Valho-me do título do primeiro livro de ficção de Ademir Demarchi (prêmio UBE-PB, 2024) antes de comentá-lo, para adentrar uma apaixonante questão que desde a antiguidade (Sócrates, Platão, Aristóteles, os Oráculos…) tem interessado a todos, mesmo aos que tendem a não dar-lhe importância: o sonho. Entre os modernos, antes e depois de Freud, escritores, psicólogos, parapsicólogos, filósofos, teólogos, curandeiros, leigos, têm dado cada vez mais atenção aos sonhos, mas aqui vou me concentrar num filósofo, dentre todos, que chegou a descrevê-los e a relacioná-los em sua obra máxima, O mundo como vontade e representação, e num pequeno tratado específico, Ensaio sobre a visão dos espíritos, que faz parte de sua última obra Parerga e Paralipomena (1845-1851): Arthur Schopenhauer (1788-1860).
O filósofo esclarece, já no começo, que há duas explicações para o título de sua principal obra, uma religiosa (espiritualista) e uma “idealística”, sendo que esta exclui a primeira e consiste em ver em cada indivíduo a manifestação parcial de uma única realidade universal que ele concebe como “Vontade”. A Vontade seria o impulso/instinto de “querer viver”, próprio a todo ser vivo, exterior às categorias de tempo, espaço e causalidade, e “dona” da inteligência de cada um, inteligência essa que racionaliza nossos instintos e provê a Vontade de motivos morais.
Retomando a concepção da coisa em si de Kant, que, na primeira edição de sua Crítica da razão pura (1781), afirma que o mundo, tal qual nos aparece, é mundo de fenômenos — percepções e sensações que se apresentam aos nossos sentidos, dos quais não conseguimos desvendar a existência íntima ou coisa em si (o noumenon dos gregos), a qual só será atingida unindo a aparência à intuição e ao “incondicionado” (aquilo que está “além do sensível”) —, Schopenhauer, diz que a essência da coisa (assim a chamou ele) será revelada pela inteligência quando esta conseguir tornar-se “dona” da Vontade através da arte (interpenetração do instinto e do “espírito”), e depois, numa etapa final, através da santidade.
Esse “além do sensível” ou “espírito” tem parentesco com o sonho e, para ambos os pensadores, seu molde é a função cerebral. Já Aristóteles dizia que o sonho é, de uma certa maneira, uma percepção. O sonho é uma percepção verdadeira e real, como se o mundo exterior penetrasse diretamente no cérebro, sem passar pelos sentidos, diz Schopenhauer, que explica o fenômeno de uma forma aparentemente paradoxal:
“Uma vez que o cérebro, durante o sono, é estimulado por figuras espaciais que provêm do interior do organismo, e não do mundo exterior, este estímulo deve atingi-lo numa direção oposta daquela habitual de um estímulo que provém dos sentidos […]. Sua atividade, em lugar de mover-se na direção das impressões sensoriais, isto é, dos nervos sensoriais para o interior do cérebro, tem uma direção e uma ordem invertidas, e é realizada por partes diversas, de maneira que, mesmo que as funções do córtex cerebral superior não sejam relevadas pelo inferior, pode ser que a matéria medular branca assuma as funções da matéria cortical cinza e vice-versa. O cérebro trabalha, como que ao contrário. Como confirmação dessa suposição pode servir um fato muito comum, mas singular: ao acordar de repente durante a noite, sentimo-nos muitas vezes desnorteados, como se percebêssemos cada coisa ao contrário. O que está à direita da cama parece-nos estar à esquerda, o que está atrás parece estar na frente, etc., de modo que, para desfazer esse falseamento, temos que recorrer ao tato.”
