Na abertura de seu romance Elizabeth Costello, J.M. Coetzee nos mostra a escritora australiana homônima (na verdade o seu alter ego, que aparece em vários de seus livros) viajando aos Estados Unidos para receber um prêmio literário. Ela já é sexagenária, não anda bem de saúde, e por isso é acompanhada pelo filho, John, que observa o cansaço da mãe diante de tais obrigações profissionais. Após uma entrevista numa rádio, ele reflete, nas palavras de Coetzee:
“No fim das contas, avalia ele, ouvindo, uma performance habilidosa, se ainda se pode usar essa expressão, consumindo a maior parte da hora, conforme o planejado, deixando apenas alguns minutos para desviar de perguntas que começam com ‘O que a senhora acha…?’ O que ela acha do neoliberalismo, da questão feminina, dos direitos dos aborígenes, do romance australiano hoje? Morou com ela quase quatro décadas, indo e voltando, e ainda não tem certeza do que ela pensa das grandes questões. Não tem certeza e, no geral, agradece não ter de ouvir. Pois as ideias dela seriam, desconfia, tão pouco interessantes quanto as da maioria das pessoas. Uma escritora, não uma pensadora. Escritores e pensadores: água e vinho. Não, não água e vinho: peixe e pássaro. Mas qual é ela, o peixe ou o pássaro? Qual é o seu elemento: água ou ar?”
Essa passagem de Coetzee me veio à mente enquanto eu andava pelas ruas de Paraty durante a última Flip. Eu fui à feira como editor, na esperança de fazer contatos, conhecer leitores e profissionais do mercado editorial e, vã esperança, vender alguns livros. As ruas estavam lotadas de pessoas, entrando e saindo dos eventos na Flip oficial e nas casas paralelas (eu estava em uma delas). E esses eventos se resumiam, como em toda feira do tipo, imagino, a sessões de autógrafos e a mesas literárias. Por todo lado por onde eu passava, havia pessoas apinhadas assistindo a alguma dessas mesas. Os temas eram os mais variados possíveis, e nem todos diziam respeito a… literatura. O que me fez pensar: o que leva uma pessoa a ir a um evento literário para ouvir escritores falando sobre qualquer assunto que não seja literatura? E mesmo sobre literatura, será que todos têm mesmo algo a dizer sobre um ato que é, em grande parte, intuitivo e intangível? Pois Coetzee tem toda razão: escritores não são pensadores. Nem os grandes escritores têm ideias profundas. Nem Machado de Assis, para falarmos do nosso maior gênio literário; as ideias profundas nele foram retiradas de Arthur Schopenhauer — este, sim, um pensador profundo. A genialidade de Machado de Assis está em outro lugar: na capacidade extraordinária de dissecar a condição humana em narrativas construídas com enorme habilidade. Mas, se o escritor não é um pensador, por que ele é instado, tal qual Elizabeth Costello, a dar opinião sobre tudo? O autor, no mundo contemporâneo, tornou-se um generalista. Mas o que é um autor, exatamente? Onde e quando ele surgiu? Que importância ele tem, de fato? Como eu não sou um pensador, como não tenho ideias profundas e originais sobre nada (eu tenho ideias fortes sobre tudo, na verdade, mas desconfio que elas sejam absolutamente banais), decidi pedir ajuda a um homem que foi um pensador profundo, com ideias originais: o filósofo francês Roland Barthes. Comecemos pelo início, então, com este trecho do ensaio A morte do autor, escrito em 1967:
“O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’. É pois lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à ‘pessoa’ do autor. O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário intimo, a sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões (…)”
A chave do trecho acima é o advérbio tiranicamente. Quando eu, jovenzinho, estudava Artes Plásticas e li o incontornável Gombrich, aprendi o equivalente ao que Barthes diz acima sobre os pintores e escultores. No mundo antigo, na arte chinesa milenar, ou na arte cristã primitiva, por exemplo, não havia o artista, ele era irrelevante. O que interessava era a obra, a pintura, a escultura, o objeto de arte. No mundo moderno, surgiu o Artista com A maiúsculo, cuja importância se sobrepôs à própria obra: você pode não gostar de uma pintura; mas se você ler, nos créditos abaixo dela, que se trata de um Salvador Dalí, passará a lhe dar valor (o próprio Dalí afirmou que era um pintor medíocre, se comparado a um Velázquez, e que as pessoas compravam sua obra por causa da assinatura). Mas, segundo Barthes, esse artista-deus é, no fundo, um deus tirano, ou melhor, um deus falso, pois o que é um deus? Um criador. E o autor nem mesmo é um criador. Novamente no ensaio A morte do autor (amado por uns, odiado por outros), Barthes nos mostra, colocando aqui de forma bastante resumida e simplificada, que todo texto produzido é, na verdade, um amálgama de todos os textos que vieram antes, e que cabe ao autor não criar histórias e personagens, mas combinar elementos do real, dentro de uma tradição já dada, dentro de um sistema já existente:
“Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações, saldas dos mil focos da cultura.”
