O equívoco das cantigas

Por Caio Cesar Esteves de Souza, um ensaio sobre cantigas galego-portuguesas nas letras medievais.

por Caio Cesar Esteves de Souza

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Desenhos, inscrições e rubricas dos séc. XV e XVI (Reprodução: Littera/FCSH)

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Quando pensamos nas letras medievais portuguesas, uma das produções mais conhecidas no campo da poesia é certamente a das cantigas galego-portuguesas. Tendo sido compostas sobretudo entre os séculos XII e XIV, esses poemas/canções foram preservados basicamente em três livros manuscritos, além de outros manuscritos avulsos. O mais antigo desses códices manuscritos é o Cancioneiro da Ajuda, produzido em inícios do século XIV. É esse também o códice com o menor número de cantigas, sendo todas mais ou menos enquadradas no que entendemos por cantigas de amor. Os outros dois códices — o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana — foram produzidos no século XVI sob ordem do humanista italiano Angelo Colocci. Esses dois livros manuscritos são cópias de um outro livro mais antigo que se encontra perdido atualmente. Apesar de serem cópias de um mesmo manuscrito, os dois cancioneiros apresentam muitas diferenças entre si, sendo o Cancioneiro da Biblioteca Nacional o mais extenso dos três, com cerca de 1664 cantigas, enquanto o Cancioneiro da Vaticana traz copiadas pouco mais de 1200 cantigas. Nesses dois cancioneiros, encontramos além das cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, encontramos também a única fonte possivelmente medieval sobre a composição das cantigas: a Arte de Trovar, que discutirei aqui.

Quando falamos de cantiga de amor, amigo, escárnio e maldizer, é sempre muito fácil simplificar o tema de maneira grosseira, como faz qualquer apostila de Ensino Médio. Segundo esses manuais, Cantigas de Amor seriam aquelas em que um homem fala sobre seu amor por uma mulher e sofre muitíssimo, de forma muito elevada, por esse amor cortês inatingível. As Cantigas de Amigo, aquelas em que uma mulher fala de seu amor por um homem que, geralmente, a abandonou; essa mulher costuma ser uma camponesa que conversa com as árvores, pássaros, flores, rios etc. em um registro humilde. As de Escárnio seriam cantigas satíricas mais moderadas, em que não se nomeia o alvo da sátira, e se evitam ofensas muito grosseiras e explícitas; são consideradas mais difíceis de se entender. As de maldizer seriam aquelas em que ou o satirizado é nomeado diretamente, ou as ofensas são explícitas, agressivas e expressas com palavras de baixo calão. Se isso fosse tão simples assim, este seria o texto mais curto já publicado no Estado da Arte. Vamos dar uma olhada nessa questão um pouco mais de perto.

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Nobre, jogral com cítola, jogral com harpa (Reprodução: Littera/FCSH)

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Essa classificação dos quatro gêneros (dentre muitos outros, como cantiga de risabelha, tensão etc. que não discutirei aqui), que alguns autores modernos propõem que sejam três (tratando escárnio e maldizer como um só gênero), é bastante antiga e data ao menos do século XVI. Ela está presente nos capítulos 4º a 6º da Arte de Trovar encontrada no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e nos apresenta muitíssimos problemas. Comecemos pelo começo: as cantigas de amor e de amigo. Ambas são definidas no capítulo 4º e podem ser acessadas tanto em um fac-símile do manuscrito quanto em uma edição ligeiramente modernizada na excelente plataforma desenvolvida por pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa sob a liderança da Professora Graça Videira Lopes. Sempre que citar o texto aqui, modernizarei mais radicalmente a grafia, pela natureza de divulgação deste artigo. Como vocês podem verificar na edição completa, a Arte de Trovar é um texto fragmentado em que seus 3 primeiros capítulos não foram copiados no manuscrito, então o quarto capítulo do tratado é também o primeiro de que temos conhecimento. Nesse capítulo, o autor anônimo está falando de cantigas dialogadas (“algumas cantigas aí há em que falam eles e elas outrossim”) em que os envolvidos no diálogo sejam um homem e uma mulher. Nesse caso, as cantigas se dividem em dois grupos:

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 “sabede que, se eles falam na primeira cobra e elas na outra, é de amor, porque se move a razão dele, como vos ante dissemos; e se elas falam na primeira cobra, é outrossim de amigo; e se ambos falam em uma cobra, outrossim é segundo qual deles fala na cobra primeiro”.

