Conheça o brasileiro que propôs um desfecho para novela de Dostoiévski

Escritor e neurocirurgião atuante em São Paulo, Edson Amâncio diz endossar afirmação de Tchékhov segundo a qual a medicina é sua esposa e a literatura, sua amante.

Por ocasião da publicação, em breve, da novela inacabada “O Crocodilo“, de Fiódor Dostoiévski, entrevistamos Edson Amâncio, neurocirurgião e escritor brasileiro que concebeu um possível desfecho para a narrativa. Apaixonado pelo autor russo, ele escreveu seu complemento à novela em francês e, por esse trabalho, foi aplaudido no Museu Dostoiévski de Moscou. O texto é agora retraduzido para a língua portuguesa, junto com a novela original, em edição a ser lançada pela Abarca Editorial. A seguir, ele nos conta como concilia seu exigentíssimo trabalho de médico (em vários hospitais de São Paulo) e sua dedicação à literatura.

O senhor endossa a frase de Tchékhov: “A medicina é minha esposa e a literatura é minha amante“?

EA: – Sim, completamente. Meu próximo livro, que terá o título de O Impostor, começa justamente por essa epígrafe.

Que ótimo. Estamos em sintonia. Vamos ver, então, do que tratam alguns de seus livros...

(Amâncio sobe as escadas de sua casa e volta com uma braçada de livros) Pergunte ao mineiro (Amâncio é de Sacramento, MG); Diário de um médico louco (Visto o sucesso, o segundo próximo livro de Amâncio versará sobre Causos de um médico do interior sem recursos); Minha cara impune (Prêmio Literário AMB 95); O homem que fazia chover e outras histórias inventadas pela mente (Divulgação científica); Experiências de Quase Morte (Pesquisa que se tornou um best seller e continua sendo muito procurada desde sua publicação em 2021) e Meu Dostoiévski, os minutos finais. 

EA: Ahã, aqui estamos! Vamos falar sobre ele? Bem, meu interesse por Dostoiévski está muito entrelaçado com minha vida. Nasci em 1948 e, como Dostoiévski, fiquei órfão de pai muito cedo. Tinha mãe e dois irmãos mais novos, de modo que fiquei arrimo de família, estudando à noite e dando aulas particulares de dia. Aos 13-14 anos, na Biblioteca pública de Uberaba, encontrei Recordações da Casa dos Mortos. Foi meu primeiro livro de Dostoiévski. Depois li a biografia dele de Troyat, que me deixou fora do ar. Minha situação financeira era precária, como a de Dostoiévski. Ele fazia traduções do francês, e eu escrevia apostilas que eram usadas em cursinhos.

Apostilas sobre o quê?

EA: – Biologia, genética… desde cedo me senti atraído por esses estudos, era muito caxias… Fui o primeiro aluno do Colégio Cristo Rei que entrou na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, atualmente Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Desde o primeiro ano fiquei motivado pela neuroanatomia, fiz estágio em Ribeirão Preto e residência na Unicamp. Depois fui trabalhar em Santos, na Santa Casa e na Beneficência Portuguesa, onde criei o serviço de neurocirurgia. Depois de sete anos de formado, consegui uma bolsa para estudar na França.

Edson Amâncio em sua casa.

Então foi ali que aprendeu a redigir em francês?

EA: – Não só, claro! Fiquei de 80 a 82. Praticava neurocirurgia com o professor Gerarg Guillot, que tinha criado um método de cirurgia pelo nariz e trabalhava das 7h às 17h. Depois pegava o metrô e mergulhava na vida parisiense. Muitas vezes perdi o metrô de volta da meia-noite… 

E a literatura?

EA: – Eu frequentei muitos pontos importantes da cidade, mas foi na Biblioteca Sainte-Geneviève que me encontrei. Foi lá que encontrei o livro da Súslova, a jovem escritora que foi amante de Dostoiévski. Eu trouxe uma cópia para o Brasil e o livro foi  traduzido do russo e publicado aqui. Fiquei muito interessado pelo tipo de epilepsia que tinha Dostoiévski. Antes do ataque, ele tinha alguns segundos de visão extática, paradisíaca. É um tipo muito raro, o mesmo que acometeu Maomé, Dostoiévski o cita.

Depois da bolsa, ainda voltei quatro vezes à França e visitei as cidades da Europa onde havia vivido Dostoiévski: na Alemanha, Suíça e Itália. Em Basileia, visitei o museu onde está o famoso quadro de Cristo morto de Hans Holbein (1521), que tanto impressionou Dostoiévski e que quase me levou a ter a síndrome de Stendhal (o coração acelerou, senti tonturas…).

Foi aí que comecei a escrever Meu Dostoiévski, mas achei que não podia continuá-lo se não fosse antes à Rússia.

Obra na casa de Amâncio representando Dostoiévski.

Quais eram os aspectos da obra de Dostoiévski que lhe interessavam particularmente?

EA: – O príncipe Míchkin, de O Idiota, que era epilético, e a descrição que ele faz do Cristo Morto; em Os irmãos Karamázov, “O grande inquisidor”; a morte do pai; e depois, a religiosidade, a mundanidade, a humanidade de Dostoiévski, e a conversão dele durante os anos da Sibéria: o homem russo era aquele que estava ali, na prisão, e a história da amante dele, Polina Súslova, que se tornou a heroína de todas as suas  personagens femininas.

Era a primeira vez que ia à Rússia? Quando foi isso?

EA: – Já fui com a Mara em 1996. [Mara Fernanda Chiari, psicóloga, com quem é casado, e que conheceu em Santos, em 1981]. Fomos visitar a casa onde nasceu Dostoiévski, em Moscou, que agora virou Museu, e o hospital onde trabalhou o pai dele, que continua atendendo pacientes hoje em dia. Depois fomos para São Petersburgo, a cidade mais amada por Dostoiévski, e visitamos a casa onde ele morou até a morte, hoje Museu Dostoiévski. Conheci a diretora do Museu, Vera, e o marido dela, Ígor Knyazev, artista plástico de renome, que me deu esse quadro feito por ele mesmo.

Depois fomos visitar a Passagem, que é uma grande galeria de lojas de comércio e de exposições, no fim da Avenida Niévski, onde estava exposto o crocodilo de Dostoiévski, e aí me veio a ideia de concluir a novela dele.

De onde lhe veio a ideia?

EA: Das notas de Boris Schnaiderman sobre as possibilidades de término da novela que Dostoiévski havia deixado em suas anotações.

E aí, seguiu alguma delas?

EA: – Não, meu final foi diferente. Escrevi-o em francês e mandei para a Vera, a diretora do Museu. Gostaram tanto quer fui convidado a voltar ao Museu de Dostoíévski, onde o texto, agora completo, foi lido com grande sucesso em 2006. Houve até uma recepção para comemorar o acontecimento.

E o texto completo foi publicado lá?

EA: – Não, ainda está inédito. A primeira publicação do texto completo acontecerá agora, em breve, aqui no Brasil. Já temos as ilustrações para escolher, menos a de um amigo meu francês, artista plástico, que foi devolvida pela nossa alfândega por ser considerada “obra de arte”. E o que é ainda mais curioso é que paguei 127 reais aos correios para retirá-la: era golpe de algum malandro!

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