por Eduardo Henrik Aubert
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Todo um filão da produção literária peninsular do final do século XIII — o dolce stil novo, ou stilnovismo — recebeu sua denominação a partir de um passo da Comédia, no verso em que Buonagiunta di Lucca († 1290) afirma a Dante que ele e outros autores foram impedidos, em sua produção poética, por um nó que os reteve di qua dal dolce stil novo ch’io odo (Pg., 24, 57, “aquém do doce estilo novo que eu ouço”). Ocorre que esse verso se encontra sob formas muito várias nos distintos manuscritos em que nos foi transmitida a Comédia: dal dolce sole il novo (“do doce sol o novo”, certamente errônea), dal dolce stil e il novo ch’io odo (“do doce estilo e o novo que eu ouço”).
Ademais, como esses manuscritos não têm pontuação, ou a têm de forma muito esparsa, seria possível imaginar que o verso original fosse, conforme propôs um editor recente, com base em forma transcrita acima, o seguinte: di qua dal dolce stil! e il novo ch’io odo! (“aquém do doce estilo! e o novo que eu ouço!”). Se essa leitura estiver certa, Dante não falou em um dolce stil novo, mas antes distinguiu o “doce estilo” do “novo” (aquele que Buonagiunta está a ouvir na própria Comédia?). Destarte, a noção de um movimento literário identificado e batizado pelo Poeta cairia por terra.
Trata-se apenas de um dentre literalmente milhares de casos em que, com mais ou menos fundamento, algum dos 14 233 versos da Comédia é hoje apresentado ao leitor com base em um raciocínio conjectural: os manuscritos divergem entre si (isto é, contêm, em sentido técnico, “variantes”), seja nos planos ortográfico e fonomorfológico (as chamadas “variantes formais”), seja nos planos lexical e sintático (as “variantes substanciais”). Em casos como esse, o texto que se lê é, na feliz expressão do filólogo Gianfranco Contini (1912-1990), uma hipótese de trabalho. Assim, o leitor que se dirige a uma livraria e compra uma Divina Comédia qualquer — em italiano, pois a tradução é difração de magnitude imane e proteica —, sem se preocupar com como o editor chegou àquele texto, está em piccioletta barca (Pd., 2, 1), vale dizer, é um leitor ingênuo, pronto a engolir patranhas e desassistido do acume requerido para se defrontar com Dante.
Apenas exemplificativamente, listamos alguns casos em que os manuscritos divergem em variantes substanciais, isto é, de forma relevante para a interpretação do texto. Dante teria dito a Virgílio que sua fama durará tanto quanto dure o mondo (“mundo”) ou o moto (“movimento”), em If., 2, 60? Ao entrar no Inferno, Dante tinha a cabeça envolta em orror (“terror”) ou em error (“incerteza, angústia”), em If., 3, 31? Quando estão chegando ao oitavo bolsão do Malebolge, Dante e Virgílio desceram pelas escadas che n’avean fatt’i borni a scender pria (“que haviam sido feitas antes pelos rochedos para descer”) ou che n’avea fatti iborni a scender pria (“cuja descida havia nos deixado antes lívidos”), em If., 26, 14? O anjo timoneiro avistado da praia do Purgatório era tal che parea beato per iscripto (“tal que parecia ter a beatitude escrita [em sua face]”) ou tal che faria beato pur iscripto (“tal que, ainda que apenas descrito, tornaria [quem ouvisse a descrição] beato”), em Pg., 2, 44? O já mencionado Buonagiunta parecia aver contezza (“ter conhecimento”) de Dante ou voler contezza (“querer travar conhecimento”) com ele, em Pg., 24, 36?
Trata-se, aqui, de verdadeiros hard cases — alguns dentre muitos —, que se acostam a uma miríade de leituras claramente inaceitáveis em um ou em vários testemunhos, muitas das quais, contudo, difundidíssimas até hoje (“testemunho” é o nome de cada instância material que temos de um texto; como a testemunha em juízo não é o fato, o testemunho não é o texto, mas ajuda a esclarecê-lo pelo que diz a seu respeito).
Dispomos, na verdade, de cerca de 600 códices completos da Comédia, ou 800, incluídos os parciais e fragmentários, escritos até quando a difusão da imprensa de tipos móveis praticamente estancou a produção de cópias manuscritas no fim do século XV. Como a taxa de sobrevivência se estima em 10 a 20%, deve ter havido algo como de 4 a 8 mil Comédias em circulação entre a década de 1320 e os arredores de 1500. Trata-se, de longe, da obra vernácula de maior circulação na Idade Média; o distante segundo lugar, do celebérrimo Roman de la Rose, atinge mero um quarto daquele número.
Infelizmente, como já vimos em textos precedentes desta série, não dispomos de nenhum autógrafo de Dante, nem para a Comédia, nem para nenhuma outra obra, o que poderia resolver muitas dúvidas, ainda que fosse nos planos ortográfico e fonomorfológico. Não temos sequer sua assinatura. Mais que isso, apesar do imediato sucesso da Comédia, atestado, por exemplo, pelos cinco comentários ao poema escritos já nos quinze anos após sua morte, esse período é quase que um imenso vazio de manuscritos da Comédia; subitamente, contudo, entre 1334 (ou 1336) e 1355, deparamos nada menos que 85 códices. Há duas exceções, muito parciais, para o quindênio inicial.
Possivelmente, o testemunho mais antigo da Comédia de que dispomos seja um bifólio (bifolium: uma “folha dupla”, dobrada ao meio, perfazendo 4 páginas), que contém uma seção do Inferno (If., 26, 67-If., 28, 48). Ele veio à luz apenas em 2001 e teria sido escrito, segundo Iacobucci, pelo notário Andrea Lancia († após 1357), entre 1314 e 1330 (imagem 1); talvez se trate, assim, da única atestação de um códice da Comédia escrito ainda em vida de Dante (nesse caso, talvez só do Inferno, talvez dos dois primeiros cânticos).
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Marcamos, na imagem, verso que contém uma importantíssima variante. Em Cesena, uma cidade da România, diz Dante, tal como se vive entre a planície e a montanha, também (com similar alternância) tra tirannia si vive e stato franco (“vive-se entre a tirania e a liberdade”, If., 27, 54). Essa é sem dúvida a boa lição (a variante que vence no mérito), em face da muito difundida tra tirannia si vive in stato franco (“vive-se em meio à tirania em liberdade”), que faz pouco sentido e não corresponde à estrutura do símile (“assim como se vive entre dois opostos de um ponto de vista geográfico, também se vive entre dois contrários no que respeita à situação política”).
Sabemos, ademais, de um códice da Comédia escrito por um amanuense de nome Forese (talvez Forese di Chierico Donati, primo de segundo grau de Iacopo Alighieri e seu vizinho), em 1330-31, para o florentino Giovanni Bonaccorsi. O manuscrito se perdeu desde então, mas conhecemos seu conteúdo (referido pela sigla Mart; cf. a legenda ao final do texto), porque, em 1548, o humanista Luca Martini (1507-1561) copiou cuidadosamente suas variantes nas margens de uma edição impressa da Comédia, transcrevendo, ainda, na última página, um interessantíssimo relato de Forese, em latim, sobre o trabalho de cópia:
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Se, em alguma parte ou em mais partes, encontrar-se algo de confuso no texto, eu rogo que isso não seja imputado à minha inércia, pois o livro decaiu em erros devido à incapacidade e à inexperiência dos que escrevem em língua vernácula, especialmente por meio da alteração das palavras ou por sua falsidade. Mas eu, valendo-me de diversos outros códices, rejeitei o que há de falso e coligi o que há de verdadeiro ou o que parecia conforme ao sentido, copiando-o fielmente, o mais prudentemente que pude, neste livro.
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Trata-se da primeira declaração sobre a transmissão do texto da Comédia, que já se mostrava, então, a apenas um decênio da morte de Dante, bastante alterado pela obra dos copistas; afinal, toda transmissão produz, em maior ou menor medida, inovações, ou, em sentido técnico, “erros”, em um texto, que o vão afastando do original, como em uma espécie de “telefone sem fio”, por condições que têm a ver, em primeiro lugar, com a própria dinâmica da cópia: engano no desenvolvimento de uma abreviatura, confusão de uma letra com outra, embaralhamento entre glosa e texto, normalização morfológica, etc..
Mais que isso, como frequentemente testemunhamos, por obra de copistas anônimos ou célebres (Boccaccio, Filippo Villani, Salutati), no ambiente mesmo em que desabrocha o humanismo, o texto da Comédia vai sendo manipulado também deliberadamente, por intervenções editoriais ora mais, ora menos inteligentes, destinadas a melhorar o texto, mas fadadas a promover o fenômeno conhecido como “contaminação”: os manuscritos vão espelhando não apenas a lição que constava no exemplar de que derivam (transmissão vertical), acrescentando-lhe, na atividade de cópia, um ou mais erros, mas também lições de exemplares laterais, consultados para sanar dúvidas ou resolver dificuldades (transmissão horizontal).
