Cena poética: A poesia de Lawrence Salaberry

O Estado da Arte dá início a uma série de publicações dedicadas à poesia brasileira contemporânea. Críticos, intelectuais e escritores de diversas formações e gerações analisam as obras de alguns dos principais nomes da atual cena poética do país. 

O Estado da Arte dá início a uma série de publicações dedicadas à poesia brasileira contemporânea. Críticos, intelectuais e escritores de diversas formações e gerações analisam as obras de alguns dos principais nomes da atual cena poética do país.

Ecos, reflexos e metamorfoses

por Cláudio Ribeiro

Quem termina a leitura de Engano especular (São Paulo: É Realizações, 2012, 112 páginas), de Lawrence Salaberry, pseudônimo do premiado tradutor Lawrence Flores Pereira, percebe que está diante de uma das mais belas e bem feitas obras de poesia de língua portuguesa das últimas décadas. Dividido em cinco partes, intituladas “Cantos de Dissolução” (a mais extensa), “Satânicas”, “Fragmentos de Septimus”, “Sonhos e Ironias” e “Reflexos no Inconstante”, o livro — o único de Salaberry, até o momento — impressiona pela organicidade entre os temas abordados e a riqueza imagética e estilística.

O poema final, por exemplo, trata do mais célebre “rebelado” por nós conhecido, aquele que “Tem por calabouço suas próprias trevas/ E finge indiferença ao céu anil”. Isto é, Satã. Esse poema tem doze estrofes de três versos cada, sendo as seis últimas rigorosamente compostas em terza rima. Satã constitui o mote dos versos derradeiros de Engano especular por um motivo razoavelmente simples: um dos temas que atravessa todo o livro é a “Queda”, a transgressão, a hýbris, como diziam os gregos. Vejamos duas das estrofes:

“A alma ali estava com suas asas
Esguias esgueiradas sobre o fosso.
Sim, cair da altura até estas brasas,

Transgredir, e cair como um destroço,
Depois de saborear nesse covil
Um fruto que não era nada insosso!”

Esse tema, por sua vez, articula-se a outros correlatos, como o auto-engano narcísico (daí o “especular” do título). Aliás, o mito de Narciso e da ninfa Eco, narrado por Ovídio, no Livro III das Metamorfoses, é decisivo para a compreensão da obra de Salaberry. E é isso que quero destacar neste ensaio.

O primeiro poema já o anuncia, em dada medida, quando diz que “Os poetas queimam/ Por esse quase nada,/ Essa protuberância/ Antiga,/ Onde se oculta a inimiga” e, por isso, são presos “À estranha sensação/ De querer um fundo”. Imagens que nos remetem à “outra sede de Narciso”, que, ao procurar saciar-se na fonte, acaba por inebriar-se com sua própria imagem.  Como escreve Ovídio: “Sem o saber, a si se deseja; é aquele que ama, e é ele o amado./ Ao cortejar, a si se corteja. Arde no fogo que acende./ Quantos beijos inúteis deu na fonte que lhe mentia!” (Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017, 912 páginas.). Narciso morre vítima de seus próprios olhos, como “cera consumida no fogo brando”, “orvalho que derrete ao calor do sol” por um “fogo oculto”. Ele enamora-se de sua própria imagem refletida, e isto o leva à dissolução.

Eco, por sua vez, enamora-se de Narciso, observando-o passear pelos bosques. No entanto, não consegue tê-lo porque sua voz nunca articula outras palavras que não aquelas que ouve de quem lhe fala, refratando-as. Mas qual mariposa que se queima ao aproximar-se da lâmpada, Eco aos poucos vai se entregando à luz que emana de Narciso, como canta Ovídio (ainda na tradução de Domingos Lucas Dias): “E quanto mais o segue, mais próxima está da chama em que arde,/ exatamente como o inextinguível enxofre que reveste a extremidade/ das tochas é incendiado pela proximidade da chama.” Em poema inteiramente dedicado Eco, diz Salaberry: “E sua boca,/ Como penha dura/ Que reflete a figura/ Que a voz/ Lhe envia por dom,/ Era muda ternura/ Suplicando a improvável união.” Vendo, após alguns dias, Narciso “adormecido junto às brasas”, ela então o “bebia inteiro, a amada Eco/ Calada com seu corpo quase seco.” Novamente, podemos ir ao texto ovidiano: uox tantum atque ossa supersunt… “Apenas lhe restam a voz e os ossos”.

