de Atwood em relação à deterioração social e política que parece estar em curso. Isto antes de a pandemia entrar na equação.
No Canadá, como em outros lugares, as conferências apinhadas de gente seguiam o roteiro de superprodução. Sempre antes de a autora subir ao palco, era projetado um clipe de cerca de três minutos com trilha sonora de impacto e cenas da eleição de Trump, alternadas com imagens da marcha de mulheres que sucedeu a posse do americano em 2017 (com algumas manifestantes vestidas com o chapelão e o manto das aias) e gravações de protestos mundo afora. Em Toronto, dias antes de o livro chegar às livrarias, um carregamento inteiro com os volumes de Os Testamentos foi furtado do prédio da TV pública canadense, o que deu medida à aura de popstar da escritora.
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Em uma das paradas pelo seu país natal, Atwood foi falar à plateia da menor das províncias do Canadá, a Ilha do Príncipe Eduardo. A ida ao local teve um significado peculiar para autora, comparado com outros destinos da excursão. Como ela própria confidenciou ao público, visitar o lugar assumia uma expressão pessoal: não apenas pelo fato de os pais da escritora terem nascido na região das províncias marítimas, tampouco apenas porque a Ilha do Príncipe Eduardo é considerada o berço político do país, onde os fundadores do Canadá começaram a alinhavar a ideia de impor a autonomia aos ingleses sem precisar lavar de sangue o solo como fizeram os americanos. A razão da deferência estava relacionada ao fato de a ilha ser o local de origem e ambiente das histórias de outra escritora canadense, predecessora de nomes como Margaret Atwood e Alice Munro e um fenômeno único da literatura de língua inglesa produzida na América do Norte, a romancista e autora de livros infanto-juvenis Lucy Maud Montgomery (1874-1942).
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“Antigamente quando você dizia que era uma escritora do Canadá, a única coisa que ouvia de volta era: ‘Eu amo Anne de Green Gables’!”, contou Atwood à plateia que foi vê-la em Charlottetown, capital da Ilha do Príncipe Eduardo.
Lucy M. Montgomery é um caso único mesmo comparado à autora de O Conto da Aia, porque, a exemplo de um número limitado de ficcionistas, realizou a proeza de inventar uma personagem que transcende os livros, supera a prova do tempo e renova o culto em torno de sua personalidade: a órfã de tranças ruivas e cheia de sardas Anne Shirley. “A mais querida e amável criança da literatura desde Alice”, disse Mark Twain, criador ele próprio de dois pirralhos imortais, Tom Sawyer e Huck Finn.
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Esta é uma façanha não só para a literatura canadense de língua inglesa, descrita com injustiça como sendo uma literatura nanica de um país gigante (a literatura canadense francófona é um capítulo à parte). De todo modo, o preconceito deve-se ao fato de, em sua origem, a literatura do Canadá nascer indiferenciada das letras produzidas nas colônias inglesas ao sul, consequência da migração em massa de puritanos da Nova Inglaterra para o norte a partir de 1760 e, posteriormente, do êxodo, também para o norte, dos lealistas da Coroa Britânica que se recusavam a tomar parte na guerra pela independência dos colonos americanos. O primeiro romance histórico do Canadá,“Wacousta (1832), de John Richardson (1796-1852), que tem como cenário as guerras indígenas de 1769, chegou a ser reputado também como o primeiro romance canadense, embora, no gênero, seja antecedido pelo Convento de Santa Úrsula ou A Freira do Canadá (1824), escrito por uma mulher, Julia Catherine Beckwith (1796-1867) — o que remete à tradição de autoras canadenses, em que Montgomery, Munro e Atwood, entre outras, estão inseridas.
Menos conhecida fora do mundo anglófono, L.M. Montgomery representa um caso exemplar da eloquência feminina nas letras (e assumo o risco de receber eventuais petardos acusando o ensaísta do “vício” do essencialismo). Sua criação mais célebre, Anne, lhe deu fama imediata e projetou seu nome além do rótulo de escritora de romances infanto-juvenis. Como personagem, Anne, por sua vez, antecipou muito dos valores caros ao feminismo, mas com força literária tão ampla que paira acima de qualquer apelo sectário.
Lucy Maud nasceu em uma pequena comunidade na rural Ilha do Príncipe Eduardo em 1874. A mãe da autora morreu de tuberculose antes que a filha completasse dois anos. Sem condições pessoais de cuidar de Lucy, o pai a entregou sob a custodia dos avós maternos. Tanto a ausência dos progenitores quanto o ambiente pastoril em que foi criada tiveram profundo impacto sobre a escritora, que cresceu solitária, tendo que recorrer à sua formidável imaginação. A localidade em que Montgomery passou os anos formativos, onde se situava a propriedade dos avós, em Cavendish, uma península ao norte da ilha, inspirou a ficcional Avonlea, lugarejo que abrigava a fazenda Green Gables — nome que ela tirou, na verdade, de uma propriedade vizinha a dos seus avós.