Assim, se a tarefa da crítica textual (do alemão Textkritik), ou filologia em sentido estrito, é, diante da perda do autógrafo (situação que é regra para os textos antigos e medievais), reconstituir um texto que seja o mais vizinho possível ao original (tarefa a que se chama constitutio textus), ela se vale, para tanto, de uma série de técnicas, de que falaremos um pouco abaixo, em meio às quais é crucial a determinação da posição relativa dos manuscritos. Ora, com o embaralhamento dos códices promovido pela contaminação, temos dificuldade de individualizar os distintos elos do “telefone sem fio”, o que nos permitiria delimitar as primeiras cadeias da transmissão, a demandar menos intervenção para recompor o texto de Dante.
As primeiras cadeias de transmissão não são necessariamente as mais antigas, mas em rigor, as que estão a menos graus de distância do original. Afinal, nada impede que um amanuense tardio esteja copiando muito fielmente um exemplar antiquíssimo, quiçá um autógrafo, razão pela qual um dos ditames da crítica textual é recentiores non deteriores, “os [testemunhos] mais recentes não [são necessariamente] os piores”.
Mais que isso, se estamos diante de transmissão concomitantemente vertical e horizontal, pode ser que um copista, distante de Dante no tempo e trabalhando ainda com exemplar ruim, tenha corrigido defeitos de seu exemplar recorrendo a testemunho puríssimo, o que, se demonstrado, seria excelente para o estabelecimento do texto; embora seja de difícil comprovação na selva selvaggia dos textos contaminados, temos alguns casos de revisões, em que uma lição antiga foi substituída por uma nova, que parece de fato trazer melhoras relevantes.
Neste texto, vamos examinar o que foi feito até aqui e em que ponto nos encontramos em meio ao esforço multissecular de estabelecimento do texto da Comédia. Nosso intuito é que o leitor possa, ao fim, e com auxílio também das indicações de leitura que fornecemos, perder a candura que repousa na identificação irrefletida entre um qualquer texto impresso e o texto da Comédia de Dante e, mais do que se sentir incomodado pela mobilidade do que tinha por sólido, engajar-se em uma atitude de leitura mais madura e consciente.
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Primícias
As primeiras edições impressas da Comédia são todas fundamentalmente reprodução de um dos manuscritos que então circulavam — e, mais que isso, basearam-se em manuscritos importantes conservados ainda hoje. Assim, a primeira delas, chamada, por isso mesmo, editio princeps, é devida ao tipógrafo alemão Johannes Neumeister, impressa em Foligno, em abril de 1472, e esteada no manuscrito Lo, representante, dentre muitos, do famoso “grupo dos Cem” (mais sobre esse grupo adiante). Seguiram-se, no mesmo ano, outras duas edições, também na Itália.
A mais influente edição moderna da Comédia foi publicada em Veneza, em 1502, sob os cuidados de Pietro Bembo (1470-1547), sendo conhecida como “edição Aldina”, devido ao tipógrafo responsável, Aldo Manuzio. Ela está fundamentada no manuscrito Vat, também conservado e modelo principal para as três cópias da Comédia realizadas por Boccaccio, igualmente supérstites. Sua importância diz mais com a recepção do texto da Comédia, uma vez que, até o começo do século XX, o texto preparado por Bembo se impôs como vulgata moderna do poema; era ele que estava na boca de escolares e doutos, ele que funcionava como hipotexto para os mais diversos escritores.
Enfim, importa mencionar a edição de 1595, preparada pela Accademia della Crusca, ridotta a miglior lezione (“conduzida a melhor lição”), conforme declara no título, porque colacionou (isto é, comparou), embora sem método, uma série de manuscritos, todos florentinos, transcrevendo nas margens 429 lições alternativas às de Bembo. Assim, na imagem 2, mostrando o início do primeiro canto do Inferno, é possível ver as lições bembianas (E quanto a dir, If., 1, 4; Questa selva, If., 1. 5; Dirò dell’altre cose, If., 1, 9), em oposição às lições alternativas (respectivamente: Ah quanto a dir; Esta selva; Dirò dell’alte cose), procedimento muito semelhante ao das anotações um pouco anteriores de Luca Martini, a que aludimos na seção anterior.
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Ora, justamente por se basearem em manuscritos conservados, essas edições não importam para o estabelecimento do texto: quando se conhece o exemplar de que foi feita uma cópia que não registre elementos advindos de outro texto perdido, a cópia se descarta, por estar mais um grau removida do original (regra da eliminatio codicorum descriptorum, isto é, “eliminação dos códices copiados [de um códice conhecido”]).
Essas edições, dizíamos, mesmo quando procuravam comparar manuscritos, faziam-no de forma ametódica. Foi apenas em 1775, em contexto de marcado historicismo textual, que o veronense Bartolomeo Perazzini (1727-1800), enunciou princípios metódicos para o estabelecimento do texto, em suas Correctiones et adnotationes in Dantis Comoediam. Adentramos, com isso, no campo da modernidade filológica, com um método que, a despeito de levar o nome do filólogo alemão Karl Lachmann (1793-1851), o “método lachmanniano”, fora elaborado cumulativamente pelas gerações precedentes, em trabalhos notáveis como o de Perazzini, que lhe dá formulação invulgar. Descrevemos o método de forma razoavelmente estruturada, à luz da maior nitidez que iria conquistando, para facilitar o entendimento, sem, contudo, trair a essência da proposta de Perazzini.
Fundamentalmente, tratava-se, em primeiro lugar, de identificar toda a tradição (isto é, todos os testemunhos do texto da Comédia, operação denominada recensio, ou “recensão”), e compará-los, no intuito de identificar todas as variantes (operação chamada collatio, ou “colação”); assim, pelas relações de proximidade, seria possível estabelecer a posição recíproca entre os testemunhos, expressa em um gráfico em forma de árvore genealógica (estabelecimento do stemma codicum, ou “estema dos manuscritos”; para exemplos de estema, ver adiante imagens 3, 5, 6 e 7). Essas operações são conjuntamente denominadas recensio.
Na sequência, identificando, como fruto da recensio, os pontos, ou nós, em que um erro adentrou na tradição, tratar-se-ia de eliminá-lo do texto, isto é, promover a emendatio ope codicum (“emenda [do texto] com apoio nos códices”); nas hipóteses de variantes cuja posição genealógica inferior não ficasse demonstrada, seria caso de operar por meio de uma emendatio ope ingenii (“emenda [do texto] com apoio no engenho”), ou divinatio (“conjectura”), valendo-se então de critérios como a lectio difficilior (a “lição mais difícil” deve ser preferida à mais simples, pois os escribas tendem a banalizar o que não compreendem, e não o inverso) e o usus scribendi (a verificação do “hábito de escrita” do autor, devendo-se imaginar que um autor deve ter escrito segundo seus próprios padrões). Esse conjunto de operações vai denominado emendatio.
O que teria resultado da aplicação desses procedimentos é o que chamamos edição crítica, vale dizer, uma reconstrução metódica e documentada do que se afigura como a melhor hipótese de trabalho para as lições constantes no original ou mais próximas dele. Infelizmente, contudo, Perazzini se limitou a enunciar o método sem o aplicar. Aliás, em sua plena extensão, ele não foi aplicado até hoje. De certo modo, toda a história subsequente das edições da Comédia tem que ver com as tentativas de fazer frente às imensas dificuldades para endereçar o trabalho nessa direção.
O caminho foi intentado no século XIX por filólogos de eminente estatura, como o alemão Karl Witte (1800-1883), que colacionou o terceiro canto do Inferno em 407 manuscritos, mas não conseguiu determinar um estema. Diante do obstáculo, identificou alguns passos com variantes que lhe pareciam especialmente significativas para determinar a qualidade de um testemunho (os loci critici, ou loci selecti, “lugares críticos”) e acabou por produzir, em 1862, uma edição fundada em apenas quatro códices que acreditava deterem especial autoridade.
Fundamentais foram também os trabalhos de Edward Moore (1835-1916), que produziu colação integral de dezessete manuscritos, todos conservados na Inglaterra, para o Inferno, além de explorar 180 loci critici para os outros dois cânticos, valendo-se ao todo de cerca de 250 manuscritos. Nesse processo, delineou alguns grupos e subgrupos de códices e esclareceu muito da fenomenologia da tradição da Comédia: a dificuldade do texto dantesco a fazer proliferar banalizações, a ativa busca de esclarecimentos a deslocar lições entre códices e a memorização de vastos trechos do poema, resultando em notáveis intercâmbios e contágios entre passos, independentemente do recurso a mais de um códice (por exemplo, o intercâmbio frequente entre os epítetos de Virgílio: savio, duca, maestro, guida, etc.).
Embora tanto Witte como Moore tenham apresentado seus trabalhos como provisórios, trata-se, conforme bem notou Viel, de um “momento exordial” que “condicionará toda a crítica sucessiva”, descontada a luminosa intervenção de Perazzini, que não teve impacto imediato. Sobretudo, diante das demandas de um método bastante bem delineado (o “lachmanniano”), tratava-se de ver como aplicá-lo a uma tradição superabundante, intensamente contaminada e com tantas particularidades na fenomenologia da cópia, situação muito distinta, por exemplo, daquela de um texto como o De rerum natura, sobre o qual Lachmann enunciara sua versão do método. A ideia, sobretudo, de uma colação integral dos testemunhos pairava como um pêndulo sobre os desafiantes do poema, a ameaçar já pela dimensão ingente, já pelo aspecto brumoso que resultava das colações parciais em matéria de estabelecimento de um estema.
