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Sejamos todos mais banais — um patrocínio de Karl Ove Knausgaard
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por Ana Carolina Romero
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Parece-me quase impossível que um indivíduo com pretensões literárias não tenha, uma vez sequer, se deixado paralisar pela impressão de que deveria escrever algo notável, digno de destaque, para de fato sentir que a escrita lhe valia de alguma coisa — ou escrevo algo de que só se possa tecer bons comentários, ou não escrevo nada. Acontece que, diante dessa determinação, o mais provável não é que o sujeito de repente consiga atingir ao ideal tal qual foi sonhado, mas sim que acabe desistindo de escrever o que quer que seja.
Na presença de semelhante dilema, do qual eu mesma nunca estive imune, passei a me perguntar que escritores, depois de publicados, já haviam relatado uma noção próxima a essa. Em verdade, questionei-me se esse sentimento poderia ter constituído a própria raiz de escrita de determinado autor. Que existem escritores ambiciosos e, ao mesmo tempo, inseguros, é bastante evidente. Mas pode ser também que a dificuldade de expressão e o conflito em lidar com a própria ambição literária tenham sido as responsáveis pelo estilo de um autor?
A resposta chegou até mim por meio da leitura de Karl Ove Knausgaard, escritor contemporâneo norueguês que, aos olhos da crítica, revoluciona o que até então se entendia como autoficção. Embora o termo tenha sido cunhado já nos anos 70 e esteja em voga na literatura da contemporaneidade, Karl Ove Knausgaard é de certa forma inédito à medida que se compromete a narrar, com uma riqueza impressionante de detalhes, toda a sua vida desde a infância. O relato de uma festa de réveillon, por exemplo, prolonga-se por aproximadamente 100 páginas sem que o escritor aparente a menor dificuldade em nos apresentar assuntos que justifiquem essa duração. Alejandro Chacoff, crítico literário e também escritor brasileiro, inclusive divertiu os leitores de sua coluna ao propor uma paródia da escrita de Knausgaard. Chacoff imagina uma ida ao banheiro como um tipo de evento específico sobre o qual o autor norueguês narraria. Segundo Chacoff, enquanto outros escritores talvez se limitassem à frase “fui ao banheiro”, ou até a suprimissem, Knausgaard certamente falaria a respeito das luzes do ambiente, do “espelho umedecido, da textura de suas fezes e talvez até da proveniência alimentícia delas”. O que importa, de fato, é a percepção de que Knausgaard pode fazê-lo sem que a alternativa de abandonar a leitura sequer passe pela cabeça de seus leitores. A questão é bem sintetizada pelo jornal italiano La Stàmpa: Knausgaard é dotado de uma habilidade hipnotizante que induz seu leitor a um estado de transe.
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O conflito de escrita de Knausgaard
Quase somos levados a pensar, diante do que comumente se fala sobre Knausgaard, que tudo o que o autor escreve ganha relevância. Se os leitores se sentem hipnotizados, se experimentam um transe, a impressão que resulta é a de que poderíamos ler qualquer coisa que tivesse sido escrita por ele e ainda nos manteríamos interessados. No entanto, essa inferência precipitada faria com que quebrássemos a cara. A escrita de Knausgaard nem sempre foi recebida dessa forma — inclusive por ele mesmo. Em entrevista para o jornal The Guardian, intitulada Karl Ove Knausgaard: the shame of writing about myself, o autor esclarece que o propósito maior, a essência e a própria razão de ser do livro A morte do pai, o primeiro a compor a série Minha luta, era inatingível para ele. Durante quatro anos, Knausgaard acordava pela manhã, sentava-se diante da página em branco e, embora as linhas se desenrolassem frente aos seus olhos, elas não pareciam reais o bastante. Ele não se percebia capaz de escrever sobre o fato a respeito do qual mais almejava escrever — a morte de seu próprio pai.
Depois de estar diante do cadáver do pai pela primeira vez, o único pensamento de Knausgaard era o de que precisava escrever sobre o que via. Preciso escrever sobre isso, ele repetia a si mesmo, como muitos dos aspirantes à escrita se afirmam frente a determinados acontecimentos ou imagens. Ainda assim, durante anos, nada aconteceu. Knausgaard nos pede, em mais de uma entrevista, que imaginemos a sensação de ir, por quatro anos, para o trabalho, apenas para falhar o dia todo e então voltar para a casa. Foi como ele experienciou o tempo anterior ao de sua estreia literária.
Na entrevista para o Guardian, ele pondera as possíveis razões dessa dificuldade:
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“O maior problema em escrever sobre algo da própria vida talvez seja exatamente isso — que você está lidando com algo que realmente aconteceu. Um evento só é verdadeiro quando ocorre, uma parte tão importante de sua experiência consiste no fato de que estamos no meio dele, e não fora, incapaz de ver o quadro geral, nunca sabendo onde ele nos levará”.
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Como escrever sobre acontecimentos que não se findaram dentro de nós, que continuam a irromper e a nos circundar de modo quase claustrofóbico? Que clareza nos é possível transpor para um fato do qual não conseguimos nos impor sequer o mínimo afastamento?