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Este é o cenário da obra que inaugura a série de livros que Anne protagoniza, “Anne de Green Gables” (1908), um sucesso literário instantâneo. Ao fim da Primeira Guerra, L.M. Montgomery já era uma autora popular em todos os países de língua inglesa e um fenômeno editorial nos Estados Unidos e Canadá. Seguiram então outros títulos que acompanham o amadurecimento de Anne Shirley, com temas que antecipam, ao mesmo tempo, a mudança de visão sobre a infância e a adolescência, como estas passariam a ser conceituadas no século XX, e a própria luta pela emancipação social e política das mulheres. Após o primeiro romance, a ordem de publicação de alguns dos livros não segue linearmente a cronologia da vida de Anne, com a autora indo e voltando na linha do tempo, de modo que histórias narradas em livros publicados muito mais tarde antecedem aquelas descritas em livros lançados mais de uma década antes.
Destratada em seu tempo por críticos modernistas, que torciam o nariz para o timbre de seu estilo narrativo, Montgomery construiu, nos romances que compõem a série (ecoado também em outros títulos de sua obra), um painel ilustrativo da vida, do destemor e dos dissabores de uma jovem mulher ao fim da era vitoriana. O universo de Anne ainda hoje interessa leitores, mais de um século depois, e inspira o interesse de estudiosos pelos mais diversos vieses, do feminismo à perspectiva naturalista. Décadas após a publicação de seus livros, não faltou quem considerasse L.M. Montgomery uma espécie de resposta estética e literária do Canadá a Jane Austen (1775-1817).
Logo após o primeiro livro, Montgomery publicou Anne de Avonlea (1909), que acompanha a personagem dos 16 aos 18 anos, quando a garota se torna professora na escola local, e Anne da Ilha (1915), que trata também do empenho de Anne em dar vazão a ambições acadêmicas, algo considerado inadequado para uma mulher daquele tempo. A Casa dos Sonhos de Anne (1917), que aborda os seus anos de recém-casada, embora seja o quarto a ser publicado, é o quinto na ordem cronológica. Os acontecimentos descritos no livro de 1917 são precedidos pelo epistolar Anne de Windy Poplars, de 1936, que, na ordem da história, está justamente entre Anne da Ilha e A Casa dos Sonhos de Anne, embora tenha sido publicado apenas nos anos 1930.
O sexto livro na ordem cronológica foi publicado em 1939, Anne de Ingleside, cujo enredo precede as histórias narradas em obras lançadas anos antes, Rainbow Valley (1919) e Rilla de Ingleside (1921) — portanto, na linha do tempo de Anne, o sétimo e o oitavo livros da série.
O livro final (o nono) apareceu apenas recentemente. Inacabado quando da ocasião da morte da autora, The Blythes are Quoted foi publicado na íntegra apenas em 2009 e consiste numa coletânea de contos e poemas que remetem ao universo de Anne. Além dos nove livros da série, L. M. Montgomery deixou ainda uma lista abundante de romances, contos, poesia, ensaios e diários.
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Orfandade x extroversão
Uma multidão de admiradores e leitores mundo afora realiza peregrinações sazonais ao Canadá para frequentar museus temáticos e visitar lugares que inspiraram a criação de personagens da série de livros. Entre os leitores japoneses, por exemplo, que estão entre os admiradores mais ávidos de Montgomery, não é raro presenciar aqueles vestidos à caráter que vêm à ilha para celebrar aniversários e casamentos em locais que remetem às histórias.
Anne, claro, principalmente no romance de estreia, insere-se no rol de órfãos da literatura, sendo recorrente o apelo da criança sem os pais, munida apenas, no caso da personagem, de uma imaginação prodigiosa, o amor à terra que habita e os vínculos com a comunidade onde vive. Sozinha no mundo, Anne “não fecha a matraca”, em posse de uma capacidade imaginativa aparentemente inesgotável, o que lhe resgata dos desgostos da orfandade. Contra o previsível, a forma como lida com a vulnerabilidade de órfã passa ao largo de se tornar maliciosa, socialmente astuta ou recorrer à amargura ou à agressividade. Responde, pelo contrário, com um apetite apaixonado pelo mundo e pelas pessoas, o que não lhe garante paz e segurança, porque, criada em orfanatos e maltratada e rejeitada por outra família até ser adotada pelos irmãos Cuthbert, de Green Gables, sua curiosidade é socialmente inadequada. Nunca aprendeu a modular sua imaginação.