O caminho possível — ainda que não ideal — estava, contudo, indicado por esses dois desbravadores, a saber, valer-se dos loci critici, para estruturar o estema. Incumbiria a um jovem estudioso, no âmbito da recém-fundada Sociedade Dantesca Italiana (1888), dar-lhe forma mais definida: trata-se de Michele Barbi (1867-1941), responsável pela edição crítica da Vita nuova nos decênios seguintes e um dos mais importantes dantistas do século XX. Com base em trabalhos anteriores, incluídos os de Witte e Moore, mas também de uma debulha autônoma de muitos manuscritos abrigados em Florença, Barbi propôs uma lista, conhecida como il canone (“o cânone”), composta por 396 lugares críticos que seriam, segundo ele, de importância decisiva para esclarecer, pelo menos preliminarmente, as relações entre os códices da Comédia.
Divulgado na revista da Sociedade em 1891, o cânone conclamava estudiosos de diversos países a consultar os manuscritos que estivessem ao seu alcance, para verificar, em cada um deles, o comportamento das variantes (todas substanciais). Como afirmava naquele ano, “para estabelecer uma lição que se avizinhe o mais possível do original, temos uma única via segura: distinguir os códices em famílias”. Ocorre justamente que não é qualquer variação que importa para o estabelecimento das relações entre manuscritos. De fato, é preciso determinar os “erros significativos”, em linguagem técnica, vale dizer, aqueles capazes de demonstrar seja que dois manuscritos estão separados no estema (“erros separativos”), seja que estão conectados (“erros conjuntivos”).
A fundamental distinção se dá, nesse âmbito, entre os “erros poligenéticos” (que podem ser cometidos por diferentes escribas de forma independente) e os “erros monogenéticos” (que não poderiam ou muito dificilmente poderiam ter sido cometidos autonomamente). Como se esclarece com a publicação do cânone, deve-se evitar, “tanto quanto possível, aqueles loci […] que, por razão de eufonia, sinonímia, correlação gramatical, tendência a construções planas e regulares, tenham podido induzir às mesmas variantes um copista independentemente do outro”.
Infelizmente, houve pouca adesão imediata ao cânone de Barbi (ou aos “quatrocentos lugares de Barbi”, como são frequentemente referidos, arredondando a lista dos 396), e as duas edições que surgiram no entorno do sexto centenário de morte do Poeta, em 1921, contornaram mais uma vez o problema da recensio, ainda que de formas muito diversas. Distintas como fossem, ambas eram desprovidas de aparato crítico, a assinalar, de certo modo, a precariedade, ou ao menos a continuada provisoriedade, dos empreendimentos (aparato crítico é a indicação e eventualmente a discussão das variantes ao texto adotado, em geral em uma ou mais faixas de texto no rodapé de cada página; para um exemplo, ver, adiante, imagem 4).
Uma delas, devida a Giuseppe Vandelli (1865-1937), era o texto publicado pela Sociedade Dantesca Italiana, no seio da edição completa das obras de Dante (1921). Prefaciada pelo próprio Barbi, tinha apoio na ideia de que não haveria como estabelecer um estema em termos estritos, isto é, uma linhagem genealógica dos códices, mas meramente determinar agrupamentos, de que se extrairiam acervos concomitantes de lições boas e ruins, ou “nebulosas de variantes”. Diante delas, o editor haveria de raciocinar individualmente sobre cada passo, optando pela variante cujo sentido seja adequado e, mais que isso, que se exiba como apta a produzir a variante errônea, isto é, que possa explicar a gênese do erro. É como se houvesse assim, um estema lógico da variante individual, mais que um estema histórico da tradição.
A segunda edição saída naqueles anos (1923), obra de Mario Casella (1886-1956), foi, ao contrário, a primeira a se basear em um estema, mas de forma bastante limitada porque se serviu de poucos manuscritos, todos toscanos e agrupados em função de poucas variantes, muitas das quais erros claramente poligenéticos — logo, em princípio, imprestáveis para agrupar manuscritos. Ademais, como se tratava de um estema perfeitamente bipartido — isto é, que dividia a tradição em dois grupos —, a edição de Casella não fornecia um critério evidente de decisão para a emendatio ope codicum, o que ocorreria em uma árvore tripartite (ou com mais entroncamentos), em que se imporia a “lei da maioria” — calculada não pela maioria dos códices, mas pela maioria dos ramos iniciais —, apta a determinar a maior ou menor probabilidade de determinada variante concorrente, não errônea prima facie, ser aquela que deva ser retida.
Seria necessário esperar pela próxima efeméride dantesca, em 1965, para que o panorama viesse a mudar decisivamente.
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A edição-base, ou a Comédia segundo a antiga vulgata
Quando assumiu a direção da Sociedade Dantesca Italiana, em 1957, Contini reuniu uma equipe para produzir edições críticas das obras de Dante, em vista da proximidade da efeméride de 1965. Atribuiu a Giorgio Petrocchi (1921-1989), estudioso que vinha se ocupando da tradição textual da Comédia há alguns anos, a edição do poema, realizada em prazo relativamente curto e em quatro volumes (a introdução geral e o Inferno em 1966, o Purgatorio e o Paradiso em 1967). Trata-se da grande pedra miliar no trabalho de edição da Comédia, a referência que projeta sua sombra sobre todos os empreendimentos editoriais sucessivos, inclusive aqueles ainda em curso em razão da celebração do sétimo centenário, em 2021.
A edição de Petrocchi, ciente das dificuldades que se levantavam desde que se concebeu realizar uma edição crítica da Comédia, pretende-se, ao menos em princípio, não propriamente uma edição crítica, mas uma “edição-base”, ou um “texto-base”, isto é, segundo o filólogo, uma edição conduzida segundo os procedimentos metódicos próprios à edição crítica, mas fundamentada não na recensio de todos os códices, e sim na de um pequeno número deles.
A proposta, enunciada assim já em 1954, não era, contudo, mera concessão às dificuldades da tradição superabundante, mas advinha de uma interpretação da própria transmissão, em sua espessura histórica. Embora reafirmasse a natureza contaminada de toda a transmissão da Comédia, Petrocchi via na atividade de edição do poema por Boccaccio, a partir de 1355, um grande divisor de águas: leitor arguto e apaixonado, Boccaccio teria promovido um imenso embaralhamento das lições, em um evento de transmissão horizontal sem precedentes; isto é, uma contaminação efetivamente massiva; ademais, devido a seu próprio prestígio, esse turbamento dos testemunhos teria inquinado toda a tradição posterior de forma irremediável.
Por isso, e ainda porque não haveria, na tradição posterior a 1355, lição nova genuína que indicasse a presença de modelo relevante transcrito em um recentior, a tarefa de edição poderia ser conduzida apenas com os manuscritos anteriores à entrada em cena de Boccaccio, tradição a que Petrocchi se referia globalmente como a antica vulgata, de onde o título de sua edição, La Commedia secondo l’antica vulgata (“a Comédia de acordo com a antiga vulgata”). Esse limite — motivado, e não arbitrário — colocaria o filólogo diante de apenas 27 manuscritos, dos quais 22 completos, a ser, eles sim, colacionados integralmente, submetidos destarte a toda a extensão dos procedimentos da recensio e da emendatio. Por esse expediente, “edição-base” e edição crítica acabam por se identificar, já que não haveria, ao fim e ao cabo, trabalho pertinente a se desenvolver para além daqueles códices.
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Foi assim que Petrocchi produziu seu celebérrimo estema da Comédia (imagem 3), que merece algumas explicações elementares, antes de dar azo a certas ponderações, ao final deste item. Como se vê, essa árvore genealógica, que tem a peculiaridade de apresentar uma estratificação temporal à esquerda, parte de um vértice inicial (designado com a sigla O), ponto tradicionalmente ocupado pelo arquétipo (usualmente identificado com a letra grega ?); arquétipo é o exemplar ceterorum, o manuscrito de que se postula derivarem todos os demais, distinto do original e cuja independência relativamente a este é provada pela existência de ao menos um erro presente em toda a tradição.
Não só o vértice inicial, mas diversos pontos do estema são assinalados por letras minúsculas dos alfabetos grego e latino, a designar exemplares perdidos, em contraposição às siglas dos próprios códices, iniciadas com maiúsculas. A existência dos exemplares perdidos é demonstrada pelo fato de determinados manuscritos conservados exibirem semelhanças (os erros convergentes) que provam terem sido copiados de um mesmo manuscrito.