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O que se diz aqui é, basicamente, que cantigas dialogadas são definidas como de amor ou de amigo de acordo com quem fala primeiro no poema. Se o homem fala na primeira cobra (estrofe), seria de amor; se a mulher fala primeiro, seria de amigo. Não se trata, portanto, de registro elevado ou humilde, de amor cortês ou não, ou sequer de uma questão temática. A divisão é definida pelo gênero de seus enunciadores e pela disposição do poema. Seria possível inclusive argumentar que cantigas de amor e de amigo sempre pressupõem um diálogo entre pessoas dos dois gêneros — e, sendo assim, grande parte do que consideramos cantigas de amor e de amigo perderia esse rótulo, porque registram apenas uma dessas vozes em seus versos, e não ambas. Isso seria uma leitura muito exagerada do texto da Arte de Trovar, já que há ali a indicação a uma discussão anterior que não está disponível para nós sobre a “razão” que move a cantiga ser do homem ou da mulher. Nada impede que imaginemos que nos capítulos anteriores as cantigas de amigo e de amor tivessem sido definidas em relação à divisão de gênero da “razão” que as move, e não necessariamente da voz de quem fala primeiro em seus versos. Mas como a nossa imaginação, por mais provável que seja, não se constitui em evidência histórica a menos que nos adotemos como medida de todas as coisas — e nem eu chego a esse nível de egocentrismo — esta leitura é tão pouco autorizada quanto a outra. E isso demonstra que as categorias de “cantiga de amor” e “cantiga de amigo” são muito menos simples e estanques do que as apostila de Ensino Médio nos fazem crer. Na verdade, nós ainda discutimos na academia as implicações dessas divisões e as formas mais eficazes de utilizá-las atentando ao seu significado histórico.

O caso das cantigas satíricas é muito mais simples e, ao mesmo tempo, complexo quando lido no século XXI. No capítulo quinto, o autor anônimo assim define as cantigas de escárnio: “Cantigas de escárnio são aquelas que os trovadores fazem querendo dizer mal de alguém nelas, e dizem-no per palavras cobertas que hajam dois entendimentos, para lhe não entenderem ligeiramente; e estas palavras chamam os clérigos equivocatio”. A primeira coisa importante para nós é notar como o riso não faz parte da classificação satírica dessas cantigas. Segundo a Arte de Trovar, as cantigas de escárnio são escritas não para causar o riso na plateia, mas para falar mal de alguém. Não se quer, assim, castigar os desvios morais para purificar a sociedade através do riso, como na sátira latina de Horácio e Juvenal; cantigas de escárnio (e de maldizer) querem agredir a um indivíduo e o motivo não é relevante para a sua poética.

No capítulo seguinte, o autor da Arte de Trovar nos diz o seguinte sobre as cantigas de maldizer: “Cantigas de maldizer são aquelas que fazem os trovadores descobertamente e nelas entram palavras em que querem dizer mal e não haverão outro entendimento senão aquele que querem dizer chãmente”. Com isso, já podemos traçar a diferença entre as cantigas de escárnio e maldizer de acordo com essa poética tardo-medieval: nas cantigas de maldizer, há apenas um sentido possível para o texto, que se apreende imediatamente em sua leitura ou durante sua performance; nas de escárnio, há um sentido escondido e outro aparente. As cantigas de maldizer também o fazem “chãmente”, ou seja, em registro baixo. Não há qualquer referência à necessidade ou não de mencionar o nome do satirizado. A diferença entre ambas parece ser mesmo evidente e pode até causar a impressão de estar resolvida. Como o leitor já deve imaginar, a questão não é tão simples assim.