Outro aspecto a se destacar é que, no apagar das luzes da era vitoriana, o próprio conceito de infância era outro. Montgomery antecipa assim muitos dos valores que seriam consolidados apenas em meados do século XX, como compreender a infância e adolescência como fases características do desenvolvimento humano, distintas biológica e psicologicamente, portanto, da vida adulta. Nos romances que seguem, Anne amadurece e deseja para si mais do que a época permitia a uma jovem mulher. Querendo aprofundar seus estudos, tem de lutar para ir além do posto de professora da escola local em Avonlea, único papel profissional reservado a mulheres; ainda assim, apenas até que casassem e assumissem suas obrigações domésticas. Tais questões lançam luz sobre os conflitos da própria autora, nascida numa ilha rural remota no Canadá atlântico do século XIX e que realizou a proeza de se tornar uma escritora com leitores no mundo inteiro e autora renomada em seu tempo. Os interesses de Anne pelo mundo natural e a celebração da própria capacidade imaginativa refletem também sua criadora, que não se limitou à ficção ou à poesia, mas redigia diários, explorava a novidade tecnológica da fotografia e confeccionava os chamados “scrapbooks”, um misto de registro feito com colagens, anotações, imagens, esboços e recordações, que hoje tem valor como artefatos de época.
No mundo de língua inglesa, a leitura da série dos romances que apresentam Anne como personagem é uma espécie de rito de passagem de jovens leitoras (e leitores). Pelos méritos literários da romancista e esforço de estudiosos que trouxeram à tona outros aspectos da criadora de Anne, L.M. Montgomery acabou motivando interesses que vão além do gênero da literatura infanto-juvenil. A exemplo do que já ocorrera antes, o apelo exercido pelo universo literário criado pela autora canadense foi renovado após a rede pública de TV do Canadá e a Netflix produzirem três temporadas da série Anne with an E a partir de 2017. Apesar do sucesso, a série deixou de ser gravada em 2019, sob protestos e abaixo-assinados de espectadores de todo o mundo. A personagem foi interpretada pela atriz irlandesa Amybeth McNulty, que, na época da primeira temporada, tinha apenas 14 anos e não possuía qualquer experiência prévia com atuação.
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Não foi a primeira adaptação audiovisual da obra. A quantidade de versões de filmes, animações, musicais e até peças de balé sobre a personagem é ilustrativa de como a força de uma criação literária se renova no tempo. O primeiro filme baseado na personagem criada por L.M. Montgomery foi produzido sob os rudimentos do cinema mudo, em 1919, quando a autora ainda escrevia os livros que compõem a série. O filme de 1919 foi dirigido por uma figura expoente dos anos iniciais de Hollywood, William Desmond Taylor, conhecido também por ter sido assassinado sob condições nunca esclarecidas, num crime que entrou para o imaginário popular — a morte de Taylor é referida na coletânea de contos The Pat Hobby Stories, de Scott Fitzgerald (e a personagem interpretada pela atriz Gloria Swanson em O Crepúsculo dos Deuses, Norman Desmond, recebeu o sobrenome em homenagem ao diretor assassinado.)
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Há ainda uma adaptação cinematográfica de 1934, após a qual a atriz Dawn O’Day, dada a repercussão do filme, mudou legalmente seu nome para Anne Shirley pelo resto da carreira. O roteiro filmado acabou divergindo bastante dos romances, o que levou a própria L.M. Montgomery classificar o terço final da fita como “um desfecho bobo, cheio de lugares-comuns, com o fim de apresentar [Anne] como uma mera história romântica”. A adaptação mais bem-sucedida antes da série da Netflix tinha sido a minissérie de 1985, dirigida pelo cineasta canadense Kevin Sullivan. Comercialmente, um sucesso não só no Canadá e nos Estados Unidos, o programa chegou a ser transmitido em 140 países. Antes disso, o segundo romance da série, Anne de Avonlea, foi adaptado para a TV, na Inglaterra, em 1975, pela BBC. Por fim, em 2016, um ano antes da estreia de Anne with an E, a neta de L.M. Montgomery adaptou o primeiro romance, Anne de Green Gables, para uma produção televisiva que trazia o ator Martin Sheen no elenco. Some-se à lista várias adaptações para o teatro, rádio, quadrinhos e animações, ao longo de um período superior a cem anos, como um popular animê japonês produzido no final da década de 1970.