Um primeiro grau de derivação do vértice é dado pelas letras gregas ? e ?, os dois grandes ramos em que se dividiria a tradição da Comédia: de um lado, o “subarquétipo florentino” (?), testemunhado mais amplamente por códices toscanos, subdividido, agora em letras latinas, em três famílias (a: uma tradição florentina bastante delimitada; b: a tradição toscana ocidental; c: a tradição florentina vulgata, de onde sairiam Boccaccio, cujas três cópias estão designadas como To, Ri e Chig no estema, e o imenso “grupo dos cem”, a partir de Ga, manuscrito de punho de Francesco di ser Nardo, do ano de 1347); de outro lado, o muito mais reduzido “subarquétipo padano” (?), subdividido em duas famílias (d: tradição de determinação mais complexa, dependente da avaliação do contaminado manuscrito La; e: tradição emiliano-romanhola, reputada excelente, sobretudo em seu representante Urb). No nível subsequente, já figurariam códices supérstites, os testemunhos que permitem reconstruir os seus antecedentes.
A demonstração de Petrocchi está assentada em uma ampla avaliação das variantes, com a mais desenvolvida discussão até então dos fatores que indicariam seu caráter de inovações poligenéticas ou monogenéticas, permitindo-lhe enunciar então critérios para as escolhas editoriais: privilegiar, em primeiro lugar, a concordância entre ? e ?; na sequência, dar preferência a ?; enfim, conceder preeminência a a no ramo ?.
Diferentemente das variantes substanciais, as variantes formais não são, todavia, passíveis de reconstrução pelo método da recensio e da emendatio, pois os copistas adaptaram livremente seus exemplares a seus hábitos linguísticos, pelo que se impõe a escolha de uma “veste linguística” com base em um manuscrito que pareça escrito por amanuense o mais próximo possível da língua do Poeta e pouco tendente a alterá-la. A escolha se dá pelo manuscrito Triv (subarquétipo ?, família a), o primeiro dos três códices copiados, com grande esmero, por Francesco di ser Nardo, já no ano de 1337. Com essas premissas, Petrocchi apresta sua edição, de que apresentamos uma página a fins ilustrativos, contendo If., 9, 42-49 (imagem 4).
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Conforme se vê, a parte superior da página contém o texto crítico, com caracteres maiores e em forma definitiva, isto é, sem sinais da intervenção do editor, uma vez que os procedimentos estão minuciosamente descritos na introdução geral. Abaixo do texto, há dois feixes de anotação: o primeiro é o aparato crítico propriamente dito, registrando todas as variantes, substanciais e formais, dos 27 manuscritos da antica vulgata; o segundo é uma explicação sobre as variantes substanciais, em que, não raro, Petrocchi comenta também manuscritos mais tardios — que, no entanto, nunca contribuem com lição que se possa reputar genuína.
Note-se, exemplificativamente, o verso 45 (“Guarda”, mi disse, “le feroci Erine […]: “Vê”, me disse, “as ferozes Erínias […]). Na primeira faixa do aparato, vão se registrando as variantes verso empós verso; para cada verso, o registro se dá na ordem da palavra ou das palavras que variam, e cada variante é registrada com os manuscritos pertinentes, em ordem alfabética. Note-se que os manuscritos não registrados são aqueles que contêm a lição acolhida no texto crítico; em outros termos, o aparato de Petrocchi é um “aparato negativo” (ou “implícito”), e não “positivo” (ou “explícito”), caso em que a lição acolhida também seria registrada.
A variante substancial, no verso 45, é a última palavra, um dos mais relevantes loci critici da Comédia: diversos manuscritos registraram outros termos em lugar de Erine (crine, trine, cline), certamente pela dificuldade de entendimento levantada pela referência mitológica, correspondente ao nome grego das Fúrias. Na segunda faixa do aparato, Petrocchi dá conta de algumas explicações para a variante, além de remeter a ponderações da introdução; nem todos os aparatos possuem essa segunda faixa, que é própria dos aparatos “arrazoados” (ou “argumentados”).
O leitor notará, conferindo o estema da imagem 3, que crine acomuna muitos manuscritos da família b, trine une diversos manuscritos da família c, e cline isola a família a. Algumas discrepâncias (por exemplo, a presença de crine em Mad e Rb), que poderiam indicar contaminação, à luz de outros estemas (ver, adiante, imagem 7), talvez se expliquem segundo outras hipóteses de organização da tradição. Note-se, de todo modo, que a lição correta está no reputado melhor manuscrito do subarquétipo ?, o já referido Urb, bem como em um pequeno nó da família b (Co, Eg, Fi); o interessante manuscrito La, por meio de revisão operada cerca de 1350 (portanto, ainda dentro da “antiga vulgata”), colacionando sua lição originária com outro códice, corrigiu crine para a lição correta, erine.
Conforme já dissemos, e como se verá nos dois itens seguintes do texto, a edição de Petrocchi é aquela com que os editores recentes e os que ainda hoje editam a Comédia estão dialogando, razão pela qual ponderações importantes serão explicadas ao tratar desses trabalhos, mais adiante. É preciso, contudo, indicar dois pontos que desde logo convocam cautela.
O primeiro é que estudos paleográficos e codicológicos recentes alteraram substancialmente o que seria uma recensio da antiga vulgata, com a adição de 52 manuscritos ao número de códices da Comédia anteriores a 1335, e a exclusão de 3, que são, na verdade, mais tardios, de modo que hoje se entende haver 85 manuscritos da Comédia anteriores a 1355.
O segundo é a subversão de alguns elementos basilares do método crítico, de que se destacam dois: o desprezo da já anunciada regra de eliminatio codicum descriptorum (assim, se, por exemplo, Eg é cópia de Co, e Co é conservado, não se justifica, uma vez estabelecido o estema, que Eg seja retido para a edição; na verdade, hoje se sabe que Co é mais recente do que Eg, de modo que o estema não se sustentaria); a rápida rejeição do também já enunciado princípio recentiores non deteriores, tanto o mais porque não ficou provada a efetiva inexistência de lições genuínas e independentes em manuscritos posteriores a 1355, o que dependeria, por evidente, de sua efetiva colação.
O que se evidencia assim, de certo modo, é que o estema de Petrocchi não é bem um estema. As linhas não indicam realmente, ou não sempre, uma relação de filiação, isto é, de exemplar e cópia, mas apenas uma proximidade estreita. O vértice, por sua vez, não é exatamente um arquétipo, já que não são indicados os erros comuns a toda a tradição, mas algo como a forma (nebulosa, não esclarecida) mais antiga de difusão integral do poema. Esse caráter não propriamente estemático do estema é sem dúvida o responsável pelo fato de que, como demonstra amplamente a faixa de comentário ao sopé da página, Petrocchi raramente se guie por regras estemáticas no estabelecimento das lições, salvo casos de concordância ampla entre ? e ?, procedendo, amiúde, um pouco como Vandelli, pela discussão do caso concreto.
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Para além (ou aquém) de Petrocchi: entre Lachmann e Bédier
Diante do que já se chamou de “lachmannismo heterodoxo” da edição de Petrocchi, algumas reações despontaram a partir da década de 1990, quando se retomou o problema da edição da Comédia, que, por cerca de 30 anos, parecera fechado, tamanho o impacto do trabalho de Petrocchi. Algumas dessas reações marcaram um decidido afastamento do caminho da antica vulgata, ainda que com soluções muito diversas. É delas que tratamos sumariamente neste item.
Em um filão de trabalho, Federico Sanguineti se esmerou em produzir edição que se arrogava o qualificativo de crítica, vinda a lume em 2001; é, com efeito, a primeira que ostenta, sem ambiguidade, o subtítulo de “edição crítica”. A razão que justificaria esse estatuto é a colação de todos os manuscritos da tradição, mas com base nos lugares críticos de Barbi. Entretanto, conforme examina alguns loci, Sanguineti vai eliminando manuscritos, sempre com base em poucos erros significativos, até chegar a um estema minimalista, que contempla apenas sete manuscritos (imagem 5).
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Conforme se vê, Sanguineti postula um efetivo arquétipo no vértice (?), de que partiriam, como no estema de Petrocchi, os subarquétipos ? (em que as famílias a e b têm contornos muito semelhantes aos petrocchianos) e ?. Na delimitação desses ramos, há, contudo, importantes diferenças: a uma, o manuscrito tardio LaurSC — copiado por Filippo Villani — vai promovido a testemunho fundamental, que vale pela metade de todo o subarquétipo ? (pois está na mesma posição estemática de x); a duas, Rb vai deslocado de ? para ?, deixando Urb como único representante de ? e, por isso mesmo, com valor equiparado ao de metade de toda a tradição.
Diante dessa proposta, a perspectiva de Sanguineti desagua em promover ? a “melhor testemunho” do texto da Comédia, preferindo sempre as suas lições quando não sejam claramente errôneas e mesmo valorizando-o como portador de elementos da língua de Dante que não seriam conservados nem mesmo nos manuscritos florentinos. Resulta a diretriz de trabalho: “oferecer o texto de Urb, corrigindo, à luz do estema, seus erros substantivos e expurgando seus traços anti-florentinos imputáveis ao escriba”. Conforme veremos ao final deste item, essa tomada de posição é profundamente ambígua e dobra o lachmannismo ao ponto de como que identificá-lo com seu reverso, o bedierismo, de que se tratará adiante.