A pergunta que surge e deve sempre surgir é: qual é o sentido evidente de uma cantiga? Que se dissesse isso enquanto elas ainda eram produzidas e circulavam em seu mundo é uma coisa, mas como é possível que nós, que temos acesso a esses textos ao menos cinco séculos depois de sua fixação em papel, sete ou oito séculos depois de sua imaginada primeira composição e de séculos de intervenções de ouvintes, copistas, editores etc., podemos determinar qual é esse sentido evidente? É claro que há cantigas em que essa determinação é mais simples; mas há outras em que não sabemos muito bem se a dificuldade em as compreender vem de nossa incapacidade ou de um trabalho poético que busca construir dois sentidos ali. O que fazer nesses casos? Como classificá-las?

E essas questões são de fato apenas o início do problema. Digamos que haja certeza de que uma cantiga é de escárnio e não de maldizer. Pois bem… como podemos interpretá-la? Se antes a nossa dificuldade era saber se ela tinha apenas um sentido evidente ou se tinha também outro encoberto, agora a dificuldade é determinar com alguma exatidão tanto o sentido evidente quanto o encoberto. E que o leitor não se engane, pois a Arte de Trovar é muito clara em outro aspecto: não há polissemia nas cantigas de escárnio; não vale ter múltiplas interpretações. Há dois sentidos nesses poemas, não três, quatro ou dez. Um deles é evidente, o outro está encoberto. O que os separa é tempo — o autor anônimo diz que o objetivo de haver dois entendimentos é para que a audiência/leitor não possa entendê-los ligeiramente. Uma leitura que encontre três sentidos em uma cantiga de escárnio, segundo essa poética, é tão inadequada quanto uma que não encontre nenhum. A leitura é normativa e, por isso, dificílima. Sobretudo para nós que, em 2021, já não temos os mesmos pressupostos poéticos, filosóficos, teológicos etc. que esses autores e ouvintes. O equívoco, enquanto recurso poético, usado nessas cantigas de escárnio é muito preciso: digo X para dizer Y e apenas Y. Pensar que podemos inferir qualquer outro sentido a esses textos é equívoco nosso.

Por fim, só quero piorar um pouco a situação, pois não vim aqui oferecer respostas, mas perguntas. Tudo isso que disse neste texto está tomando como ponto de partida a Arte de Trovar, que é o mesmo ponto de partida que as histórias literárias supostamente adotam ao falar das cantigas — e as apostilas de ensino médio a que me referi adotam essas histórias literárias como seu ponto de partida. A questão que surge, no entanto, é: por que adotar a Arte de Trovar como referência para ler as cantigas? Ela se encontra presente em um manuscrito do século XVI, sem qualquer referência que nos permita determinar com exatidão quando ela foi produzida. Foi uma produção muito posterior à das cantigas? Se foi contemporânea à composição das cantigas, ela teria sido feita por um autor de cantigas ou por alguém que as ouvia? Como podemos saber se essa arte poética tem qualquer afinidade com o processo de composição das cantigas sobre a qual fala? Muitos autores nas últimas décadas propõem que a leiamos com algum cuidado, pois não devemos simplesmente presumir que só porque ela se encontra na abertura do Cancioneiro da Biblioteca Nacional ela tem algum tipo de autoridade inquestionável que possa legitimar ou deslegitimar interpretações das cantigas. E estão certos. Ela é um documento valioso, isso é evidente, mas quão valioso? É suficiente? Certamente não, mas qual é a profundidade de sua insuficiência? E sem ela somos mais ou menos capazes de compreender esses poemas que nos fascinam por tantos séculos? Que o leitor, mais corajoso que eu, se arrisque nessas respostas. Eu me satisfaço com as perguntas.

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Desenhos acrescentados no séc. XV (Reprodução: Littera/FCSH)

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