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A ilha de Anne
A menor entre as províncias canadenses é também considerada o berço político do país, onde o Canadá como Estado, de fato, começou. Foi na ilha que a ideia de uma nova federação — ao norte das treze colônias rebeldes que deram origem aos Estados Unidos — foi formulada por aqueles que, no século XIX, permaneceram fiéis à Coroa Britânica, mas ainda assim aspiravam manter certa autonomia em relação à metrópole. Na Ilha do Príncipe Eduardo, ocorreu a primeira de uma série de convenções que, em 1867, resultaram no que ficou conhecido como a Confederação.Tratou-se justamente do processo em que as colônias inglesas de Nova Escócia, Nova Brunswick e a Província do Canadá (o que corresponde hoje às províncias de Ontário e Quebec) foram unificadas em um território, o Domínio do Canadá, ainda subordinado ao Império Britânico, mas com direito a exercer o governo autônomo. O 1o. de julho de 1867 é o dia celebrado pelos canadenses como sua data nacional. Nem dezembro de 1931 — quando o Estatuto de Westminster tornou, de fato, o Canadá independente do Reino Unido (consequência do esforço do império em conceder autonomia ainda à Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, compondo a primeira versão do Comonwhealth, e quando desistiram da Irlanda) —, e nem março de 1982, quando a Constituição do Canadá foi aprovada pelo Parlamento do Reino Unido e promulgada pela Rainha Elizabeth II, são lembrados pelos canadenses como a Confederação de 1867.
Mas é em Anne de Green Gables que a maioria dos canadenses e visitantes pensam quando se fala do local. Sob a influência predominante de irlandeses, escoceses e colonos franceses acadianos, compôs-se o caldo cultural em que o culto à Anne Shirley tomou forma. Conhecida pelo turismo cívico e pelos frutos do mar saídos de um dos maiores bancos de pesca do mundo, a ilha é considerada pequena se comparada a gigantes com a Islândia (18 vezes menor) ou mesmo à Jamaica (a metade do país caribenho), mas extensa em comparação a Florianópolis (oito vezes o tamanho da ilha catarinense) e Long Island (uma vez e meia maior). O fato é que é a literatura que deu reputação ao local.
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No Japão, a leitura de Anne de Green Gables é parte da grade curricular nacional em um esforço que remonta o período do pós-guerra, quando a presença norte-americana incentivava a leitura de obras literárias com o propósito de ensinar inglês aos japoneses e aproximá-los da cultura ocidental. Com Anne de Green Gables, as autoridades japonesas encontraram, por outro lado, o modelo de otimismo e predisposição para a vida conveniente para uma população ainda marcada pelo trauma da guerra e ocupada pelo vencedor estrangeiro. Todo o ano, entre junho e setembro principalmente, hordas de turistas japoneses vêm a ilha frequentar os museus temáticos de Anne de Green Gables e assistir às peças teatrais e musicais encenados no Centro das Artes da Confederação, complexo cultural inaugurado na capital da província pela própria Rainha Elizabeth II, em outubro de 1964.
Ano passado, a princesa Takamado do Japão, viúva de um primo do antigo imperador Akihito, veio à ilha na posição de patrona internacional do Instituto L.M. Montgomery — fundado, nos anos 1990, na Universidade da Ilha do Príncipe Eduardo, e que realiza e fomenta pesquisas sobre a obra e a influência da autora, além da curadoria do acervo relacionado a Montgomery. A princesa é ela mesma autora de livros infantis e participou da inauguração das novas instalações de um centro de visitas temático sobre Anne de Green Gables, administrado pela autoridade federal responsável pelos parques nacionais no Canadá. Este é um exemplo eloquente para nós brasileiros e outras culturas periféricas que vemos com desconfiança a intromissão do Estado em políticas culturais, não sem o desdém por linhas de fomento, como leis de incentivo fiscal. Válido talvez acrescentar aqui, como lição análoga, o caso de o próprio governo britânico reconhecer que os gastos para incentivar encenações e o ensino de Shakespeare em outros países é um dos seus maiores instrumentos de “soft power”, diretriz que chegou a constar em um dos famigerados documentos políticos aprovados pelo Parlamento inglês, os “white papers”.