Isso não impediu, obviamente, que a figura do Grande Escritor se misturasse à figura do Grande Intelectual. Houve Thomas Mann nos EUA, discursando contra Hitler; houve Camus na França, batendo de frente com Sartre e o marxismo. Mas talvez essa era dos escritores intelectuais tenha passado, mas não a avidez do público por tais figuras — principalmente no Brasil, onde são sempre recebidos como o próprio Messias, por um exército de tietes sem pudor. Aconteceu com o próprio Camus, em 1949, com Faulkner, em 1954 (que enchia a cara para encarar tais eventos), e com Gore Vidal, em 1986 (eu estava lá — a primeira e última vez em que saí de casa para ver um escritor falar). Apraz-me em maior medida Samuel Beckett: lutou de fato na Resistência, mas jamais disse uma palavra a respeito.
E se o autor passou, tiranicamente, a ser mais importante do que a obra, nos últimos anos vimos uma exacerbação dessa tirania, pois com a nova tendência da autoficção, o autor agora é a própria obra — vide os casos recentes de Karl Ove Knausgård, Annie Ernaux e Édouard Louis — não por acaso todos convidados e incensados em edições da Flip. Parece-me que o público atual, ávido por fofocas, está mais interessado nos “podres” dos autores (e em suas posições políticas) do que em qualquer ficção que eles possam produzir. Eu me pergunto o que Barthes diria disso tudo. Nós partimos de Kafka, Joyce e Guimarães Rosa para chegar nisso? A literatura (ou seja, a ficção) não pode ser um mero expurgo pessoal.
Mas tudo pode piorar. Se antes essa figura do escritor intelectual dava palestras, nas quais fazia um resumo de sua obra, hoje as feiras literárias estão tomadas pela praga das “mesas literárias”. Elas vêm do ambiente acadêmico, onde tais painéis são eventos comuns. Porém, nas universidades tais debates se dão entre especialistas; há rigor, embora muitas vezes os discursos sejam um tanto enfadonhos. Nas mesas literárias atuais, o que vemos são escritores, generalistas por natureza, dizendo platitudes. Não há rigor algum; sobra apenas o enfado. O próprio Coetzee, escritor brilhante, é um palestrante modorrento. Há exceções, obviamente. Há pessoas que são hábeis oradoras e sabem entreter o público, como provou o historiador Luiz Antonio Simas com sua apresentação animada e envolvente da obra de João do Rio, na abertura da Flip. Mas o que se viu, nos dias seguintes, tanto na Flip oficial quanto nas casas paralelas, foi algo diverso. Enquanto Simas tinha um objetivo claro, ou seja, apresentar vida e obra do autor carioca, nas demais mesas, como é praxe nesses eventos, os temas eram os mais variados, e decididos previamente. Ou seja, o autor não vai apresentar a sua obra, ou discorrer sobre o seu último livro, mas adequar o seu discurso ao tema proposto. E este é, provavelmente, o problema mais grave: as banalidades ditas pelos escritores não se limitam a ideias sobre literatura, mas em maior escala a posicionamentos políticos, sociais e culturais — uma extrapolação do que já virou a pedra de toque do que tem valor literário hoje. O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr, um dos astros da Flip, afirmou, em uma entrevista a O Globo:
“Não consideramos um livro pelo seu valor literário, pela linguagem, pela estrutura, pelos personagens ou pela relação entre eles, mas só por seu tema, como se a literatura não passasse de uma reivindicação cultural ou política. Isso empobrece a leitura, é trágico.”