“Em particular, essa hipótese, torna compreensível a vividez extraordinária da intuição onírica, a aparente realidade e vivacidade de todos os objetos percebidos no sonho, justamente a partir do fato que os estímulos da atividade cerebral vindos do interior, mesmo seguindo uma direção oposta à usual, são de tal forma penetrantes a ponto de alcançarem os nervos dos órgãos sensoriais que, excitados a partir do interior como o seriam do exterior, entram realmente em atividade. Assim, no sonho temos percepções luminosas, cromáticas, olfativas, sonoras, gustativas, etc., sem que estejam presentes as causas externas que normalmente as suscitam. Eis o porquê daquela vividez que diferencia os sonhos das simples fantasias. As imagens fantásticas (durante a vigília) permanecem no cérebro, não passando de uma reminiscência de uma anterior excitação material da atividade intuitiva do cérebro, verificada através dos sentidos. A visão onírica, ao contrário, não se encontra apenas no cérebro, mas também nos nervos sensoriais, e nasceu devido a uma excitação material desses nervos, materialmente ativa e presente, que provém do interior e penetra no cérebro.”
Feitas essas observações, Schopenhauer passa a catalogar e a exemplificar uma série de sonhos, cujas características retomaremos no livro de Demarchi, mas pensemos, para finalizar, a questão dos sonâmbulos, para quem o espaço, o tempo e a causalidade, enquanto funções cerebrais, são eliminados. O fato que aos sonâmbulos se revele o que é ausente, distante ou mesmo que está por vir deixa de ser inconcebível se lembrarmos que para eles o mundo objetivo é um mero fenômeno cerebral.
A coisa em si, de Kant, liberta que está daquelas formas cerebrais, não compreende a diferença entre perto e longe, presente, passado e futuro, logo, as distinções baseadas nessas modalidades não são nem absolutas, nem constituem (comprovadamente) uma limitação intransponível para as faculdades visionárias dos sonâmbulos. Qualquer divinação, seja no sonho, seja no sonambulismo, consiste na descoberta do caminho para se libertar do condicionamento do tempo.
Por outro lado, o magnetismo animal — ‘metafísica prática’, como foi definido, ou ‘física experimental’ que suspende as leis gerais da natureza (famoso é o caso, lembrado por Schopenhauer, da serpente que magnetiza o esquilo, atraindo-o para devorá-lo) —, as curas por simpatias, o sono hipnótico, os sonhos fatídicos, a deuteroscopia (visões de eventos futuros), as visões de qualquer gênero, são ramos de um mesmo tronco e indicam um nexo entre os seres, fundado numa ordem das coisas diferente da constituída pela natureza, natureza essa baseada no espaço, tempo e causalidade. Esta nova ordem é mais profunda e primordial e é refratária às chamadas “leis da natureza”.
Conforme é sabido, nos sonhos ditos “normais” — e magistralmente analisados por Freud através dos procedimentos da inversão, contradição, condensação, deslocamento, transmutação dos valores psíquicos, conversão das ideias em imagens, regressão etc.—, a relação causal é apresentada pela sucessão, a relação causa-efeito o é pela transformação de um objeto em outro, de uma ideia em uma situação, e as ideias contraditórias são representadas por um único elemento, sendo a elaboração a transformação do conteúdo latente em manifesto.
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Mas, uma coisa bem diferente é partir do sonho para escrever um conto ou mesmo transformar o sonho em conto. Ademir Demarchi chama de “A tênue película que nos separa desse mundo” não apenas aos escritos derivados dos sonhos, mas também dos pesadelos, ora fantásticos, ora kafkianos, e avisa disso ao leitor.
De fato, os “relatos” (assim os denomina ele), mesmo quando parecem apenas sonhos, têm alguma coisa ora de labiríntico, ora de angustiante. A existência de uma mancha que permanece oculta (“O vestido de noiva”), dois bebês negros em cada um dos seios brancos (“Os seios”), o marido que urina sobre o túmulo recém-comprado pela mulher (“Um túmulo”), o alagamento que se torna caos (“Havia alguém”), e assim por diante.
E quais seriam os moventes vindos, como quer Schopenhauer, do interior do sonhante? Um, talvez o primeiro, como quer Freud, seria o desejo sexual: “Então nos abraçamos com avidez enquanto nos beijamos” (“Os anões”) etc., ou mesmo o “meu” desejo tout court, como quer Lacan: “elas me sussurravam convites com seus pistilos tremulantes” (“A intemporalidade absoluta”) etc. Mas eis que se começa a notar algo de diferente nos relatos de Ademir.