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Continentes literários
Trajetórias literárias como a de Anne de Green Gables levam ao questionamento mais abrangente de que talvez o papel que as sociedades contemporâneas reservam a seus artistas das letras parece agora estar mudando para algo mais fragmentado, menor e periférico. Há quem veja semelhanças entre o caso da escritora canadense e fantasias escapistas recentes sobre bruxos adolescentes. Porém, além de eventuais e óbvias discrepâncias de qualidade literária, o fato é que, com exceção de fenômenos de cultura de massa, empacotados para audiências mais jovens e volúveis, cabe questionar se escritores ocuparão, daqui para frente, o mesmo papel social que tiveram ao longo da história das sociedades nas mais diversas culturas.
Ninguém precisava consultar Jorge Amado sobre as misérias recorrentes da política e nem ele se prestaria a ser comentarista das miudezas cotidianas que se abatiam sobre o país, mas, lá estava ele. Sabíamos da sua presença a guardar, de certa forma, algum substrato de sabedoria difícil de descrever que pairava entre a capoeira do mestre Pastinha, no Pelourinho, e as mentiras verdadeiras do capitão Vasco Moscoso de Aragão, pouco importando se o autor teve ou não um passado partidário e sectário. Da mesma forma, a casa de Erico Verissimo, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, costumava ser um dos locais visitados pelo ônibus que parava em pontos turísticos da capital gaúcha, isso enquanto o escritor ainda era vivo. O próprio Erico Verissimo, quando lançou seu primeiro sucesso literário, Olhai os Lírios do Campo (1938), passou a receber cartas de leitores de todo o Brasil, que traziam desde comentários sobre personagens até pedidos de aconselhamento pessoal. Podemos considerar isso hoje prosaico, mas é indicativo do que escritores costumavam representar.
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Se, por um lado, há quem enxergue como positiva a perda da aura mística que escritores costumavam ter, de outro, cabe especular se sobreviverá, no presente e futuro, a noção de escritores como entes capazes de fazer a guarda de uma cultura ou tradição. Tolstói, com seu velho casaco de couro e chapéu de pele, e as cavalgadas intermináveis, encarnava a essência arquetípica de seu país. Inspirou a criação de seitas de camponeses maltrapilhos e era o único, na Rússia, a gozar do privilégio de expressar sem óbices suas opiniões e até mesmo a desafiar abertamente o tsar, que era impotente para detê-lo. E mesmo que as circunstâncias de Tolstói sejam consideradas extremadas, podemos pensar em casos menos drásticos. Como equacionar os Estados Unidos do século XX ou o compreender remotamente o que é ser judeu na Babilônia americana, o centro do mundo, sem as histórias de Philip Roth?
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Não é que escritores deixaram de existir, obviamente, mas sua presença parece ter se tornado um anacronismo. Encerro citando o caso do brasileiro Márcio Souza, talvez ainda o maior expoente contemporâneo da literatura na região amazônica, que lançou, em 2019, pela Editora Record, o único volume escrito em língua portuguesa dedicado à totalidade da história da Amazônia. Autor de ficções de repercussão internacional como Mad Maria (1980) e Galvez – Imperador do Acre (1976), Souza produziu o livro a partir de cursos que deu na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Mesmo considerando as repercussões pontuais na imprensa, como explicar que a publicação de uma obra condensando a história da Amazônia passe quase despercebida frente o ineditismo da empreitada?
Se escritores deixarão ou não de ser uma das bússolas espirituais ou guardiões da consciência da língua e da cultura daqui para frente, só o tempo mostrará. Entretanto, a força da imagem criada exclusivamente pela literatura, de uma menina órfã de tranças ruivas, frágil e destemida, ser capaz de alcançar tantos corações e mentes é uma advertência de que uma nação existe à medida que os milagres que sua língua produz sobrevivem.
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Romances da série Anne de Green Gables em ordem cronológica da história:
Anne of Green Gables (1908)
Anne of Avonlea (1909)
Anne of the Island (1915)
Anne of Windy Poplars (1936)
Anne’s House of Dreams (1917)
Anne of Ingleside (1939)
Rainbow Valley (1919)
Rilla of Ingleside (1921)
The Blythes Are Quoted (2009) (Os originais foram entregues no dia da morte da autora, mas publicados integralmente apenas quase 70 anos depois.)
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No Brasil, o romance Anne de Green Gables foi publicado por editoras como Martin Claret, Autêntica, Martins Fontes e Pedra Azul. Autêntica e Pedra Azul lançaram também edições brasileiras de alguns dos outros romances da série.
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Assista à conversa do autor, Rafael Baliardo, com a especialista na obra da escritora L.M. Montgomery e Anne de Green Gables, Kate Scarth — diretora do Departamento de Estudos de L.M. Montgomery, Comunicação Aplicada, Liderança e Cultura da Universidade da Ilha do Príncipe Eduardo (UPEI), Canadá:
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