Não evoquei a figura da mariposa apenas como metáfora de um ser que se queima, inebriado de luz. Como é sabido, o último estágio da metamorfose de insetos alados, como borboletas, mariposas e afins, chama-se imago. E esta palavra é empregada por Salaberry em momentos decisivos do livro. Evidentemente, a referência à poesia pastoril e, particularmente, à tradição que remonta às Metamorfoses ovidianas está clara aí. Por isso que muitas das imagens que se sucedem nos poemas, como a do salmão, da aranha, da tapera, da casa, da fonte, da floresta, da andorinha, da suçuarana, estão sempre se dissolvendo, escapando, se decompondo, se metamorfoseando. E tudo isso acompanhado por uma cadência rítmica de versos muito bem arranjados.

Essas imagens que “escorrem” são exercícios que Salaberry desenvolve para apresentar o drama do olho que observa e quer apreender o observado, da memória que o quer reter, mas que lhe escapa, que se dilui, se dissolve. São imagens que, também, nos recordam da condição humana, de realidades como o devir, a contingência, a mortalidade, o padecimento. Três poemas, que formam uma espécie de tríptico, deixam isso claro: “Natal”, “Coração de salmão” e “Natividade”.

Mas o topos do “fogo” e da “luz que inebria” — metáfora do “engano especular” — retorna diversas vezes e, em uma das mais impressionantes, tangencia outros mitos que se articulam com a “Queda”, como o de Ícaro e seu pai, Dédalo, que pode ser observado no belíssimo poema que segue:

“Do alto do Zênite, nas herdades
Altas, uma simples guinada, apenas
Te daria de volta a gravidade
Tão ansiada — e perderias as penas.

Só isso, uma guinada à esquerda, à direita,
E os olhos, sim, ébrios da luz solar,
Veriam aproximar-se o vasto mar,
Se abrindo ao belo corpo como um leito;

Mas com tal desvario de confiar
No teu engenho, pai, antes atraio
Para as frágeis asas de cera o raio
Fulgurante que o sol lança no ar,

Pra que funda com amor tua habilidade
Ao velho e rico dom da gravidade.”

Talvez não seja insensato dizer que há nesse poema certo eco do “Ismália”, de Alphonsus de Guimarães. Lembremo-nos da imagem da lua no céu que se reflete como “outra lua”, no mar, a qual busca Ismália em queda vertiginosa, “ruflando suas asas”. Em todo caso, é um “narcisismo especular” que se apresenta. Se voltarmos novamente ao Livro III das Metamorfoses, veremos que Narciso contempla “dois astros” na fonte prateada que mira. Engana-se. Os “dois astros” que ora vê são reflexos de seus próprios olhos.

Pois bem, falando em olhos e em metamorfoses, Lawrence traduziu de um poeta francês do século XVII, até então desconhecido no Brasil, o livro Metamorfose dos olhos de Fílis em astros (São Paulo: É Realizações, 2016, 96 páginas.). O nome deste poeta: Germain Habert. Um ano antes de dar à luz Engano especular, sob a persona de Salaberry, Lawrence publicou na revista Letras (volume 21, número 43 [jun./dez.]), da Universidade Federal de Santa Maria, um estudo acadêmico intitulado A “Metamorfose dos olhos de Fílis em astros”, de Germain Habert: o narcisismo especular e o poder sem poder. Apenas pelo título do livro de Habert, já se percebe que o autor seiscentista está filiado à tradição ovidiana, à poesia pastoril. Em Fílis, estão mescladas as figuras de Eco e de Narciso, mas também outros mitos, como o do nascimento de Afrodite. Tudo isto fez com que Lawrence estabelecesse um significativo diálogo, em seu estudo, com o artigo The girl by the water: images of  Aphrodite as mediated desire (Anthropoetics 9, nº2, 2004), do pesquisador girardiano Peter T. Koper.

Lawrence Flores parece ter imprimido muito do estudo dessa tradução (e da tradição a ela vinculada) na obra de Salaberry. Inclusive, nas traduções de outros poetas que incorporou ao Engano especular, o tema dos olhos que “aprisionam” e que “enganam” está presente. É o caso de “Ces deux yeux Bruns”, soneto de Ronsard, que Salaberry “dissolve” em versos livres. Vejamos o primeiro quarteto:

“Esses dois olhos negros,
Lâmpadas de minha vida,
Sobre meus olhos a expandir
A sua cintilação,
Roubaram-me a liberdade
Para danar-me na mais vil prisão.”

Esta zona mista entre liberdade e prisão, ou salvação e perdição, de que a metáfora dos olhos dá conta, é o “quase nada” que os melhores poetas procuram sempre tatear. Lawrence Salaberry está entre eles, com toda certeza.

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