Buscando aderir mais estritamente ao método crítico, em termos que se apresentam como neolachmannianos (pelo que se entende uma depuração do método lachmanniano, disposta a acolher, em atitude experimental, distintos métodos em função das características da tradição em apreço, mas sempre com o intento de viabilizar uma constitutio conjectural e arrazoada), Paolo Trovato vem preparando, juntamente com uma equipe, edição da Comédia cujo primeiro volume se anuncia para 2021, mas de que já foram publicados três cantos, a título de antecipação (If., 23, If., 27 e If., 34), bem assim como numerosos estudos preparatórios.
O fulcro da contribuição de Trovato repousa na reavaliação global da tradição, isto é, na recensão de todos os manuscritos — sem desprezar os recentiores —, e em sua ampla colação, ainda que apoiando-se no método dos lugares críticos, levantados, contudo, em elevado número (630, incluídos os 396 do cânone de Barbi). Após dez anos de levantamentos e outros tantos de ponderação, Trovato apresentou estema também lachmanniano em sentido estrito — isto é, exibindo efetiva filiação, e não mera proximidade. Sua concepção da tradição, contudo, altera muito mais profundamente a proposta de Petrocchi do que o fizera Sanguinetti (imagem 6).
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Essencialmente, para Trovato, o arquétipo perdido seria setentrional e mais especificamente bolonhês, e a maior parte da tradição — em suma, todo o ramo ? de Petrocchi, compreendendo cerca de 500 dos 580 manuscritos da recensio — seria não apenas muito contaminada e de má qualidade, mas ainda derivada da tradição setentrional, supostamente bem documentada. A família ? poderia, por isso, ser eliminada sem prejuízo para a edição. Entretanto, note-se, desde logo, que a operação não é menos arriscada do que a eliminatio dos recentiores por Petrocchi, pois, não se conservando o antecedente de ? e dos manuscritos de mesma posição estemática, estamos em plena heterodoxia metodológica.
De todo modo, os manuscritos que sobram são, assim, todos setentrionais, da Emília-Romanha, dividindo-se em dois subarquétipos: ?, subdividido, por sua vez, nas famílias bol e mad, e ?0, a seu turno repartido nas famílias ? e p. Essa tradição, além de muito menos contaminada do que ?, seria também bastante mais compacta, o que se verifica no singelo número de variantes registradas no aparato crítico, neste caso em forma de aparato positivo.
Essas famílias teriam ainda um valor intrínseco decrescente, apto a se formular como ?> p> bol> mad. Desse modo, uma vez excluído o ramo ?, podem-se operar escolhas mecânicas na tradição, isto é, decisões sobre as variantes em razão de sua posição estemática, ao contrário do casuísmo que se verificaria na edição de Petrocchi. A valoração dos testemunhos confirma a importância de Urb, mas não isoladamente, como em Sanguineti, já que Trovato integra ao estema o manuscrito mais tardio F, que seria descendente do mesmo exemplar que Urb e apresentaria inclusive melhor alternativa para as variantes formais, por exibir uma pátina menos marcadamente setentrional.
Um ponto de método relevante que se extrai das ponderações de Trovato é que, diferentemente de uma lei da maioria “salomônica”, a pressupor a equivalência qualitativa dos ramos, a avaliação do mérito intrínseco dos testemunhos torna as árvores bífidas menos tormentosas do que pareceriam em abstrato; afinal, um testemunho de alta qualidade não tem tantas chances de estar errado quanto outro de péssimos atributos. Note-se que a potência da emendatio ope codicum (ou selectio, “seleção”) é, com efeito, pedra de toque do lachmannismo, naquilo em que procura disciplinar o subjetivismo do editor.
A senda assim percorrida por Trovato é uma tentativa intensa de reconstruir o texto da Comédia, exercício refinado e complexo de crítica textual cujos principais frutos ainda estão por vir. Quanto às virtudes específicas do trabalho já operado, voltaremos a algumas considerações na seção seguinte, à luz do quanto Inglese vem ponderando sobre as publicações de Trovato e sua equipe.
Crítica a Petrocchi, como Sanguineti e Trovato, mas vendo saída não em uma aplicação (supostamente) mais ortodoxa do lachmannismo, e sim em seu decidido abandono, foi publicada, em 1995, a edição da Comédia curada por Antonio Lanza. Ela se anuncia como um “novo texto crítico”; ainda que se tempere assim a noção de edição crítica, não deixa de ser aberrante no contexto, pois Lanza se baseia fundamentalmente em um único manuscrito, o já referido Triv, copiado por Francesco di ser Nardo. A perspectiva de Lanza é alinhar-se ao bedierismo, elegendo um bom manuscrito (bon manuscrit) e se mantendo fiel a ele no limite do possível, ainda que “sem viseiras, isto é, em bons noventa por cento dos casos e para além disso”.
A abordagem que Lanza declara ser a sua está radicada na crítica dirigida por Joseph Bédier (1884-1938) ao método lachmanniano. Sua primeira edição, estritamente lachmanniana, do Lai de l’Ombre (1890), propunha uma bipartição da tradição, o que atraiu a crítica de seu mestre, Gaston Paris (1839-1903), que apontou inconsistências no estema, que, a seu ver, seria antes tripartido. Ao meditar por longos anos sobre as críticas, Bédier acabou por se afastar inteiramente do lachmannismo, em uma série de intervenções críticas e, enfim, em nova edição do Lai de l’Ombre (1913). Para Bédier, o método lachmanniano resultava na criação de um texto heteróclito, sem respaldo em nenhum manuscrito, um produto da fantasia. Daí a diretiva de encontrar um bon manuscrit, ou o codex optimus (“o melhor códice”), e corrigi-lo apenas quando necessário, diante de erros absolutamente evidentes.
É o credo de Lanza: “de duas uma: ou uma edição realmente lachmanniana com aparatos e estemas inconsultáveis para construir um puzzle monstruoso, ou uma escolha inteligentemente bédiériana, que, a meu juízo, é a única estrada que se pode percorrer”. No seu entender, “o texto dos meus predecessores — Vandelli, Casella, Guerri e Petrocchi — são textos compósitos; o meu tem a vantagem de ser um texto real, fisicamente tangível, emendado apenas em pouquíssimos casos”. Ademais, com escolher Triv, que, já vimos, foi adotado por Petrocchi para a veste linguística de seu texto, recuperar-se-ia, segundo Lanza, “uma veste linguística francamente florentina”.
Reencontramos aqui, conforme anunciado, a grande aporia da edição de Sanguineti, que, pela via indireta de um lachmannismo incompleto, acaba por chegar à sua negação; em um rompante de ecletismo, Sanguineti vem mesmo a atribuir seu método simultaneamente “a Barbi (loci selecti), Bédier (bon manuscrit) e Lachmann (stemma)”. Ora, a compatibilidade entre essas premissas apenas se poderia acatar com uma série de delimitações.
A edição de Lanza — e o mesmo vale, em geral, para a de Sanguineti —, não teve, em geral, acolhida calorosa, pelas deficiências intrínsecas do bedierismo, que Contini caracterizou como um “depósito de angústias” diante da impotência face à tarefa que lhe parecia (e é) impossível, isto é, restituir, ou restaurar (tal e qual), o original. Com efeito, a perspectiva bedieriana não parece sustentável. Não parece nem mesmo proveitosa. Conforme bem assinalaram Spaggiari e Perugi, “a bruta materialidade dos objetos — no nosso caso, a edição mais ou menos servil dum só testemunho — nunca pôde, nem poderá, substituir o processo de racionalização, que constitui a única forma disponível ao pesquisador com vista a tomar um conhecimento científico da realidade”.
Mais do que uma renúncia a Lachmann — que, já vimos, é parte indevidamente tomada pelo todo —, refugar a crítica textual e a centralidade da constitutio textus é cair numa apreensão pueril do mundo. É evidente que pode interessar, por diversas razões, entender as lições peculiares de Triv ou de Urb, mas sua radical particularidade só se demonstra diante dos processos de transmissão e de alteração do texto. É por isso que um bérierismo estrito pressupõe, na verdade, uma recensio completa, ou então não é possível determinar o codex optimus senão de forma inteiramente impressionista. A conta não fecha.
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Na senda de Petrocchi: a obra do engenho entre limite e liberdade
Como vimos, apesar de se agermanarem na tomada de posição decididamente crítica à edição de Petrocchi, as edições de Lanza, Sanguineti e Trovato posicionam-se muito diversamente. A de Trovato é a única que se pode ter por tentativa efetivamente compromissada com a constitutio textus, já que a extrema heterodoxia de Sanguineti acaba por levá-lo diretamente ao terreno ilusório do bedierismo, onde se encontra com Lanza.
Agora, como último passo de nossa reflexão, passamos a considerar brevemente dois empreendimentos ainda em curso que, a despeito de diferenças de monta, aproximam-se por ambicionar, não subverter, mas refinar a edição de Petrocchi. Pensamos que esses esforços têm o notável mérito de apurar os instrumentos do trabalho, contribuindo, a um só tempo, para o estabelecimento do texto da Comédia e para a metodologia da crítica textual.