Ponto para Sarr: o tema é o que menos importa na literatura. Em Crítica e Verdade, Barthes afirma que “o mundo pede ao escritor que sustente a responsabilidade de sua obra; pois a moral social exige dele uma fidelidade aos conteúdos, enquanto ele só conhece uma fidelidade às formas”. Em suma, não importa a história que se conta, mas como se conta. Madame Bovary é uma história sobre uma mulher casada e infiel — embora chocante à época, tornou-se um tema batido após décadas de folhetins, novelas televisivas, telefilmes etc. O que o torna um clássico da literatura mundial é a forma como Flaubert narra a história, inaugurando o que chamamos de romance realista. Ulysses trata de pessoas comuns, numa Dublin provinciana; novamente, o que importa é como Joyce narra essa história, de forma tão genial que se pode dizer com segurança que é o romance mais importante do século 20: há a literatura antes de Ulysses, e há a literatura depois de Ulysses.
E aqui tocamos no ponto nevrálgico dessa história toda: se o tema é secundário, todo o engajamento dos escritores atuais se revela fora de lugar e, em última instância, inócuo, pois as pautas sociais e políticas se tornam irrelevantes numa obra de ficção. Ou deveriam. As discussões sobre o racismo e o feminismo, por exemplo, são absolutamente prementes. São temas que precisam estar nas escolas, nas universidades, no Congresso, na sociedade; e, mais importante, os debates precisam se converter em leis que assegurem os direitos coletivos e individuais dessas minorias. Numa obra de ficção, porém, tornam-se mais um tema secundário ou irrelevante, entre todos os temas secundários ou irrelevantes que povoam todos os romances já escritos. De novo Barthes, em Crítica e Verdade:
“(…) Eis por que é irrisório pedir a um escritor que engaje sua obra: um escritor que ‘se engaja’ pretende jogar simultaneamente com duas estruturas, e não pode fazê-lo sem trapacear, sem recorrer àquele torniquete astucioso que fazia de Mestre Jacques ora cozinheiro, ora cocheiro, mas nunca os dois ao mesmo tempo (inútil voltar uma vez mais a todos os exemplos de grandes escritores desengajados ou ‘mal’ engajados, e de grandes engajados maus escritores). O que se pode pedir ao escritor é que seja responsável; e mesmo assim, é preciso entender: que o escritor seja responsável por suas opiniões é insignificante; que ele assuma mais ou menos inteligentemente as implicações ideológicas de sua obra, mesmo isso é secundário; para o escritor, a verdadeira responsabilidade é a de suportar a literatura como um engajamento fracassado, como um olhar mosaico sobre a Terra Prometida do real (é a responsabilidade de Kafka, por exemplo)”.
A minha passagem pela Flip foi cansativa, decepcionante, exasperante; não pretendo voltar. Não vendi quase nada, mas li que os números oficiais também não foram grande coisa: o livro A mais recôndita memória dos homens, de Sarr, vendeu 244 exemplares na Livraria da Travessa (a livraria oficial da Flip, a mesma que queria impedir que as casas paralelas vendessem também). Um número baixo, considerando que ele foi um dos astros da feira, que teve 30 mil visitantes. Além de não vender nada, passei quatro dias com o mesmo sentimento que Clarice Lispector teve ao ir a um congresso de literatura latino-americana na Colômbia, onde discursavam nomes como Mario Vargas Llosa. Ela virou para a amiga Lygia Fagundes Telles e disse: “Isso está muito chato, vamos sair daqui”, e foram fumar e tomar umas biritas num bar.
Mas, dizem, toda experiência serve como aprendizado, principalmente as experiências ruins. Antes de ir embora, fitei o mar durante alguns minutos e fui iluminado por um pensamento profundo e transformador, o único que tive nos últimos anos, quiçá em toda a minha existência: peixes não voam.
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Marcelo Nunes é escritor e editor-chefe da Editora Nauta.
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Referências
COETZEE, J.M. Elizabeth Costello – Oito palestras. (José Rubens Siqueira, trad.) São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O Rumor da Língua. (Mário Laranjeira, trad.) São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. (Leyla Perrone-Moisés, trad) São Paulo: Perspectiva, 2007.