O interessante a respeito de Karl Ove Knausgaard é que a sua escrita parece ter sido inspirada precisamente pela dificuldade que, a princípio, o paralisou. Na mesma entrevista, ele declara que “o que faz um romance parecer vital é que ele surja à medida que é escrito, da mesma forma que o momento ocorre à medida que é vivido”. Ele decide, portanto, escrever às cegas, sem saber o que exatamente surgiria dessa tentativa. Como exemplo, ele menciona a mesma festa de réveillon à qual fiz referência mais cedo. A celebração acontece quando ele ainda tem 16 anos e é um dos eventos que inaugura a narrativa de A morte do pai. No momento da escrita, Knausgaard confessa não ter tido ideia “do que estava escrevendo ou do porquê”, mas que, progressivamente, tornou-se claro para ele o fato de que seu relato correspondia à vida “como ela aparenta ser para um jovem desinformado de 16 anos em toda a sua enorme banalidade”.
Banalidade. Aí parece estar a chave.
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A resposta da banalidade
A escrita de Knausgaard ganha liberdade quando o autor se permite ser banal. Tomando como base esse preceito, ele entende que conseguiria escrever inclusive sobre a morte do pai — tratando a morte “em toda sua enorme banalidade”. A intenção passa a ser a de simplesmente descrever os eventos como eles lhe acontecem, isto é, como parte de sua “própria experiência trivial”. Knausgaard não olharia mais para a Morte, com letra maiúscula, enquanto entidade em si e constituinte da vida de todo e qualquer ser humano. Ele escreveria sobre uma morte, a morte de seu pai, e sobre aquilo que, por conseguinte, havia de mais cotidiano a respeito dela.
A ideia corresponde a reflexões sobre a escrita que o autor situa nos próprios livros. Em A morte do pai, por exemplo, ele afirma que “escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos. É disso que a escrita se ocupa.” Não seria, portanto, “do que acontece aí, não das ações que se praticam aí, mas do aí em si. Aí, esse é o lugar e o propósito da escrita”. A sugestão de se atentar ao “aí em si” e à “essência da sombra” me parece uma boa representante da banalidade pela qual o norueguês procurou. No último livro da série Minha luta, intitulado O fim, ele declara também que “o romance é a forma da vida pequena, e quando não é assim o romance está mentindo e não é um romance de verdade, porque não existe um eu que não seja também pequeno”.
Numa espécie de ode à banalidade, Knausgaard expressa a importância que há na vida pequena, porque nela está contido todo e qualquer sujeito que se intitule um “eu”. Igualmente, é importante que se retire da sombra a essência “do que sabemos”, e não exatamente que se diga tudo aquilo que a sombra é capaz de abarcar. Em outras palavras, talvez nos baste retratar na escrita aquilo que, a princípio, pode nos parecer pequeno demais, demasiado íntimo, e que precisamente por isso nos soa indigno de ser registrado. Nós e os acontecimentos dos quais somos protagonistas, assim como os sentimentos pelos quais somos acometidos, somos todos parte da “vida pequena” defendida por Knausgaard.
Em dois fragmentos de A morte do pai, a intencionalidade de tomar o banal como ponto de partida é bem ilustrada. No primeiro deles, Knausgaard se conscientiza do ar envolto pelos pulmões para trazer à tona o fato de que o pai já não está vivo:
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“O ar estava mais fresco agora, e eu, com o corpo quente do trabalho, senti o frio me envolvendo, fazendo pressão sobre minha pele e se insinuando pela minha boca. Podia senti-lo envolvendo as árvores na minha frente, as casas, os carros, as encostas das montanhas. Podia senti-lo se deslocando de um lugar para outro com a queda da temperatura, essas avalanches que ocorrem constantemente no céu e nós não conseguimos enxergar, arrebentando sobre nós como enormes ondas, sempre em movimento, descendo vagarosamente, rodopiando veloz, entrando e saindo de todos esses pulmões, chocando-se contra todas essas paredes e cantos, sempre invisível, sempre presente.
Meu pai já não respirava. Fora isso que acontecera com ele, sua ligação com o ar havia sido interrompida, agora o ar apenas o envolvia como envolve qualquer outra coisa, um tronco de árvore, um barril de petróleo, um sofá. Ele já não tomava posse do ar, pois é isso que fazemos quando respiramos, invadimos, invadimos continuamente o mundo.”
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Tem-se, aqui, a evidência do romance enquanto forma de vida pequena. É essa a essência da sombra; é o “aí em si” de uma experiência que pode também ser geral. A reflexão é construída em meio ao banal — respira-se ar quando se está vivo, não se respira mais quando se morre.
No segundo trecho destacado, esclarece-se o que Knausgaard alega sobre não pensar na Morte enquanto entidade, e sim no que haveria de mais trivial a respeito dela. Ele escreve:
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“Agora eu via somente a ausência de vida. E já não havia diferença entre aquilo que um dia fora meu pai e a mesa onde ele jazia, ou o chão onde estava a mesa, ou a tomada na parede embaixo da janela, ou o fio que ia até a luminária ao lado dele. Pois os seres humanos são apenas formas em meio a outras formas, as quais o mundo não cessa de reproduzir, não só naquilo que tem vida, mas também naquilo que não tem, desenhado na areia, na pedra e na água. E a morte, que eu sempre considerara a maior dimensão da vida, escura, imperiosa, não era mais que um cano que vaza, um galho que se quebra ao vento, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão.”
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O que pode ser mais prosaico que um cano que vaza, que um galho que por acaso se quebra, e que um casaco que, por descuido, escorrega do cabide e cai no chão? É a aproximação da própria experiência ao banal o que faz com que não só Knausgaard consiga apreendê-la em sua honestidade, como também que a transmita por meio da escrita. Que saibamos também nós, aspirantes a escritores ou não, reconhecer a importância — e, por vezes, a urgência — de nos permitir a banalidade.
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