Giorgio Inglese desponta hoje em posição eminente, que já foi a de Vandelli e depois a de Petrocchi, isto é, como encarregado de preparar o texto da Comédia para a Sociedade Dantesca Italiana, no âmbito da “edição nacional” das obras do Poeta, empreendimento oficial, estando a Sociedade hoje subordinada ao Ministério da Cultura na Itália, e todas as suas iniciativas postas sob a égide daquele órgão governamental.
Inglese já produziu uma cuidadosa edição comentada da Commedia, em três volumes, publicada entre 2007 e 2016. Tratava-se, declaradamente, de uma revisão do texto de Petrocchi (revisione del testo, como reza o subtítulo), dotada de ampla anotação filológica a justificar escolhas textuais divergentes. Em sintonia com aquela edição e com a que está ora em curso, produziu diversos estudos de grande pertinência para compreender a transmissão da Comédia.
Ainda que, em veio distintamente petrocchiano, Inglese relativize o estatuto do estema, que seria mais um registro de “zonas de adensamento das corruptelas” do que a narração precisa de uma história, o autor foi refinando, ao longo do tempo, observações já bastante sagazes no raro estema que publicou em 2007 (imagem 7). O trabalho de base consistiu na colação de variantes tendencialmente monogenéticas, rigorosamente selecionadas, limando, assim, o instrumental que conduzira a erro editores precedentes, conforme vimos; tratava-se de 214 loci em 2007, revistos para 185 em 2019, com inclusão de alguns novos passos e exclusão de outros que, ao fim e ao cabo, poderiam ser poligenéticos.
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O tratamento dessas variantes parte de uma tomada de posição relativamente à recensio e de duas notáveis contribuições metodológicas em face de uma tradição que se reputa contaminada, como é o caso da Comédia. A tomada de posição é a de manter-se dentro dos limites temporais da antiga vulgata, limada ainda para 14 manuscritos essenciais (com um pouco mais de latitude recentemente): exclusão dos textos fragmentários e parciais (Gv, Ga, Pa, Cha e Mart), do tardio Co (mal datado em Petrocchi, já o vimos) e dos manuscritos do “grupo dos Cem” (colaterais de outros manuscritos conservados).
Ao longo do tempo — e de forma metódica em 2019 —, Inglese submeteu diversos recentiores ao crivo de seus loci critici, notadamente aqueles prestigiados por Sanguineti e por Trovato (F, LauSC, Bol, etc.), concluindo que não transmitem lições genuínas pertinentes, devendo ser readequados no estema, muitos deles sob z (fusão de b e c do estema de Petrocchi, representando o “texto padrão”, testo standard, do poema). Diante dessa constatação, aproxima-se de Petrocchi na limitação temporal, mas sem recorrer ao argumento insustentável da atividade singularmente perturbadora de Boccaccio; antes, concentrar-se na antiga vulgata decorre de que “as oportunidades de ‘melhora’ do texto (verdadeira ou presumida) [isto é, de contaminação] que se ofereciam aos copistas cresceram de década em década, com o aumento da disponibilidade dos códices e com a difusão dos comentários”.
No tratamento desse conjunto esguio, mas motivado, de testemunhos, Inglese procedeu por meio de algumas notáveis estratégias. A primeira é apontar que a transmissão horizontal, motivada por uma dificuldade ou estranhamento, conta com um escriba alerta, de modo que “a contaminação transmite mais facilmente correções do que erros”. Por isso mesmo, é fundamental levar em consideração a qualidade das variantes, pois as efetivamente errôneas são muito mais pertinentes para estabelecer relações estemáticas verticais.
A segunda estratégia é corolário da primeira; ora, se “um testemunho tem mais erros em comum com seus próprios afins (transmissão vertical) do que quantos tem com os textos com que interagiu por linhas horizontais”, então, conclui Inglese, “a quantidade de dados convergentes permite superar a ambivalência do dado singular”. Essa consideração estatística das lições errôneas permite ainda aproveitar, mesmo que subsidiariamente, os erros poligenéticos; afinal, “se é possível admitir que três, quatro ou cinco escribas incorram por acaso no mesmo engano (svista), se os mesmos três, quatro ou cinco convergem em dez ‘enganos’ idênticos, será difícil atribuir isso ao acaso”. Em outros termos, as constelações de erros poligenéticos também podem ter caráter comprobatório para a transmissão.
Forte nesses procedimentos, que são efetivos avanços metodológicos, Inglese propôs, em 2007, o estema acima (imagem 7), que foi sendo refinado, mesmo sem ter sido redesenhado, desde então. A ramificação petrocchiana em ? e ? vai confirmada, ainda que com reposicionamentos internos já sugeridos em parte por outros trabalhos. Notem-se o deslocamento de Rb e Mad, que assumem posição próxima à que era de La no estema de Petrocchi, o reposicionamento de La em c e a identificação de um exemplar z, no mesmo nível estemático de a, de modo que b e c vêm degradados (isto é, deslocados um grau para baixo do estema).
As principais inovações com relação ao estema petrocchiano estão, contudo, nos graus superiores do gráfico, e notadamente em dois pontos fundamentais. A primeira é que Inglese promove o vértice petrocchiano O a um ?, isto é, ao papel efetivo de um arquétipo. Trata-se especificamente da “fonte das corruptelas comuns a ? e a Urb (?)”, que Inglese prova pelo erro comum a toda a tradição em Pd., 32, 1, que transmite leffecto, sem sentido, que precisa ser corrigido em affetto (affetto al suo piacer, quel contemplante / libero officio di dottore assunse, “afeito ao seu prazer, aquele contemplante / assumiu o encargo gratuito de professor”). Seria também o caso de Pg., 4, 83 e de Pd., 27, 100, assim como, provavelmente, de outros passos em que uns poucos códices trazem lição correta, seja por correção ope ingenii, seja porque tiveram acesso a testemunho extra-estemático.
Com isso, fica evidente que a existência do arquétipo pode ser afirmada porque todos os testemunhos dependem dele, mas não porque dependem só dele; em outros termos, o estema é aberto, o que está assinalado nitidamente pela linha tracejada que parte de a para cima, ligando-se a um ponto de interrogação. Conferindo renovada importância a Mart em contributos posteriores, Inglese determinou que, diante de uma série de lições particulares e corretas, é preciso entender que o antecedente desse manuscrito e de Triv — possivelmente uma edição preparada por Forese — teve acesso a ?, mas também a um texto que está fora do estema.
Há especificamente uma variante que permite reconhecer que o testemunho extra-estemático é texto associado à divulgação independente dos dois primeiros cânticos, em vida de Dante. Trata-se de Pg, 2, 80-81, em que Triv exibe a lição tre volte dietro a lei le mani avvinsi, / e tante mi tornai con esse al petto (“três vezes, por detrás dele, eu estendi as mãos, / e tantas vezes retornei com elas ao meu peito”), ao passo que a tradição (? + ?) traz tre volte dietro a lei le mani avvinsi, / e tante mi tornai con nulla al petto (“três vezes, por detrás dele, eu estendi as mãos, / e tantas vezes retornei com nada ao meu peito”). Ora, ocorre que é exatamente a lição particular de Triv que vem reproduzida em 1316 por Andrea Lancia em seu volgarizzamento da Eneida, em emulação a Dante (cf. o segundo texto desta série).
Talvez se trate mesmo de uma variante de autor, segundo propõe, aliás, Inglese, de modo que Dante teria substituído esse por nulla entre a primeira publicação do Purgatorio e o material que deu origem ao protótipo de Iacopo Alighieri. A ideia de “protótipo” é bastante original e visa a designar o texto histórico que se supõe ter sido divulgado por Iacopo em 1322, em contraposição ao arquétipo, que é um texto suposto, a ser reconstruído, que pode se identificar ao protótipo ou não.
Diante das peculiaridades apontadas, apesar da aparência bipartite, estamos em realidade defronte de uma tradição “tripartida entre: um ‘texto padrão’ ?/z (que responde pela quase totalidade dos manuscritos conservados, a partir dos vetustos Ash, Eg, La e Parm); uma ‘edição’ (organizada e firmada por Forese […]), legível nos testemunhos Mart e Triv; o códice Urb (único representante antigo — 1352 — de um ramo ?, a que talvez também alcance, por via de contaminação, o manuscrito Rb).
Em face dessa muito consistente reavaliação da tradição, para além do mérito intrínseco das lições, que deve ser ponderado sempre em primeiro lugar, para que as dúvidas se reduzam às variantes efetivamente “adiáforas” (também chamadas “neutras” ou “equivalentes”, aquelas que não podem se arrogar prima facie preeminência sobre as demais), é possível aplicar procedimentos estemáticos de fato: promover em primeiro lugar a concordância a + ? e, secundariamente, z + ?; as lições isoladas de a não podem se tornar mais decisivas, apenas pela existência de uma fonte extra-estemática, do que o acordo tendente a revelar o arquétipo.