As conclusões com que Ademir arremata seus relatos são os fechos filosóficos das descrições literárias — poéticas, a bem dizer: “Então saio daquele lugar sem encontrar os sapatos e me vou, descalço, caminhando com leveza pela calçada, pisando em uma imaginária corda bamba que se forma ao centro da perspectiva vista pelos olhos do estrábico” (“Os sapatos perdidos”).
A delicadeza da poesia de Ademir nota-se também nos moventes externos que, se não determinam os sonhos, conforme quer Schopenhauer, com frequência constelam os “relatos”:
“Deambulando pela praia encontrei um velhinho catando corais e conchas após a ressaca. Eu também fazia o mesmo e nos olhamos com aquela curiosidade de garimpeiros perdidos na areia, como se tivéssemos nos topado. Me aproximei e ele perguntou para que eu os coletava. Respondi que os achava belos e os pegava para decorar vidros. Enchia-os e os colocava ao lado dos livros pensando na memória dos mares que eles guardariam no seu silêncio.” (“Vasos”)
Esses moventes externos tornam-se símbolos, senhas para seu próprio reconhecimento (segundo Alexandre Kojève, citado por Lacan em seu Discurso de Roma), entre uma série de moventes habituais. Assim, temos a motocicleta que encontra um obstáculo inesperado (“Em plena curva”), os caminhões, ônibus etc. indicando velocidade, e mais: aves, flores, botas, espadas, sonhos dentro de sonhos, e o eu que se torna outro.
Se, com Lacan, concordarmos que “não há outra entrada para o mundo real, a não ser pelo fantasma” (ou seja, pela cena onde o sujeito realiza seu desejo), quais são os fantasmas de Ademir? Uma casa, atalho para a rua (“A casa atravessada”), uma ponte que se atravessa, a mensagem inteligível do cipó (“Sonho da árvore”), o eu nu, “deitado sobre uma esteira de palha, cercado de almofadas, como se estivesse à espera da aula começar” (“Sobre a esteira de palha”) ou a visão prenunciadora do futuro? “O som dos sinos da laguna vêneta nos ouvidos sensíveis de alguma minha avó, quando talvez eu fosse apenas uma informação genética para o futuro” (“Um grito lancinante”).
E os anti fantasmas? O anti desejo da boca paralisada por um aparelho de freio que não permite beijar (“Vagando pela noite”), molduras de fundo branco (“Molduras”), a paisagem negativa da negatividade em branco e o pássaro negro saindo do nada (“Nevava”), o piso todo se movendo como em estertor e se transformando num tapete cujas bordas das paredes se encolhiam retraídas (“O piso móvel”).
Muitos são os relatos em que o sonhador muda de sexo, raros os em que ele não comparece (“A viagem”, “O molho de chaves”, “De saltos altos”, etc.) ou em que , em topografias conhecidas tornadas entranhas, amigos se transformam inimigos ou em outros comparsas (“Conversa de buteco”).
Mas, entre todos os relatos, quais seriam as dominantes? Em geral, são imagens insólitas que passam a ser reiteradas. As que mais chamam a atenção aqui são, curiosamente, as mãos. Porém, trata-se de mãos desconectadas do corpo, como as mãos decepadas “penduradas em ganchos vindos do teto” (“Em busca da cartomante”), e depois… “aquela pequena mão de bebê, branca como se fosse viva, mas desconectada de seu corpo, que viera parar em meu bolso, na calça” (“A tenra mão encontrada num bolso“). Mãos essas que — tais como são sonhadas — pressupõem a morte, a morte que ronda outros relatos, também.
A Morte é a grande pulsão universal que se manifesta no livro, ao lado do Desejo, não apenas enquanto desejo sexual, mas enquanto sinônimo do “querer” que, como queria Schopenhauer, representa a Vida.
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Bibliografia
DEMARCHI, Ademir. A tênue película que nos separa deste mundo. João Pessoa: Ideia, 2024.
KANT, Immanuel. O pensamento vivo de Kant (Biblioteca Pensamento Vivo), n. 12/13. São Paulo: Martins Editora, 1965.
SCHOPENHAUER, Arthur. Saggio sulla visione degli spiriti. Milano: Tascabili Economici Newton, 1993.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Ediouro/ Coleção de bolso, 1980.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tomo II, Complementos – Livros III-IV . Volume 2. Curitiba: Editora UFPR, 2014.