Ora, com base nesses critérios, alguns dos hard cases de que falamos na introdução podem ser reavaliados. A título de exemplo, a concordância a + ? garante as reconstruções error (If., 3, 31), parea beato per iscripto (Pg., 2, 44) e voler contezza (Pg., 24, 36), encontrando-se z isolado como portador de lições inferiores, que devem ter surgido em z, ou já em ?, mas corrigidas em a devido à fonte externa a que teve acesso. De todo modo, o avanço de Inglese parece decisivo, e sem dúvida a edição nacional apresentará texto de altíssima qualidade, seguramente o mais próximo que já se produziu dos desideratos da crítica textual.
É também para o corrente ano que Enrico Malato promete o primeiro volume de sua Comédia, no seio do vasto e fundamental empreendimento que vem coordenando, a Nuova Edizione Commentata delle Opere di Dante, de que já falamos nos textos precedentes. Ocorre que já é possível entender e valorar as escolhas de Malato, pois o texto da Comédia foi publicado antecipadamente, em edição de bolso, em 2018, ao mesmo tempo em que um volume independente registrava todas as variantes relativamente à edição de Petrocchi, com as explicações reputadas pertinentes.
Malato tem engajamento de mais de meio século com o problema textual da Comédia, desde quando realizou extensa apreciação da edição de Petrocchi, em 1968. Já naquele momento, chamava a atenção para contribuição de Pagliaro, a conceber o problema do texto da Comédia como de natureza fundamentalmente exegética; para Malato, seria um “problema não mais estritamente filológico, mas exegético, cuja solução depende não tanto de uma recensio mais ou menos ampla […], mas daquele particular e delicadíssimo tipo de emendatio que é a interpretatio”. A solução para a extensa contaminação repousaria, portanto, em um particular ponto do método filológico, que é, em princípio. subsidiário, mas vem alçado, no caso específico, à preeminência: a emendatio ope ingenii (interpretatio, divinatio).
Malato manteve-se coerente no tempo, asseverando, agora em 2018, que, devido à contaminação, não são possíveis nem um ordenamento genético dos manuscritos, nem uma edição bedieriana, que ofereceria texto arbitrário como qualquer outro. Impõe-se antes “tentar uma nova estrada […]: aquela da interpretatio em função da constitutio textus”. Contudo, a ideia de uma interpretatio rigorosa e prudente é, como o próprio autor afirma, dificílima. Seria possível exemplificá-lo com testemunho do próprio Malato, que, se em 1968 louvava o engenho de Petrocchi na escolha de determinadas variantes, em 2018 veio a apresentar argumentação extensa no sentido contrário. Para ficar ainda com nossos hard cases, é o que se passa especificamente com If., 3, 31 (orror/error) e com If., 23, 14 (iborni/i borni). É, portanto, caso de exercer cautela, especialmente diante dos notáveis progressos filológicos de que tratamos acima.
Uma meditação paciente sobre a argumentação de Malato, entretanto, parece apta a desbastar favoravelmente o terreno pedregoso da emendatio ope ingenii, para além dos critérios consuetos da lectio difficilior e do usus scribendi; o próprio Malato deixa claro como, por vezes, determinar qual é a lectio difficilior se mostra impraticável. Nesse panorama, parece interessante sua insistência, ao justificar escolhas textuais, na noção do “sentido do contexto”, por exemplo ao dizer que “a discriminante só pode se encontrar na congruência de uma ou de outra [variante] com o contexto”. A ideia geral é a da “apreensão global da mirabile visione dantesca, em que cada elemento é como a pastilha de um mosaico, que vale por si, mas também e sobretudo como parte de um contexto”. Essa diretriz, que se poderia nomear critério sistemático, tem apoio na intensa coesão semântica da Comédia e na estudadíssima amarração entre as suas partes.
Nesse sentido, uma página de Contini, em intervenção intitulada justamente “Filologia e exegese dantesca”, pode fornecer um caminho de aprofundamento dessa senda. Segundo o autor, as operações do dantismo moderno — isto é, em 1965 — são, em seu conjunto, elementos do que denomina “crítica verbal”. Trata-se especificamente dos seguintes pontos: “verificações pontuais dos cânones retóricos, para inserção na continuidade clássica; descoberta de relações particulares em que se espelham, como na mônada o macrocosmo, dados da estrutura geral [aqui se localizaria justamente a diretriz de Malato apontada acima!]; interpretações gnoseológicas em liame com a restituição gramatical; novas e exasperadas auscultações da letra até que ela libere uma tradução inédita; talvez analise dos valores fonossimbólicos”. É todo um programa ainda incipiente.
Mesmo que se deva acantonar a constitutio textus pela via da interpretatio a seus limites próprios, isto é, à posição de subsidiariedade relativamente à emendatio ope codicum, a meditação continuada sobre esse ponto obscuro da prática filológica não apenas é meritório, mas tendente a contribuir para práticas mais saudáveis na matéria. Por isso, parece-nos que a edição de Malato, com o amplo comentário da NECOD, ainda que em escala muito diversa do texto crítico de Inglese, aportará contribuição não desprezível para a crítica textual da Comédia.
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Em suma, se a Comédia permanece um texto móvel, ela está longe de ser texto que não oferece critérios para uma determinabilidade incremental. O trabalho precioso da crítica textual vem permitindo aperfeiçoar sucessivamente aquele texto, possibilitando também, assim, a descoberta de sempre novas espessuras de sentido, cuja identificação evidentemente depende do estado do texto que se tem diante de si. Que o leitor possa então se lançar à Comédia, mas sempre lembrando, com o livro em suas mãos, que ceci n’est pas la Commedia di Dante.
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Siglas dos manuscritos da antiga vulgata e demais manuscritos citados
NB1: as datações, ao fim, são as de Rotiroti (ver as Indicações de leitura abaixo)
NB2: as siglas entre colchetes são as adotadas por Sanguinetti e por Trovato
An: Roma, Biblioteca Angelica, 1101 [s. XIV, último quarto]
Ash [A]: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ashburnham, 828 [s. XIV, meados]
Bo: Bologna, Archivio di Stato, fragmentos
[Bol]: Bologna, Biblioteca Universitaria, 589 [s. XIV, segunda metade]
Cha: Chantilly, Musée Condé, 597 [s. XIV, segundo quarto]
Chig: Città del Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, Chigiano, L.VI.213 [s. XIV, segunda metade]
Co: Cortona, Biblioteca Comunale e dell’Accademia Etrusca, 88 [s. XIV, último quarto]
Eg: London, British Library, Egerton, 943 [s. XIV, meados]
[F]: Udine, Biblioteca dei Conti Florio (Università di Udine) [não incluído em Rotiroti, s. XV]
Fi: Napoli, Biblioteca Oratoriana dei Girolamini, CF.2.16 (anteriormente, 4.20) [s. XIV, terceiro quarto]
Ga: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Plut., 90 sup. 125 [1347]
Gv: Ravenna, Biblioteca del Centro Dantesco dei Frati Minori Conventuali (anteriormente, Firenze, Ginori Venturi, 46) [s. XIV, último quarto]
Ham [H]: Berlin, Deutsche Staatsbibliothek, Hamilton, 203 [1347]
[L41]: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Plut. 40.1 [não incluído em Rotiroti, 1456]
La: Piacenza, Biblioteca Comunale Passerini Landi, 190 [1336]
Lau: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Plut. 40.16 [s. XIV, meados]
Laur: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Plut. 40.22 [1355]
LauSC [L]: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Plut. 26 sin. 1 [s. XIV, último quarto]
Lo: Belluno, Biblioteca Lolliniana, 35 [s. XIV, segundo quarto]
[Ls]: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Strozzi, 155 [s. XIV, último quarto]
Mad [Md]: Madrid, Biblioteca Nacional, 10186 [10 de novembro de 1354]
Mart [M]: Milano, Biblioteca Nazionale Braidense, Aldina, AP XVI 25 (impresso, com anotações marginais de Luca Martini, a partir de códice perdido de 1330-1331)
Mo: Modena, Biblioteca Estense e Universitaria & Archivio di Stato, fragmentos [s. XIV, segundo quarto]
[P9]: Padova, Biblioteca del Seminario Vescovile, 9 [s. XIV, último quarto]
Pa: Paris, Bibliothèque nationale de France, italien 538 [30 de agosto de 1351]
[P67]: Padova, Biblioteca del Seminario Vescovile, 67 [não incluído em Rotiroti, s. XV]
Parm: Parma, Biblioteca Palatina, Parmense 3285 [s. XIV, segundo quarto]
Po: Firenze, Biblioteca Nazionale Centrale, Palatino, 313 [s. XIV, segundo quarto]
Pr: Paris, Bibliothèque nationale de France, italien 539 [s. XIV, meados]
Rb [R]: Firenze, Biblioteca Riccardiana, 1005 + Milano, Biblioteca Nazionale Braidense, AG XII 2 [s. XIV, segundo quarto]
Ri: Firenze, Biblioteca Riccardiana, 1035 [década de 1360]
Ricc: Firenze, Biblioteca Riccardiana, 1010 [s. XV, segundo quarto]
Sa: La Spezia, Archivio Notarile Distrettuale (fragmentos, previamente no Archivio Notarile, em Sarzana) [s. XIV, meados]
To: Toledo, Archivo y Biblioteca Capitulares, 104.6 [s. XIV, terceiro quarto]
Triv [T]: Milano, Biblioteca dell’Archivio Storico Civico e Trivulziana, 1080 [1337]
Tz: Milano, Biblioteca dell’Archivio Storico Civico e Trivulziana, 1077 [s. XIV, segundo quarto]
Urb [U]: Città del Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, Urb. lat., 366 [16 de março de 1352]
Vat: Città del Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, Vat. lat., 3199 [s. XIV, meados]
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Indicações de leitura
Em primeiro lugar, preciso registrar meus agradecimentos aos dois grandes leitores deste texto e desta série, Alexandre Hasegawa e João Carlos Mettlach, pelas sugestões sempre estimulantes.
Para uma introdução à crítica textual, há um excelente manual em língua portuguesa: B. SPAGGIARI; M. PERUGI. Fundamentos da crítica textual: história, metodologia, exercícios. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. A exposição clássica do “método de Lachmann” é a de P. MAAS. La critica del testo [4.ed., 1960]. Trad. Giorgio Ziffer. 2.ed. Roma: Storia e Letteratura, 2021. Mas é proveitoso ler o próprio Lachmann: K. LACHMANN. In T. Lucretii Cari De rerum natura libros commentarius. Berlin: Georg Reimer, 1850. A história desse método é contada por S. TIMPANARO. La genesi del metodo di Lachmann. 3.ed. Padova: Liviana, 1985. Citamos por diversas vezes: G. CONTINI. Breviario di ecdotica. Torino: Einaudi, 1997. Para mais informações, cf. E. H. AUBERT. A perspectiva filológica. Todas as Letras, n. 23 (1), p. 1-14, 2021. Acessível em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tl/article/view/14350/10952
Para introduções gerais à crítica textual da Comédia: S. BELLOMO. Filologia e critica dantesca [2008]. 2.ed. Brescia: Scholé, 2020; M. GRIMALDI. Filologia dantesca: un’introduzione. Roma: Carocci, 2021; P. SHAW. Transmission History. In: Z. G. BARA?SKI; S. GILSON (ed.). The Cambridge Companion to Dante’s ‘Commedia’. Cambridge: Cambridge University Press, 2019, p. 229-244; R. VIEL. Sulla tradizione manoscritta della Commedia: metodo e prassi in centocinquant’anni di ricerca. Critica del testo, n. 14 (1), 2011, p. 459-518. Para uma descrição dos manuscritos do século XIV: M. B. ROTIROTI. Codicologia trecentesca della Commedia: entro e oltre l’antica volgata. Roma: Viella, 2004.
O estudo citado sobre os preciosos fragmentos do Inferno é: R. IACOBUCCI. Un nome per il copista del più antico frammento della Divina Commedia: Andrea Lancia. Scrineum Rivista, n. 7, 2010, p. 5-34. A anotação de Forese transcrita por Luca Martini pode ser lida em: E. MALATO. Per una nuova edizione commentata delle opere di Dante [2004]. 2.ed. Roma: Salerno, 2016, p. 112.
As antigas edições da Comédia de que falamos ao começo do texto são: [Dante Alighieri. La Commedia.] Foligno: Johann Neumeister & Evangelista, 1472; [P. BEMBO (ed.)] Le Terze Rime di Dante: Lo ’nferno e’l Purgatorio e’l Paradiso di Dante Alaghieri. Venezia: Aldo Manuzio, 1502; La Divina Commedia di Dante Alighieri nobile fiorentino ridotta a miglior lezione dagli Accademici della Crusca. Firenze: Accademia della Crusca, 1595; C. WITTE (ed.). La Divina Commedia di Dante Allighieri, ricorreta sopra quattro dei più autorevoli testi a penna. Berlin: Rifolf Decker, 1862; E. MOORE (ed.). Dante Alighieri. Tutte le opere di Dante Alighieri [1894]. 3.ed. Oxford: Horace Hart, 1904; M. BARBI; E. G. PARODI; F. PELLEGRINI; E. PISTELLI; P. RAJNA; E. ROSTAGNO; G. VANDELLI (ed.). Le opere di Dante. Firenze: Bemporad, 1921, p. 482-836; M. CASELLA (ed.). Dante Alighieri. La Divina Commedia. Bologna: Zanichelli, 1923.
Na obra desses estudiosos, há importantes reflexões para a filologia da Comédia: M. BARBI. Per il testo della Divina Commedia. Roma: Trevisini, 1891; M. CASELLA. Studi sul testo della Divina Commedia. Studi danteschi, n. 8, 1924, p. 5-85; E. MOORE. Contributions to the textual criticism of the Divina commedia. Cambridge: Cambridge University Press, 1889.
O texto de Perazzini é: B. PERAZZINI. Correctiones et adnotationes in Dantis Comediam. In: IDEM. In editionem tractatuum vel sermonum sancti Zenonis. Verona: Marco Moroni, 1775, p. 55-86. Os loci critici de Barbi estão publicados em: A. BARTOLI; A. D’ANCONA; I. DEL LUNGO. Per l’edizione critica della “Divina Commedia: canone di luoghi scelti per lo spoglio dei mss. della ‘Divina Commedia’”. Bullettino della Societa Danteca Italiana, n. 1, 1891, p. 25-38.
A edição de Petrocchi: G. PETROCCHI (ed.). Dante Alighieri. La Commedia secondo l’antica vulgata. [1966-1967]. Primeira reimpressão revista. Firenze: Le Lettere, 1993, 4 v.. Deve-se lê-la junto com diversos artigos reunidos em: G. PETROCCHI. Itinerari danteschi. Milano: Franco Angeli, 1994.
A edição de Sanguineti é: F. SANGUINETI. Dantis Alagherii Comedia: edizione critica. Firenze: SISMEL, 2001. A mais recente explicação de Trovato a respeito de sua iminente edição se encontra em: P. TROVATO. Quelques anticipations de “notre” Commedia: confirmations et nouveautés textuelles. In: S. BADDELEY; E. TONELLO (dir.). Edition de textes canoniques nationaux: le cas de la Commedia de Dante. France: Edition des archives contemporaines, 2020, p. 131-140. Os principais estudos preparatórios estão em: P. TROVATO (ed.). Nuove prospettive sulla tradizione della “Commedia”: una guida filologico-linguistica al poema dantesco. Firenze: Cesati, 2007. Seguiram-se, em 2013 e 2020, uma segunda e uma terceira séries, com o mesmo título. Trovato também preparou um notável manual de crítica textual, com um amplo capítulo sobre a Comédia: P. TROVATO. Everything you always wantes to know about Lachmann’s method [2014]. Padua: livreriauniversitaria.it, 2017, p. 229-334. Enfim, a edição de Lanza: A. LANZA (ed.). Dante Alighieri. La commedìa: nuovo testo critico secondo i più antichi manoscritti fiorentini. Anzio: De Rubeis, 1995.
A edição de Inglese: G. INGLESE (ed.). Dante Alighieri. Commedia. Roma: Carocci, 2016, 3 v. (para o Inferno e para o Purgatorio, trata-se da segunda edição, pois a primeira havia saído em 2007 e 2011, respectivamente). Entre suas principais intervenções na matéria estão as seguintes: G. INGLESE. Per lo ‘stemma’ della “Commedia dantesca”: tentativo di statistica degli errori significativi. Filologia italiana, n. 4, 2007, p. 51-72; G. INGLESE. La revisione testuale del ‘Purgatorio’. Giornale storico della letteratura italiana, n. 189 (626), 2012, p. 161-190; G. INGLESE. “Cara piota”: proposte per la Commedia. Studi danteschi, n. 84, 2019, p. 15-55.
A edição de Malato: E. MALATO (ed.). Dante Alighieri. La Divina Commedia. Roma: Salerno, 2018. Sua lista e explicação de todas as lições divergentes relativamente a Petrocchi: E. MALATO. Per una nuova edizione commentata della Divina Commedia. Roma: Salerno, 2018. Entre os diversos estudos de Malato pertinentes à matéria, citamos sobretudo os seguintes: E. MALATO. Il testo della Commedia secondo l’antica vulgata [1968]. In: IDEM. Lo fedele consiglio de la ragione: studi e ricerche di letteratura italiana. Roma: Salerno, 1989, p. 273-317; E. MALATO. Per una nuova edizione commentata delle opere di Dante [2004]. 2.ed. Roma: Salerno, 2016. Malato é responsável também por um belíssimo instrumento de trabalho, a que recorremos amiúde neste texto: E. MALATO. Lessico filologico: un approccio alla filologia. Roma: Salerno, 2007. Citamos, em correlação com o trabalho de Malato, trecho de: G. CONTINI. Filologia ed esegesi dantesca. In: IDEM. Un’idea di Dante: saggi danteschi [1970]. Torino: Einaudi, 2001, p. 113-142.
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